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Economia

Os horrores da fome ao longo da história ensinam: jamais tome sua prosperidade como algo garantido

O grande infortúnio da prosperidade é esquecermos de como nos tornamos prósperos.

07/07/2022

Os horrores da fome ao longo da história ensinam: jamais tome sua prosperidade como algo garantido

O grande infortúnio da prosperidade é esquecermos de como nos tornamos prósperos.

A adoção do capitalismo e o livre mercado permitiu que o Ocidente embarcasse em um período de crescimento econômico sem precedentes, o que fez com que o padrão de vida das populações ocidentais aumentasse continuamente, ano após ano. 

Frequentemente, nós nos esquecemos de que bens e serviços que hoje consideramos triviais e rotineiros não eram usufruídos nem mesmo pelos mais ricos do mundo 100 anos atrás.

John D. Rockefeller foi um dos homens mais ricos da história, provavelmente o mais rico de toda a história. Seu patrimônio líquido ajustado pela inflação, embora varie de acordo com a fonte, seria o equivalente a várias centenas de bilhões de dólares. No entanto, John D. Rockefeller nunca, em toda a sua vida, teve um telefone celular. E foi somente no fim de sua vida, na década de 1930, que a televisão surgiu — e, obviamente, era de uma qualidade vastamente inferior às TVs que os pobres usufruem hoje.

A internet mudou completamente o nosso mundo, mas o pobre Rockefeller nunca, em toda a sua vida, pôde utilizar um aplicativo de enviar mensagens instantâneas para conversas com amigos e família. Rockefeller nem sequer podia ouvir a música que quisesse na hora em que quisesse. Ele não tinha acesso gratuito e instantâneo às últimas notícias do mundo.  A medicina era horrível para os padrões de hoje. Antibióticos ainda não estavam disponíveis. Serviços odontológicos eram extremamente dolorosos (a escova de dentes como conhecemos só surgiu em 1938). 

Você mesmo provavelmente possui vários itens e coisas de luxo que não existiam na época dele (Rockefeller morreu em 1936). Até mesmo seu acesso a culinárias amplas e diversificados é muito mais amplo e imediato que era o de Rockefeller (veja mais detalhes aqui).

Com efeito, e retrocedendo ainda mais, o mundo no qual vivemos hoje é irreconhecível quando comparado ao mundo de 1800. Praticamente nada permaneceu igual. Esta evolução foi resultado de uma taxa de crescimento contínua de 2,5% ao ano, de 1800 a 1930, e de 2% ao ano desde 1950.  O gráfico abaixo, do site Our World in Data, mostra essa evolução do PIB mundial.

Tamanha geração de riqueza significa que algumas coisas deixam de ser um problema. Crises existenciais que ameaçavam a sobrevivência do homem centenas de anos atrás são hoje desconhecidas para a maior parte do mundo desenvolvido.

Um desses esquecidos horrores são as mortes em massa por inanição. Durante uma crise de fome generalizada, não é apenas você que não tem comida; seus vizinhos e amigos também passam pela mesma privação. Populações perecem.

Nesta situação, as plantações estão vazias. Os campos estão vazios. Os pastos estão vazios. Os silos estão vazios. Os mercados estão vazios. Os estômagos estão vazios. Esta situação persistia por vários meses seguidos, até que mais comida começasse a surgir novamente nas colheitas. Até então, tudo vazio.

Exemplos documentados

Cornelius Walford escreveu um livro em 1879 intitulado The Famines of the World (As Mortes por Fome no Mundo). O livro oferece um breve, porém angustiante e perturbador vislumbre sobre como era esse passado. 

O início do livro fornece uma lista de todas as grandes inanições documentadas antes da publicação do livro, começando ainda 1708 a.C. Uma breve descrição é fornecida em cada verbete da lista de inanições.

Um registro inicial afirma: "ano 436… Fome: Milhares se jogaram no rio Tibre". A maioria dos verbetes iniciais não traz grandes detalhamentos, o que é compreensível, dado que àquela época as informações eram bastante limitadas. Porém, tão logo você chega à Idade Média, os detalhes começam a surgir.

