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Economia

Um giro pelos EUA: hoje, a inflação é mundial e começa por lá

Biden e o Federal Reserve estão no comando da bagunça

10/06/2021

Um giro pelos EUA: hoje, a inflação é mundial e começa por lá

Biden e o Federal Reserve estão no comando da bagunça

Um observador mais cínico diria que o Federal Reserve (o Banco Central americano) e o governo Joe Biden parecem estar se esforçando ao máximo para solapar a economia americana por meio de uma variedade de políticas insanas e destrutivas. 

Tanto o governo federal quanto o Fed, ao defenderem as políticas adotadas, renegam verdades econômicas óbvias, dentre as quais os próprios dados sobre inflação de preços que eles mesmos divulgam.

Para começar, vejamos a evolução da oferta monetária americana:

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Gráfico 1: evolução do M2 nos EUA

Desde o início de 2020, cinco trilhões de dólares adicionais foram criados pelo Fed e despejados na economia (observe que, na crise financeira de 2008, ao contrário do senso comum, não houve nenhuma inflação monetária atípica).

O objetivo desta política era claro: superar os efeitos econômicos adversos gerados pelos lockdowns por meio da impressão de moeda. 

Embora não faça sentido nenhum dizer que "se todos ficarem parados e o governo imprimir moeda, a economia continuará funcionando", foi exatamente isso o que foi feito.

Além desta inaudita impressão monetária, o governo Biden aprovou um novo auxílio emergencial que, para se colocar em perspectiva, é maior que o PIB brasileiro: equivalente a R$ 10 trilhões, ante R$ 8 trilhões de toda a produção de bens e serviços brasileira em um ano.

Mas não parou por aí. Também anunciou um plano de gastos para "gerar empregos, melhorar a infraestrutura pública e combater o aquecimento global". São US$ 2 trilhões adicionais a serem gastos em oito anos.

Na própria imprensa já estão dizendo que todo o pacote de estímulos custará US$ 4 trilhões.

Dólar em queda, commodities em alta, carestia no resto do mundo

A primeira e mais imediata consequência destas medidas foi o enfraquecimento do dólar. O índice DXY — que compara a moeda norte-americana ao euro, ao iene, à libra esterlina, ao dólar canadense, à coroa sueca e ao franco suíço — regrediu a valores do início de 2015.

A outra consequência, diretamente ligada ao enfraquecimento mundial do dólar, é o encarecimento geral das commodities. Todas as commodities (de minério de ferro a petróleo, passando por aço, cobre, soja, trigo, milho, madeira etc.) são precificadas em dólar. Sendo assim, sempre que o dólar se enfraquece, os preços das commodities aumentam, e vice-versa. Sempre.

Segundo recente reportagem de capa do The Wall Street Journal:

A explosão nos preços das commodities está gerando fortes preocupações sobre a recuperação econômica global, afetando as finanças de empresas e famílias, e aumentando os temores de que a inflação pode se tornar um fenômeno mais persistente.

O mundo não via tamanho aumento nos preços das commodities desde alguns meses imediatamente antes da crise financeira global de 2008. Antes disso, tamanho aumento foi vivenciado apenas na década de 1970. 

Madeira, minério de ferro e cobre estão nas máximas históricas. Milho, soja e trigo saltaram para os maiores níveis em oito anos. E o barril de petróleo saltou de US$ 20 para US$ 72 nos últimos 12 meses.

Uma das causas da forte alta recente do petróleo é que o governo Biden revogou a licença para a construção do Gasoduto Keystone, que seria construído entre Alberta, no Canadá, e as refinarias do estado americano de Nebraska. Ali, ele seria conectado à rede já existente de oleodutos nos EUA, chegando às refinarias do sul do Texas, quase na fronteira com o México. Uma vitória dos ambientalistas.

Adicionalmente, o governo Biden também vetou novos projetos de fracking no Alasca e em todas as terras federais do país.

Mesmo assim, o petróleo ainda não voltou às máximas, que foram alcançadas em meados de 2008.

