Segundo
o
The New York Times, a atual crise
de escassez e racionamento enfrentada pela Venezuela é causada pela queda no
preço do petróleo. A verdade, no
entanto, é que a furiosa hiperinflação que
assola o país desde 2013
já havia esvaziado as prateleiras dos supermercados de Caracas bem antes de o
preço do petróleo ter caído à metade.
Atualmente,
com uma moeda inconversível e que ninguém quer portar, com uma inflação de
preços estimada em 194%
ao ano, e com rígidos controles de preços, toda a distribuição de alimentos na
Venezuela foi colocada sob
supervisão militar.
Segundo
a
matéria de capa do Times, a venezuelana Mary Noriega, assistente de
laboratório, tem de ficar na fila junto a 1.500 outros venezuelanos para
conseguir comprar comida "enquanto soldados armados pedem as carteiras de
identidade para se certificarem de que ninguém está comprando itens básicos
mais de uma vez na mesma semana". A
senhora Noriega está tendo de fazer escambo com seus vizinhos para conseguir
colocar comida na mesa.
Quando a moeda morre
Em
um épico miniconto de Thomas
Mann intitulado "Disorder
and Early Sorrow" (Desordem e Dor Precoce), no qual ele descreve como
era a vida na República de Weimar, na Alemanha, então sob uma das maiores hiperinflações da
história, a dona de casa, Frau Cornelius, fazia algo similar ao que os
venezuelanos fazem hoje para colocar comida na mesa:
O chão está continuamente vacilando sob seus
pés, e tudo parece estar de cabeça para baixo.
Ela só pensa na sua tarefa mais crucial do dia: os ovos, eles têm de ser
comprados hoje, e agora. Cada ovo está
custando seis mil marcos, e há uma quantia racionada que só pode ser adquirida
neste dia da semana na mercearia que fica a quinze minutos de sua casa.
Fazendo
uma análise econômica dessa história de Mann, este artigo
mostra como uma intervenção governamental na economia imediatamente leva a
outras intervenções. Tendo gerado
escassez no mercado com suas políticas inflacionárias, as autoridades alemãs
criaram novas regulações para tentar corrigir a irracionalidade que eles próprios
haviam criado. O roteiro é sempre o mesmo, em todos os países: o governo cria
intervenções que geram consequências inesperadas, e decide então recorrer a
intervenções ainda mais violentas para "sanar" as consequências não
previstas das intervenções anteriores.
Não
é difícil de entender por que os alemães de hoje são tão avessos a qualquer
tipo de política monetária que tenha semelhanças com uma política
hiperinflacionária. A revista britânica The
Economist disse jocosamente que os alemães sofrem de "fobia" em relação à
hiperinflação.
É
claro. Quando um alemão se lembra de
como a taxa de câmbio do marco pulou de 4,2 marcos por dólar em 1914 para 4,2 trilhões de marcos por dólar em novembro
de 1923; quando ele se lembra de que, em meados de 1922, um pão custava 428
milhões de marcos; e que, em novembro de 1923, um ovo custava 500 bilhões de
marcos, as memórias obviamente não podem ser boas.
[Nota
do IMB: a hiperinflação
vivenciada pelo Brasil no período 1980-1994 foi atenuada pelo fato de que,
além do mecanismo da correção monetária (uma invenção brasileira), a classe
média e a classe alta tinham acesso ao sistema bancário e utilizavam suas
aplicações (como as aplicações no overnight)
para se proteger da hiperinflação. Essas
duas coisas não existiam na Alemanha da década de 1920. Houve muita escassez e racionamento no
Brasil, mas não houve uma completa chacina da classe média, como houve na
Alemanha].
No
conto de Mann, com toda essa destruição monetária como pano de fundo, as
pessoas tiveram de aprender na marra a como lidar com isso.
Nenhuma família podia comprar mais de cinco
ovos por semana. Sendo assim, as pessoas
de uma mesma família entravam nas mercearias sozinhas, uma após a outra,
utilizando nomes falsos. Desse modo,
elas conseguiam vinte ovos para a família Cornelius.
Em
um assustador caso de vida imitando a arte que imitou a vida, o povo venezuelano
está hoje enfrentando os mesmos obstáculos para comprar detergente, óleo
vegetal e farinha (todos estes itens sujeitos a um rígido racionamento do
governo). Segundo a reportagem do Times:
Todas as compras feitas pelos venezuelanos
são computadas em um sistema de dados para garantir que cada consumidor não
tente comprar os mesmos produtos racionados em um período menor do que sete
dias.
Soldados patrulham as filas fora dos
supermercados, policiais da guarda bolivariana ficam dentro dos supermercados,
e funcionários públicos conferem as carteiras de identidade à procura de
falsificações que poderiam ser utilizadas para driblar o sistema de
racionamento. Procuram também por
imigrantes com visto expirado. Um
funcionário público da imigração grita alertando que transgressores serão
presos.
Em
Caracas, o governo não será facilmente enganado. Embora racionamento, escassez e longas filas
já fossem uma rotina na Venezuela, a queda no preço do
petróleo intensificou o processo.
Segundo o Times:
O governo enviou tropas para patrulhar as
enormes filas que se estendem por várias quadras. Alguns estados proibiram as pessoas de
esperaram fora dos supermercados ao longo das madrugadas, e funcionários do
governo estão de prontidão perto das portas de entrada e saída, prontos para
prender qualquer um que tenta driblar o sistema de racionamento.
O
sistema de saúde sofreu um profundo baque.
