Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

A saúde é um direito ou uma mercadoria?

15/12/2015

A saúde é um direito ou uma mercadoria?

Esse tema é motivo de muita discussão entre os médicos. Não é atípico um colega ser apontado com desdém pelos demais por ter uma visão "mercantilista" da medicina (ou seja, com objetivo de obter lucro).

O próprio Conselho Regional de Medicina, por meio do Código de Ética Médica, critica e condena essa prática: "A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio".

Se a medicina não pode visar ao lucro ou ser exercida como comércio -- lembre-se de que, paradoxalmente, o médico deve ser remunerado de forma "justa" --, então ficamos tentados a responder à pergunta do título com um sonoro não.

Para avançar o raciocínio, é fundamental tentar encontrar uma definição satisfatória para o que seria 'saúde'.

Saúde é um conceito complexo e muito difícil de ser apreendido, uma vez que possui diversas implicações legais, sociais e econômicas. Se utilizarmos a definição defendida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), "saúde" seria "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças".  

Mas há um problema: ou essa definição está equivocada ou esse tipo de situação jamais poderia ser alcançado por qualquer habitante deste planeta. É natural do ser humano buscar esse estado maravilhoso de perfeição, mas temos de ter em mente que ele raramente é alcançado, a não ser por poucos momentos.

O que dizer, então, de transformar esse "estado de completo bem-estar físico, mental e social" em um direito fundamental, garantido pelo estado e financiado pelo dinheiro extraído à força do pagador de impostos? Pois foi exatamente isso que a constituição de 1988 fez. Adotou essa definição de saúde e logo abaixo decretou que ela seria um direito garantido pelo estado.  Com isso, foi criado o Sistema Único de Saúde.

De fato, esta definição de saúde possui inúmeras críticas, entre elas: a "medicalização" da existência e a possibilidade de abusos por parte dos governos com o pretexto de promover "saúde". Não é difícil, então, entender por que a maior parte deles adota essa definição utópica.

Mas vejamos outras tentativas.

Saúde já foi descrita como "ausência de doença", como "o bem-funcionar de um organismo como um todo" ou ainda como "uma atividade do organismo vivo de acordo com suas excelências específicas". A melhor definição, a meu ver, seria uma mistura entre "um estado físico e mental sob o qual é possível alcançar todas as metas vitais, dadas as circunstâncias", associada a "uma percepção subjetiva e individual de bem-estar", que varia enormemente entre as pessoas.

Qualquer tentativa global de definir a saúde massacra o indivíduo e deve ser evitada.

O termo "mercadoria" é derivado do latim e tem origem na palavra mercatóre (mercador). Na economia política clássica, uma mercadoria é tudo aquilo que é produzido pelo trabalho humano e pode ser colocado no mercado para ser comercializado. O mercado, longe de ser um lugar, é, na realidade, o processo que guia o sistema econômico baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção.  As interações voluntárias que ocorrem no mercado fazem surgir os preços, e a existência dos preços permite o cálculo econômico. O cálculo econômico é a base intelectual que norteia as escolhas realizadas por seus participantes. A estrutura de preços é um sinalizador fundamental do que está ocorrendo a cada momento, pois reflete o conjunto de todas as interações que lá ocorrem e informa aos produtores o que produzir, como produzir e em que quantidade.

A alternativa a esse sistema capitalista de produção seria o socialismo, no qual a propriedade privada é abolia e há apenas propriedade estatal ou coletiva dos meios de produção. Neste segundo sistema, a produção é determinada por decretos governamentais e, na ausência de preços, o sistema de cálculo econômico se torna impossível, como foi demonstrado por Ludwig von Mises em sua obra Socialismo. O fato de arranjos socialistas serem inviáveis no longo prazo explica por que o socialismo fracassou em todos os lugares em que foi implementado.

Em outras palavras, dizer que saúde é uma mercadoria significa simplesmente aceitar a realidade e dizer que é possível obter serviços de saúde por meio de trocas voluntárias dentro desse sistema complexo no qual todos agem por conta própria, sem compulsão ou coerção.

