Esse tema é motivo de muita discussão entre os médicos. Não
é atípico um colega ser apontado com desdém pelos demais por ter uma visão
"mercantilista" da medicina (ou seja, com objetivo de obter lucro).
O próprio Conselho Regional de Medicina, por meio do Código de Ética
Médica, critica e condena essa prática: "A Medicina não pode, em nenhuma
circunstância ou forma, ser exercida como comércio".
Se a medicina não pode visar ao lucro ou ser exercida como
comércio — lembre-se de que, paradoxalmente, o médico deve ser remunerado de
forma "justa" —, então ficamos tentados a responder à pergunta do título com
um sonoro não.
Para avançar o raciocínio, é fundamental tentar encontrar
uma definição satisfatória para o que seria 'saúde'.
Saúde é um conceito complexo e muito difícil de ser
apreendido, uma vez que possui diversas implicações legais, sociais e
econômicas. Se utilizarmos a definição
defendida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), "saúde" seria "um estado de completo bem-estar físico,
mental e social, e não apenas a ausência de doenças".
Mas há um problema: ou essa definição está equivocada ou
esse tipo de situação jamais poderia ser alcançado por qualquer habitante deste
planeta. É natural do ser humano buscar esse estado maravilhoso de perfeição,
mas temos de ter em mente que ele raramente é alcançado, a não ser por poucos
momentos.
O que dizer, então, de transformar esse "estado de completo
bem-estar físico, mental e social" em um direito fundamental, garantido pelo
estado e financiado pelo dinheiro extraído à força do pagador de impostos? Pois
foi exatamente isso que a constituição de 1988 fez. Adotou essa definição de
saúde e logo abaixo decretou que ela seria um direito garantido pelo estado. Com isso, foi criado o Sistema Único de
Saúde.
De fato, esta definição de saúde possui inúmeras críticas,
entre elas: a "medicalização" da existência e a possibilidade de abusos por
parte dos governos com o pretexto de promover "saúde". Não é difícil, então,
entender por que a maior parte deles adota essa definição utópica.
Mas vejamos outras tentativas.
Saúde já foi descrita como "ausência de doença", como "o
bem-funcionar de um organismo como um todo" ou ainda como "uma atividade do
organismo vivo de acordo com suas excelências específicas". A melhor definição,
a meu ver, seria uma mistura entre "um estado físico e mental sob o qual é possível
alcançar todas as metas vitais, dadas as circunstâncias", associada a "uma
percepção subjetiva e individual de bem-estar", que varia enormemente entre as
pessoas.
Qualquer tentativa global de definir a saúde massacra o
indivíduo e deve ser evitada.
O termo "mercadoria" é derivado do latim e tem origem na
palavra mercatóre (mercador). Na economia política clássica,
uma mercadoria é tudo aquilo que é produzido pelo trabalho humano e pode ser
colocado no mercado para ser comercializado. O mercado, longe de ser um lugar,
é, na realidade, o processo que guia o sistema econômico baseado na divisão do
trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. As interações voluntárias que ocorrem no
mercado fazem surgir os preços, e a existência dos preços permite o cálculo econômico.
O cálculo econômico é a base intelectual que norteia as escolhas realizadas por
seus participantes. A estrutura de preços é um sinalizador fundamental do que
está ocorrendo a cada momento, pois reflete o conjunto de todas as interações
que lá ocorrem e informa aos produtores o que produzir, como produzir e em que
quantidade.
A alternativa a esse sistema capitalista de produção seria o
socialismo, no qual a propriedade privada é abolia e há apenas propriedade
estatal ou coletiva dos meios de produção. Neste segundo sistema, a produção é
determinada por decretos governamentais e, na ausência de preços, o sistema de
cálculo econômico se torna impossível, como foi demonstrado por Ludwig
von Mises em sua obra Socialismo. O fato de arranjos socialistas serem inviáveis
no longo prazo explica por que o socialismo fracassou em todos os lugares
em que foi implementado.
Em outras palavras, dizer que saúde é uma mercadoria significa simplesmente aceitar a
realidade e dizer que é possível obter serviços de saúde por meio de trocas
voluntárias dentro desse sistema complexo no qual todos agem por conta própria,
sem compulsão ou coerção.