No entanto, com a exceção do petróleo, todas as outras commodities (agrícolas, metálicas e pecuárias) estão próximas das máximas, como mostram os gráficos abaixo:

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Gráfico 2: evolução, em dólares, dos preços das commodities agrícolas

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Gráfico 3: evolução, em dólares, dos preços das commodities metálicas

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Gráfico 4: evolução, em dólares, dos preços das commodities pecuárias

Essa explosão nas commodities, em conjunto com um aumento na demanda dos consumidores (gerado pelo aumento da oferta monetária), se juntou a um forte colapso nas cadeias de suprimento (colapso este explicado em detalhes aqui), e está causando a atual carestia vivenciada ao redor do mundo.

Aqui no Brasil, o IPCA acumulado em 12 meses bateu 8%, valor não vivenciado desde 2016. Só no mês de maio, o aumento foi de 0,83%, o maior para o mês desde 1996, puxado majoritariamente por bens industriais, gasolina, diesel, alimentos e energia elétrica.

Nos EUA, a inflação de preços ao consumidor está em 5% ao ano, o que é uma enormidade para os padrões americanos. Embora tenha alcançado este valor por um breve período em 2008 (imediatamente antes da crise financeira mundial), a última vez em que o país vivenciou tais valores foi na década de 1980, quando a mensuração da inflação era mais rigorosa que a atual.

Até mesmo a China está demonstrando preocupação. O índice de preços ao produtor do país (fortemente influenciado pela carestia das commodities) está perto de 10% ao ano, o que também é um recorde. Pequim está tão preocupada, que, segundo a imprensa, já começou a flertar com a ideia de impor controle de preços — o que, obviamente, seria um completo desastre para a população chinesa.

Nos EUA, ninguém quer trabalhar

Para piorar este cenário de commodities e demanda alta em conjunto com uma oferta restrita, os americanos agora simplesmente estão se recusando a trabalhar. 

Com as pessoas desempregadas recebendo 300 dólares por semana para ficar em casa, as empresas estão tendo dificuldades para contratar pessoas. A situação é tão bizarra que o McDonald's passou a pagar 50 dólares apenas para a pessoa comparecer para uma entrevista de emprego.

Um editorial do The Wall Street Journal sintetiza a situação:

Empresas ao redor dos EUA afirmam estarem desesperadas por mão-de-obra, e a última evidência estatística são os dados do Departamento de Trabalho mostrando que, em abril, há um total de 9,3 milhões de postos de trabalho abertos sem terem sido preenchidos. Trata-se de um recorde. […] Desde 2000, quando começou esta coleta, nunca houve tamanho número.

Em abril, foram abertas 998 mil vagas de trabalho, incluindo 391 mil nos setores de lazer e hotelaria, 108 mil em comércio e transportes, e 102 mil nas indústrias, à medida que os estados foram abolindo as restrições impostas pela Covid-19. No entanto, houve apenas 69 mil contratações. Os empregadores conseguiram preencher apenas uma em cada 15 vagas.

O descasamento entre a oferta de mão-de-obra e a demanda por ela foi especialmente agudo na construção civil, em que as contratações caíram 107 mil ao mesmo tempo em que a abertura de novas vagas aumentou 23 mil. Na indústria, houve abertura de 102 mil novas vagas, mas apenas 38 mil pessoas foram contratadas. 

A escassez de mão-de-obra está contribuindo para os gargalos na cadeia de oferta e gerando preços mais altos para empresas e consumidores.

Como bem demonstra o editorial, uma consequência não-premeditada deste arranjo é uma possível aceleração da exportação de empregos para a China e para a Índia. 

Ainda antes da pandemia, empresas americanas já estavam reclamando de uma escassez de mão-de-obra qualificada para a indústria e para os setores mais tecnológicos, o que estava afetando a competitividade americana. Na atual situação, ficou ainda mais difícil para essas empresas encontrarem pessoas para operar fábricas de semi-condutores e desenvolver tecnologias de ponta.

Sem mão-de-obra disponível, as matrizes irão terceirizar suas operações para outros países. Se o Brasil souber se posicionar, pode gerar empregos qualificados aqui.

Negando o problema — e querendo mais

Além dos problemas no mercado de trabalho serem negados pelo governo americano, a secretária do Tesouro Janet Yellen afirma que a atual inflação de preços é transitória e os problemas de escassez de produtos são temporários.