Por tudo isso, podemos dizer que ninguém consegue obter o produto "saúde" pronto no mercado; a saúde em si não pode ser comercializada, uma vez que se trata de um conceito abstrato, um bem intangível, independentemente da definição que quisermos adotar. No entanto, é possível sim obter serviços e produtos que vão garantir a manutenção ou a restauração da saúde perdida em decorrência de doenças ou externalidades.

Nesse sentido, apesar de a saúde não poder ser considerada uma mercadoria, os serviços médicos e os serviços dos outros profissionais de saúde são, sim, uma mercadoria, dado que podem ser -- e são -- fornecidos pelo mercado, e de forma superior a qualquer tentativa do governo de fazer o mesmo. Só faria sentido falar em ausência de comércio em uma situação em que os serviços médicos fossem fornecidos pelo governo, em sua totalidade. Algo altamente indesejável.

Existe, no entanto, uma situação em que a saúde pode ser -- e frequentemente é -- usada como mercadoria. O estado assistencialista usa o conceito abstrato "saúde" como moeda de troca para impor suas intervenções e controles e justificar taxas e impostos. Uma das observações mais perspicazes de Mises foi a tendência cumulativa das intervenções estatais. O governo, em toda a sua onisciência, julga ter percebido um problema e interfere com o objetivo de "resolvê-lo".  Essa intervenção do governo gera consequências inesperadas.  Ato contínuo, o governo decide recorrer a novas intervenções apenas para "sanar" as consequências não previstas da intervenção anterior.  Cada nova intervenção cria dois ou três novos problemas não previstos, os quais empurram continuamente o estado a novas intervenções "saneadoras".  E assim vai, cada vez mais rumo ao socialismo.  

Nenhuma área fornece uma ilustração mais dramática deste processo maligno do que a saúde pública. (Clique aqui para ver um exemplo prático de como funciona essa escalada intervencionista no SUS).

A verdade é que decretar que a saúde é um direito de todos e que é dever do estado fornecer saúde universal, gratuita e de qualidade para todos é uma medida que não pode alterar as leis básicas da economia. Os serviços podem ser "gratuitos", mas os recursos são, por definição, limitados (o socialismo vai até onde termina o dinheiro dos outros) e a demanda é crescente. Não há milagre. O resultado disso será racionamento e escassez, traduzidos sob a forma de filas, restrições ao atendimento, falta de medicamentos etc. (Veja o exemplo prático aqui).

Por outro lado, quando o governo sai de cena, quando os impostos deixam de ser recolhidos e quando cessam as regulamentações, o poder aquisitivo dos pacientes aumenta, os custos dos profissionais de saúde diminuem e, assim, aumenta a concorrência entre eles, o que faz com que os preços caiam.

Com a "caridade governamental" fora de cena, abre-se caminho para a caridade privada.

Talvez a nossa única chance/sorte seja demonstrar que o sistema socialista de medicina, além de imoral, também é estratosfericamente caro e ruim. E que, além de tudo, sob a falsa promessa de saúde universal e gratuita, esse sistema redistributivista nos conduz, como ovelhas, ao caminho da servidão. É crucial aceitar que a saúde possa -- ou, melhor ainda, que ela deve -- ser fornecida por meio de serviços e procedimentos obtidos no mercado.

_______________________________________

Leituras complementares e indispensáveis:

Como Mises explicaria a realidade do SUS? 

Como o SUS está destruindo a saúde dos brasileiros 

Um breve manual sobre os sistemas de saúde - e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera 

Um retrato da saúde brasileira - um desabafo de dois médicos 

Quatro medidas para melhorar o sistema de saúde 

A medicina socializada e as leis econômicas 

A saúde é um bem, e não um direito 

Como realmente funciona o sistema de saúde americano

As diferenças entre os serviços de saúde da Alemanha e do Canadá 

Verdades inconvenientes sobre o sistema de saúde sueco 

Nem todos os problemas de saúde são seguráveis


Sobre o autor

Tatiana Villas Boas Gabbi

É médica, dermatologista, libertária e defensora radical do livre mercado.

Comentários (73)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!