O suprimento de remédios está simplesmente acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses,
não obstante centenas de pacientes estejam na fila de espera para
cirurgias. Em uma clínica privada, um
cirurgião conseguiu manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguiu
contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano soubesse, remédios
essenciais.
Thomas
Mann relatou quão rapidamente o dinheiro perdia valor na República de Weimar:
Antes de os filhos chegarem, Frau Cornelius
tem de pegar sua cesta de compras, sua bicicleta e ir correndo à cidade para
tentar trocar seu dinheiro por qualquer quantidade de bens possível. Caso não faça isso, o dinheiro que está em
sua mão irá simplesmente perder todo o seu poder de compra ao longo do dia, e
não lhe permitirá adquirir nada no dia seguinte.
O
The New York Times tem um fotógrafo em Caracas, e essa foto vale por mil
palavras:

"As
coisas irão piorar bastante porque é o petróleo o que mantém a Venezuela
funcionando", disse Luis Castro, enfermeiro de 42 anos de idade, enquanto
esperava na fila de um supermercado com centenas de outros venezuelanos. "Já estamos nos acostumando a enfrentar filas
diariamente", disse ele, "e quando você se acostuma com algo, se contenta com
qualquer migalha que lhe é oferecida".
Ao
passo que a maioria das pessoas são arruinadas pela hiperinflação, há algumas
que fazem fortunas. Em seus slides, o
Times mostra um especulador com a mão lotada de dinheiro em Caracas vendendo,
no mercado negro, sabonete, manteiga e óleo de cozinha.

Em
seu livro The
Downfall of Money:Germany's Hyperinflation and the Destruction of the Middle
Class, Frederick Taylor escreve que "pessoas com renda média e sem
nenhum acesso a produtos agrícolas ou a moeda estrangeira foram forçadas a
aprender a caçar e a ficar em filas por comida — tanto porque sua renda
frequentemente não era o suficiente para comprar o que queriam em um
determinado dia, como também porque havia, à medida que a hiperinflação se
intensificava, uma genuína escassez de comida."
Já
os agricultores simplesmente não queriam trocar seus alimentos por inúteis
pedaços de papel que não tinham nenhum valor. "Naquilo que rapidamente
estava regredindo para voltar a ser uma economia baseada no escambo, os mais
espertos, para não dizer desonestos, chegavam rapidamente ao topo da cadeia darwiniana",
escreveu Taylor. "Nas áreas rurais, os médicos exigiam pagamento em comida dos
fazendeiros que os procuravam".
Os
trabalhadores começaram a ser pagos diariamente, e os homens, tão logo
recebessem seus salários, iam correndo com suas mulheres comprar qualquer coisa
que conseguissem. Após comprar os itens essenciais, eles corriam até um
banco para comprar qualquer moeda forte que ainda restasse. O número
de bancos aumentou substantivamente para lidar com esse novo negócio. Em
1921, 67 novos bancos foram abertos. Em 1922, mais 92. E mais 401 surgiram em
1923-24. O número de funcionários de banco quadruplicou nesse período. O
Deutsche Bank tinha 15 filiais em 1923. De anos depois, já eram 242.
Não
foi a pujança da atividade econômica que criou a necessidade desses novos
bancos. "Os bancos estavam sobrecarregados de ordens para comprar e vender
ações e moedas estrangeiras. E os
cidadãos comuns, em número cada vez maior, se tornavam especuladores da
bolsa".
"O
colapso da moeda e o colapso da moralidade se tornaram idênticos", escreve
Taylor. Não eram apenas as prostitutas
que vendiam seus corpos. "As
recém-desprovidas filhas da classe média educada (em alguns casos, filhos
também), que agora estavam no mercado do sexo pago, estavam inteiramente
disponíveis a qualquer preço — preferivelmente em troca de cigarros, metais
preciosos ou moeda forte em vez de marcos de papel."
Com
a inflação tendo destruído toda a poupança da classe média, as moças jovens
simplesmente não tinham nenhum dote a ser oferecido a pretensos futuros
maridos. "Quando a moeda perde
totalmente seu valor", escreveu uma mulher, "ela destrói todo o sistema burguês
baseado no matrimônio, de modo que destrói também toda a ideia de se manter
casta até o casamento".
Taylor
cita uma história relatada pelo escritor russo Ilya
Ehrenburg sobre uma noite que ele passou com alguns amigos em Berlim. Segundo Ilya, eles
terminaram a noite visitando uma família alemã em um "apartamento burguês
perfeitamente respeitável". Foi-lhes
oferecido limonada com um pouco de álcool e
Então as duas filhas que estavam na casa
entraram na sala, totalmente nuas, e começaram a dançar. A mãe olhava esperançosa para as visitas
estrangeiras: talvez suas filhas fossem do agrado das visitas, e talvez as
visitas pagassem bem — em dólares, obviamente.
"E é isso o que chamamos de vida", suspirou a mãe. "Na verdade, é pura e simplesmente o fim do
mundo".
Tendo
conhecimento de algumas dessas histórias, e olhando a corrupção moral a que foi
submetida a Alemanha, não é de todo incompreensível entender fenômenos como a
ascensão de Hitler. E também não é
incompreensível por que os alemães de hoje não são muito tolerantes com seus
vizinhos europeus que defendem políticas inflacionárias.
Países
como a Venezuela e, em menor grau, Rússia e Argentina, estão em caminhos
perigosos no que tange às suas moedas. Eles
deveriam ler um pouco da história da Alemanha.
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A hiperinflação mais
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O legado cultural e
espiritual da inflação monetária
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