Por tudo isso, podemos dizer que ninguém consegue obter o
produto "saúde" pronto no mercado; a saúde em si não pode ser comercializada, uma
vez que se trata de um conceito abstrato, um bem intangível, independentemente
da definição que quisermos adotar. No entanto, é possível sim obter serviços e
produtos que vão garantir a manutenção ou
a restauração da saúde perdida em decorrência de doenças ou externalidades.
Nesse sentido, apesar de a saúde não poder ser considerada
uma mercadoria, os serviços médicos e os serviços dos outros profissionais de
saúde são, sim, uma mercadoria, dado que podem ser — e são — fornecidos pelo
mercado, e de forma superior a qualquer tentativa do governo de fazer o mesmo.
Só faria sentido falar em ausência de comércio em uma situação em que os
serviços médicos fossem fornecidos pelo governo, em sua totalidade. Algo altamente indesejável.
Existe, no entanto, uma situação em que a saúde pode ser —
e frequentemente é — usada como mercadoria. O estado assistencialista usa o
conceito abstrato "saúde" como moeda de troca para impor suas intervenções e
controles e justificar taxas e impostos. Uma das observações mais perspicazes
de Mises foi a tendência cumulativa das intervenções estatais. O governo, em toda
a sua onisciência, julga ter percebido um problema e interfere com o objetivo
de "resolvê-lo". Essa intervenção do
governo gera consequências inesperadas. Ato
contínuo, o governo decide recorrer a novas intervenções apenas para
"sanar" as consequências não previstas da intervenção anterior. Cada nova intervenção cria dois ou três novos
problemas não previstos, os quais empurram continuamente o estado a novas intervenções
"saneadoras". E assim vai, cada vez mais
rumo ao socialismo.
Nenhuma área fornece uma ilustração mais dramática deste
processo maligno do que a saúde pública. (Clique aqui para ver um
exemplo prático de como funciona essa escalada intervencionista no SUS).
A verdade é que decretar que a saúde é um direito de todos e
que é dever do estado fornecer saúde universal, gratuita e de qualidade para
todos é uma medida que não pode
alterar as leis básicas da economia. Os serviços podem ser "gratuitos", mas os
recursos são, por definição, limitados (o socialismo vai até onde termina o dinheiro dos
outros) e a demanda é crescente. Não há milagre. O resultado disso será
racionamento e escassez, traduzidos sob a forma de filas, restrições ao
atendimento, falta de medicamentos etc. (Veja o exemplo prático aqui).
Por outro lado, quando o governo sai de cena, quando os
impostos deixam de ser recolhidos e quando cessam as regulamentações, o poder
aquisitivo dos pacientes aumenta, os custos dos profissionais
de saúde diminuem e, assim, aumenta a concorrência entre eles, o que faz
com que os preços caiam.
Com a "caridade governamental" fora de cena, abre-se caminho
para a caridade privada.
Talvez a nossa única chance/sorte seja demonstrar que o
sistema socialista de medicina, além de imoral, também
é estratosfericamente caro e ruim. E que, além de tudo, sob a falsa promessa de
saúde universal e gratuita, esse sistema redistributivista nos conduz, como ovelhas,
ao caminho da servidão.
É crucial aceitar que a saúde possa — ou, melhor ainda, que ela deve — ser
fornecida por meio de serviços e procedimentos obtidos no mercado.
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Leituras
complementares e indispensáveis:
Como Mises explicaria a
realidade do SUS?
Como o SUS está destruindo
a saúde dos brasileiros
Um breve manual sobre os
sistemas de saúde - e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera
Um retrato da saúde
brasileira - um desabafo de dois médicos
Quatro medidas para melhorar
o sistema de saúde
A medicina socializada e as
leis econômicas
A saúde é um bem, e não um
direito
Como realmente funciona o
sistema de saúde americano
As diferenças entre os
serviços de saúde da Alemanha e do Canadá
Verdades inconvenientes
sobre o sistema de saúde sueco
Nem todos os problemas de
saúde são seguráveis