Eis alguns destaques:

  • Irlanda 963-64: Uma fome generalizada tão intolerável, "que os pais tiveram de vender seus filhos em troca de comida".
  • Inglaterra 1073: Fome em massa, seguida por uma mortandade tão violenta, que os vivos não conseguiam cuidar dos doentes, e nem enterrar os mortos.
  • Irlanda 1586: "Há relatos de que carne humana virou alimento". 

Esta não é a única referência ao canibalismo, lamentavelmente. Tal ato é relatado em vários outros verbetes. 

Este é provavelmente um dos livros mais depressivos que você lerá. Mas serve como um crucial lembrete e uma valiosa advertência.

Escolhi apenas alguns exemplos acima, mas há centenas de episódios listados por Walford. O grande número de exemplos é perfeitamente compreensível. Durante séculos, antes do capitalismo, bastava uma única colheita ruim para efetivamente arruinar uma sociedade por vários anos.

O conforto que damos como garantido

Para nossa mente moderna, acostumada aos mais corriqueiros e onipresentes confortos da atualidade, é difícil imaginar que houve um passado em que bastava haver uma colheita ruim para ter toda a sua vida destruída. No nosso mundo atual, a comida simplesmente está ali. Com a exceção de alguns eventos ocasionais e totalmente pontuais e efêmeros — como um desastre natural que provoca uma corrida aos supermercados e gera um desabastecimento das prateleiras —, nós nunca sequer pensamos na hipótese de que não existirá comida no dia seguinte.

Mesmo em meio à pandemia de Covid-19, com várias indústrias fechadas e várias cadeias de suprimento sendo interrompidas, nunca houve desabastecimento generalizado. Pode até haver aumento de preços (os quais têm uma função crucial), mas não houve desabastecimento. Isso é uma façanha para a qual ainda não demos a devida gratidão.

Para falar o óbvio, algo mudou fundamentalmente desde antigamente até hoje. Como foi que nos libertamos da realidade daquele passado narrado por Walford e chegamos a essa nossa atual realidade de conforto (inimaginável até mesmo para o maior dos magnatas do início do século XX)?

Obviamente, temos mais comida hoje do que havia no passado. Será que estamos simplesmente plantando mais alimentos? Sim, mas a resposta é muito mais complicada do que isso. Em nossa era moderna, e ao contrário daquela época, temos todos os tipos de transporte, temos tecnologias que beiram o inacreditável, temos máquinas e equipamentos capazes de sustentar um vasto número de pessoas, e temos infraestrutura moderna.

Não apenas para o processo de plantar e cultivar alimentos, mas também para empacotar, transportar, preservar e para tudo o mais que ocorre entre a colheita e a prateleira dos supermercados — são toda esta infraestrutura e todos estes equipamentos modernos que nos fornecem a capacidade de produzir e disponibilizar vastas quantias de comida.

Isso significa que a solução para a fome seria apenas ter melhores tecnologias? Afinal, vivemos em uma era de milagres tecnológicos. Podemos hoje fazer coisas que pareciam impossível há cem anos. Por que então a tecnologia não pode simplesmente nos dar mais comida? Porque a tecnologia, por si só, é uma resposta fundamentalmente vazia para essa questão.

A tecnologia em sua forma mais pura — o conhecimento — é apenas algo teórico. Ter uma planta para construir uma casa não faz com que a casa surja. É preciso ter os materiais e equipamentos necessários para construir a casa. Um aumento na quantidade de materiais é o que é realmente necessário para ajudar a aumentar a riqueza real. 

E como isso ocorre?

As causas de tudo

O que é necessário é aquilo que os economistas chamam de capital. Capital é tudo aquilo utilizado na produção para ajudar a aumentar a produtividade do trabalho. Ter um martelo certamente aumenta a sua produtividade em bater pregos na madeira. A serra elétrica aumenta a produção em relação a um serrote ou a um machado. Um trator multiplica enormemente a produção agrícola em relação a uma enxada. O uso de máquinas e equipamentos modernos multiplica enormemente a produtividade dos trabalhadores.

A mágica do capital é que, com a mesma quantidade de mão-de-obra (ou de horas de trabalho individual), eu posso ser mais eficiente. Isso significa que com a mesma quantidade de trabalho eu consigo produzir mais bens.

