quarta-feira, 30 mar 2016
Todas as doutrinas que tentaram descobrir alguma
tendência específica na sequência dos acontecimentos da história humana não conseguem
concordar entre si, ao se referirem ao passado, a respeito de fatos
estabelecidos historicamente.
E, sempre que elas tentaram prever o futuro, os
eventos posteriores provaram-nas espetacularmente erradas.
A maioria destas doutrinas caracterizou-se pela
referência a um estado de perfeição nas questões humanas. Elas colocaram este estado perfeito ou no
começo ou no fim da história, ou tanto em seu fim quanto em seu começo.
Consequentemente, para as doutrinas que diziam que o
estado de perfeição vigorou no início da história, todos os acontecimentos
posteriores eram uma manifestação de uma deterioração progressiva da
humanidade. Já para aquelas doutrinas
que enfatizavam que o estado perfeito ocorrerá no fim da história, todos os
acontecimentos indicavam, a seu modo, uma melhoria progressiva da humanidade. Já para as doutrinas que diziam que o estado
perfeito vigorou no início e vigorará no fim, todos os acontecimentos nada mais
são do que um período de deterioração progressiva seguido por um de melhoria
progressiva.
Em algumas destas doutrinas, a ideia de um estado
perfeito estava arraigada em dogmas e crenças religiosas. No entanto, não cabe
à ciência laica fazer uma análise dos aspectos teológicos desta questão.
O que deve ser ressaltado, por sua obviedade, é que,
em um estado perfeito das interações humanas, não pode existir história. A
história é o registro das mudanças. O próprio conceito de perfeição, no
entanto, implica a ausência de qualquer mudança, já que um estado perfeito só
pode ser transformado em um estado menos perfeito, isto é, só pode ser
prejudicado por qualquer alteração.
Quando alguém situa o estado de perfeição apenas
neste suposto início da história, está afirmando que a era da história foi
precedida por uma era na qual não havia história, e que, um dia, alguns
acontecimentos perturbaram a perfeição desta era original, inaugurando assim a
era da história. Por outro lado, ao se presumir que a história tende à
realização de um estado perfeito, se está afirmando que a história chegará, um
dia, ao seu fim.
É da natureza humana se esforçar incessantemente para
substituir condições menos satisfatórias por condições mais satisfatórias. Esta
motivação estimula as energias mentais e instiga o homem a agir. A vida em uma
estrutura perfeita reduziria o homem a uma existência meramente vegetativa.
A história não se iniciou com uma Era de Ouro. As
condições em que o homem primitivo vivia parecem bastante insatisfatórias para
os observadores de épocas posteriores. Ele estava cercado por inúmeros perigos,
que, para o homem civilizado, não mais representam uma ameaça — ou pelo menos
não na mesma escala. Comparado a gerações posteriores, ele era extremamente
pobre e bárbaro. Teria ficado exultante caso tivesse a oportunidade de
aproveitar qualquer uma das conquistas de nossos tempos, como, por exemplo, os
métodos farmacêuticos para tratar de ferimentos.
A humanidade tampouco poderá alcançar algum dia um
estado de perfeição. A ideia de que um estado de indiferença e de falta de propósitos
é, além de desejável, a condição mais feliz que a humanidade poderá alcançar é
um delírio que, não obstante, permeia a literatura utópica. Os autores destes
projetos descrevem uma sociedade na qual nenhuma alteração será necessária, pois
tudo já atingiu a melhor forma possível.
Na Utopia não haverá mais motivo para a busca por
melhorias, pois tudo já será perfeito. A partir deste ponto, todas as pessoas
serão inteiramente felizes.
Karl
Marx e os socialistas utópicos
Neste sentido, Karl Marx também deve ser descrito
como utópico. Ele também tinha como meta
um arranjo social no qual a história teria seu curso interrompido. No esquema de Marx, toda a história é a
história das lutas de classe. Uma vez que as classes e luta de classes fossem
abolidas, a história já não mais poderia existir.
É verdade que o Manifesto
Comunista apenas declara
que a história de toda a sociedade que existiu até então — ou, como Engels
acrescentou posteriormente, com maior precisão, a história após a dissolução da
era de ouro do comunismo primevo — é a história das lutas de classe e, logo,
não exclui a interpretação de que após o estabelecimento do milênio socialista
algum novo conteúdo histórico possa surgir.
Mas os outros escritos de Marx, Engels e seus
discípulos não dão qualquer indicação de que um novo tipo de mudança histórica,
de natureza radicalmente diferente daqueles das eras anteriores de lutas de
classes, poderia vir a surgir. Quais outras mudanças podem ser esperadas, uma
vez que a fase mais elevada do comunismo, na qual todos conseguem tudo aquilo de
que precisam, foi atingida?
A distinção que Marx fez entre o seu próprio
socialismo "científico" e os projetos socialistas dos autores que o
antecederam, a quem ele chamou de utópicos, não se referia apenas à natureza e
à organização da comunidade socialista, mas também à maneira em que essa
comunidade deveria entrar em existência. Aqueles que Marx desacreditou como
utopistas construíram o projeto de um paraíso socialista, e tentaram convencer
as pessoas de que a sua realização é altamente desejável.
Marx rejeitou este procedimento. Ele alegou ter
descoberto a lei de evolução histórica segundo a qual a vinda do socialismo era
inevitável. Ele viu as falhas e inconsistências
dos socialistas utópicos — seu caráter utopista — no fato de que esperavam
que o socialismo viria a partir da vontade do povo, isto é, de sua ação
consciente, ao passo que seu próprio socialismo científico afirmava que o
socialismo viria, independentemente da vontade dos homens, da evolução das
forças materiais produtivas.