Pior: ela está agitando por ainda mais gastos, como se o atual orçamento de 6 trilhões de dólares para o ano fiscal de 2022, o qual eleva o deficit para níveis nunca antes imaginados, não fosse o bastante.

Toda essa gastança, é claro, só está sendo possível porque o Fed passou a monetizar a dívida. Falando mais especificamente, o Tesouro emite títulos, bancos, investidores e fundos de investimento compram estes títulos, e em seguida o Fed compra estes títulos dos bancos, dos investidores e dos fundos de investimento. Antes, podia comprar apenas dos bancos (os chamados dealers). Hoje, pode comprar de qualquer um — mas só temporariamente, é claro.

Na mesma toda, o Fed também passou a dar dinheiro diretamente para pessoas e empresas. Até antes da Covid-19, isso era proibido. Agora, ficou liberado — em caráter temporário, dizem.

Isso é a Teoria Monetária Moderna na veia. É o mais próximo possível de um "dinheiro jogado de helicóptero".

Segundo o The Wall Street Journal:

Desde o início da pandemia, em fevereiro de 2020, o Fed já comprou 56% do total de títulos emitidos pelo Tesouro, que foi de US$ 4,5 trilhões no período. A compra de ativos pelo Fed representa 76% do déficit fiscal do governo federal. E o governo Biden está propondo um orçamento de US$ 6 trilhões para o ano de 2022, sendo que um terço deste valor simplesmente não será coberto por impostos.

O Fed de Jerome Powell, que durante os três primeiros anos do governo Trump vinha adotado uma política contracionista e reduzindo o balancete do Fed, reverteu sua postura e parece querer reviver o Fed da década de 1970.

Atualmente, a instituição está comprando títulos do governo, hipotecas e qualquer outro papel a um ritmo de US$ 150 bilhões por ano. Consequentemente, os ativos em posse do Fed saltaram de US$ 4 trilhões para US$ 8 trilhões.

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Gráfico 5: evolução dos ativos em posse do Fed

Bolhas em todos os lados

Tamanho aumento da oferta monetária distorceu o mercado de juros, que, por estarem em níveis historicamente baixos, está transformando poupadores em especuladores: sem serem recompensados por sua poupança, as pessoas saem comprando ações (inclusive de empresas falidas), imóveis, criptomoedas e qualquer outra coisa que possa trazer algum retorno.

A inflação generalizada de ativos é e sempre foi um fenômeno monetário. Ela ocorre quando um volume cada vez maior de dinheiro passa a perseguir um número limitado de produtos. Embora a inflação de preços ao consumidor ainda não esteja nos dois dígitos, a inflação dos preços das ações (veja o gráfico do índice S&P500), dos imóveis, dos bens de capital, das commodities e das criptomoedas é uma comprovação desta teoria. 

Para concluir o giro

O objetivo principal aqui foi meramente trazer um panorama da atual situação americana, a qual, inevitavelmente, afeta todo o resto do mundo.

O que está ocorrendo lá, ao menos por ora, é que a Teoria Monetária Moderna foi adotada com esteróides. Ela simplesmente infectou as cabeças do governo Biden. Boa parta da inflação de preços sentida no resto do mundo, em especial nas commodities, se origina dali. (A outra parte é coisa nossa, mesmo).

No momento, além de interromper a atual política de expansão monetária, a solução de curto prazo mais efetiva para todo o mundo seria realmente os EUA (e também o mundo) reabrirem toda a economia, estimularem a volta à produção e acabarem com o auxílio de 300 dólares por semana, para que ao menos a atual escassez de produtos fosse mitigada.

Mas isso depende dos americanos.

Para os brasileiros, a boa notícia é que o Banco Central daqui parece estar se dando conta de que a Teoria Monetária Moderna não é um luxo ao qual podemos nos entregar com a mesma despreocupação dos americanos (afinal, eles têm a moeda mais demandada do mundo, ao contrário do real). 

Ao passo que, por lá, a expansão monetária continua, por aqui ela parece estar sendo interrompida

Já é um começo.

Sobre o autor

Anthony P. Geller

É formado em economia pela Universidade de Illinois, possui mestrado pela Columbia University em Nova York e é Chartered Financial Analyst credenciado pelo CFA Institute.

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