O capital é acumulado pelo ato de poupar, isto é, abster-se do consumo. Uma sociedade que trabalha, produz e se abstém do consumo permite que os recursos criados e não consumidos sejam utilizados na construção de bens de capital que irão tornar o trabalho humano mais produtivo. Os recursos não-consumidos se tornam insumos para a construção de moradias, fábricas, infraestruturas, meios de transporte, maquinários, escritórios e imóveis comerciais, laboratórios, cientistas, arquitetos, universidades etc.

Inversamente, uma sociedade que consome 100% do que produz não possui um único bem de capital. Nesta sociedade não haveria moradias, fábricas, infraestruturas, meios de transporte, maquinários, escritórios e imóveis comerciais, laboratórios, cientistas, arquitetos, universidades etc. Todos os indivíduos estariam permanentemente ocupados (trabalhando duro) produzindo bens de consumo básicos — comidas e vestes — e não dedicariam nem um segundo para a produção de bens de capital, que são investimentos de longo prazo que geram bens futuros.

É a poupança, é o não desejo de consumir tudo, o que permite direcionar esforços para satisfazer não os desejos mais imediatos, mas sim as necessidades futuras. Com a poupança, são produzidos bens de capital que irão, por sua vez, fabricar os bens de consumo que serão demandados no futuro.

E por que não estava havendo acumulação de capital no passado? Certamente havia alguma acumulação, mas o processo de se construir e acumular cada vez mais capital era frequentemente frustrado pela ausência de algo crucial: direitos de propriedade.

Se eu gastar tempo e energia criando mais capital, mas este for confiscado ou destruído porque não há respeito aos direitos de propriedade, por que então se dar ao trabalho? Por que eu iria incorrer em todo esse esforço se eu nem sequer poderei usufruir os benefícios de minha maior produtividade?

É apenas quando os direitos de propriedade são firmemente estabelecidos que o capital pode começar a se acumular. O liberalismo clássico tornou-se predominante no fim do século XVIII e no XIX, gerando robustos direitos de propriedade e políticas laissez-faire. Previsivelmente, isso levou a um aumento nos estoques de capital, e a um crescente aumento no padrão de vida.

Este aumento sem precedentes no padrão de vida é frequentemente rotulado de "Revolução Industrial".

É apenas quando se entende isso, que é possível entender por que não era possível ter "direitos trabalhistas", férias remuneradas, trabalhar 6 horas por dia naquela época e ainda assim viver bem. Era simplesmente impossível ter nos séculos XVIII e XIX a qualidade de vida que usufruímos hoje no século XXI, a mesma renda e a mesma segurança no trabalho. É necessário levar em contra toda a acumulação de capital que ocorreu neste intervalo de tempo. 

Naquela época, não havia a mesma acumulação de capital que temos hoje. A produtividade era menor, os investimentos eram menores, a quantidade e a variedade de bens e serviços eram menores. Assim como o respeito à propriedade privada.

Para concluir

As riquezas que usufruímos hoje não são permanentes. Elas não podem ser tidas como algo natural e garantido.

Caso venha a ocorrer uma regressão nos direitos de propriedade, iremos lentamente começar a regressar à vida de nossos antepassados. 

O grande infortúnio de sermos economicamente próspero é que o conforto, a segurança e a certeza nos fazem esquecer de como nos tornamos prósperos.

A acumulação de capital sob um arranjo de respeito aos direitos de propriedade nos deu tudo o que temos hoje. Sem este arranjo, ainda estaríamos vivendo naquela realidade do passado: inanição, doenças e com o espectro da morte apenas algumas horas à frente.

Jamais tome a sua prosperidade como algo garantido. Tudo pode mudar com apenas uma má escolha política, econômica ou filosófica (vide a Venezuela atual atual e todos os regimes socialistas do passado). Se houver uma inanição nas ideias econômicas, a inanição em nossos campos poderá voltar a ser uma realidade.

Sobre o autor

JW Rich

É bacharel em economia pela Universidade de Charlotte, Carolina do Norte. Seus interesses são economia, história do pensamento econômico e filosofia.

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