Mas nunca ocorreu a estes autores que aqueles que
eles tanto queriam beneficiar por meio de revoluções pudessem ter opiniões
diferentes acerca do que lhes é desejável e o que não é.
A
utopia de hoje
Uma nova e sofisticada versão da imagem da sociedade
perfeita surgiu recentemente a partir de uma interpretação crassa do funcionamento
da economia de mercado.
Para lidar com os efeitos gerados por mudanças
contínuas no "equilíbrio de mercado" — os esforços para ajustar a produção a
estas mudanças, e as alterações nos lucros e nos prejuízos —, o economista tradicional
cria um modelo econômico teórico em que há um estado de coisas hipotético,
totalmente inalcançável e impraticável, no qual a produção está sempre ajustada
aos desejos realizáveis dos consumidores e nenhuma outra mudança ocorre.
[N. do E.: Mises está se referindo à economia neoclássica
e aos seus modelos de equilíbrio estático
ou estado estacionário, justamente aqueles ensinados hoje na esmagadora
maioria das universidades.
Neste modelo, as
informações do mercado são objetivas e conhecidas por todos (em termos
probabilísticos ou exatos). Não há a
figura do empreendedor. Não há um
investimento bom e um investimento ruim de capital; é tudo apenas capital e
tudo é homogêneo.
Ignora-se o fato de que cada ser humano possui uma
capacidade criativa ímpar e específica, a qual o permite continuamente perceber
e descobrir novas oportunidades de lucro. Todas as informações são
conhecidas e nada se altera; tudo é estático.
O empreendedorismo consiste na capacidade
tipicamente humana de criar e descobrir novos meios e fins, e é a mais
importante característica da natureza humana.
E isso é ignorado pela economia neoclássica.
E os economistas atuais se baseiam exatamente nesta versão
utópica para fazer suas políticas econômicas.]
Neste mundo imaginário, o amanhã não é diferente do
hoje, nenhum desajuste pode surgir, e não há a necessidade de qualquer ação
empresarial. A conduta dos negócios não exige qualquer iniciativa; ela é um
processo automático executado inconscientemente por autômatos impelidos por instintos
misteriosos. Para economistas (e, também, para leigos discutindo questões
econômicas), não existe outra maneira de conceber o que está acontecendo no
mundo real, em constante alteração, do que contrastá-lo desta maneira com um
mundo fictício de estabilidade e ausência de mudanças.
Em uma metáfora emprestada da teoria da mecânica, os
economistas matemáticos chamam a economia uniformemente circular de estado
estático, rotulam as condições que nela predominam de equilíbrio, e classificam
qualquer desvio deste equilíbrio de desequilíbrio.
Esta forma de expressar sugere que há algo de
incorreto no próprio fato de que sempre há desequilíbrio na economia real, e
que o estado de equilíbrio nunca ocorre de fato. O estado hipotético meramente
imaginado do equilíbrio imperturbado é retratado como o estado mais desejável
da realidade.
Neste sentido, alguns autores chamam a concorrência,
tal como prevalece na economia mutável, de concorrência imperfeita [N. do E.:
sendo que a concorrência
perfeita é outro delírio neoclássico].
A verdade é que a concorrência só pode existir em uma
economia mutável. Sua função é exatamente eliminar o desequilíbrio e gerar uma
tendência em direção à obtenção do equilíbrio. Não pode existir concorrência em
um estado de equilíbrio estático porque neste estado não existe um ponto no
qual um concorrente pode interferir de modo a executar algo que satisfaça mais
os consumidores do que o que já é feito.
A própria definição de equilíbrio implica que não
existe qualquer desajuste no sistema econômico, e, consequentemente, não há a
necessidade de se tomar qualquer atitude para acabar com estes desajustes, de
qualquer atividade empresarial, de lucros e prejuízos empresariais.
É precisamente esta ausência de lucros que faz com
que os economistas matemáticos considerem o estado do equilíbrio inalterado um
estado ideal, pois são influenciados pelo preconceito de que os empresários
seriam parasitas inúteis, e o lucro, um ganho injusto.
Neste estado de equilíbrio, o homem não é impelido a
qualquer ação, pois uma ação pressupõe a sensação de algum tipo de desconforto,
já que sua única meta é a remoção do desconforto.
A analogia com o estado de perfeição é óbvia. O
indivíduo plenamente satisfeito não tem propósito, não age, não tem incentivo
para pensar, passa seus dias gozando tranquilamente a vida. Se essa existência
digna de um conto de fadas é ou não algo desejável está ainda para ser
determinado. O que é certo é que os homens de carne e osso jamais podem obter
este estado de perfeição e equilíbrio.
E não é menos certo que, após sofrerem com as
agruras das imperfeições da vida real, as pessoas sonharão com esta realização
plena de todos os seus desejos. Isto explica as origens deste elogio emocional
ao equilíbrio e a condenação ao desequilíbrio.
O único serviço a que este constructo imaginário se
presta é provocar um grande alívio à busca incessante dos homens que vivem e
agem pela maior melhoria possível de suas condições. Para o observador
científico imparcial não há nada de questionável em sua descrição do
desequilíbrio. É apenas o zelo pró-socialista apaixonado dos pseudo-economistas
matemáticos que transforma uma ferramenta puramente analítica da economia
lógica em uma imagem utópica de um estado das coisas bom e desejável.
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