Em
breve será publicado meu novo livro
Dos Protoaustríacos a Menger: Uma
Breve História das Origens da Escola Austríaca de Economia.
Na
introdução, escrita à guisa de exórdio, procuro advertir para alguns pontos que
julguei relevantes, não apenas para que se possa compreender a mensagem do
livro, mas também para que — dentro de objetivos mais amplos — se passe a
lidar com obras de História em geral.
É,
naturalmente, um livro sobre a História do Pensamento da Escola Austríaca,
desde suas origens pós-escolásticas até aquele que é considerado, com justiça,
o fundador dessa fascinante abordagem da Economia, das Ciências Sociais, da
Filosofia Política, do Direito e, de modo mais abrangente, da Filosofia e da
própria vida. Nosso percurso, portanto, abrangerá cerca de seis séculos de
História, que vão do século XIV ao final do século XIX.
Por
esse motivo, cabem algumas reflexões, colhidas de diversos autores e de minha
própria experiência, sobre Teoria Econômica e História, para que não caiamos no
erro comum de julgar cada pensador apresentado no livro como se ele estivesse
vivo hoje, como se fosse nosso contemporâneo, como se pudéssemos falar com ele
pelo Skype ou pelo celular. É claro que não é assim e vou
tentar explicar por quê.
O
grande filósofo espanhol do século XX José Ortega y Gasset sustentava que a
História é um sistema, com um papel muito importante, pois é por
meio de seu estudo que, conhecendo o ambiente, os usos e costumes dos pensadores
do passado, podemos compreender adequadamente o presente, para que no futuro
tentemos evitar o que não deu certo, procurar apreender o que deu certo e,
então, aplicar nosso conhecimento ao estado das artes vigente que, certamente,
mudou em relação ao dos estudiosos do passado.
Na
verdade, nem a Escola Austríaca nem qualquer outra, em qualquer área
científica, jamais foram corpos unificados de pensamento: foram e ainda são
muito mais conjuntos de fragmentos colhidos aqui e ali, de diversos autores e
que com o passar do tempo foram constituindo um corpo comum de conhecimentos,
compartilhado pelos estudiosos de cada tendência.
Ora,
isso pode ser escrito de outra forma: a História — para usarmos a linguagem de
Hayek (e que foi sugerida por Menger em 1871) — é uma ordem espontânea,
ou seja, um processo dinâmico de acontecimentos e decisões movidos pela ação
humana, porém sem que obedeçam a estruturas previamente planejadas.
Mergulhar,
portanto, na História, é estudar a ação humana dos nossos antepassados,
aprender em que erraram e acertaram e investigar porque erraram e acertaram, de
acordo com as circunstâncias das épocas em que viveram. A História, assim como
a linguagem e os mercados, são processos de tentativas e erros, são procedimentos
de descobertas dinâmicos e permanentes.
Estudar
a História é, portanto, investigar a ação humana pretérita, nos campos da
Economia, da Filosofia Política, do Direito, da Política e, consequentemente,
do poder — que, aliás, nada mais é do que a dimensão política da ação humana,
como demonstra magnificamente, em Potere
- La dimensione politica dell'azione umana (ed.
por Rubbettino em 2013), o professor italiano Lorenzo Infantino, da
Faculdade de Economia LUISS Guido Carli, de Roma.
Agrada-me
o alerta do Prof.
Peter J. Boettke, da George Mason University, na
Virgínia, um dos austríacos de maior renome acadêmico da atualidade, que no
capítulo 11 (Back to the future: Austrian economics in the twenty-first
century) e no Prefácio do livro Handbook
on Contemporary Austrian Economic,
adverte com bastante propriedade que a Escola Austríaca contemporânea não é um
corpo unificado de pensamento e que seria um grande erro sugerir que é.
Boettke é o autor de Living Economics: yesterday, today
and tomorrow. Esse
livro ganhou, em novembro de 2012, o Prêmio de melhor livro sobre a Escola
Austríaca, concedido pela Foundation for Economic Education (FEE) em
associação com a Society for Development of Austrian Economics (SDAE).
Nele o autor introduz a ideia de que a ciência econômica afeta todas as esferas
da vida, nos mercados, em uma cabine de voto, em uma igreja, em família ou em
qualquer atividade humana.
O
Prof. Boettke acredita que a economia não é apenas um jogo para ser jogado por
profissionais inteligentes, mas uma disciplina que aborda as questões práticas
mais urgentes em qualquer momento histórico. Na economia, estão em jogo a
riqueza e a pobreza das nações e a extensão e a qualidade de nossas vidas gira
em torno das condições econômicas que nos condicionam. E, mais que tudo, que a
Ciência Econômica não é um corpo consolidado, uma rocha, mas que ela vive, vale
dizer, transforma-se e se aprimora ao longo do tempo.
Vejamos
o que escreve no Prefácio:
Kirznerianos,
rothbardianos e lachmannianos são vários rótulos que têm sido utilizados para
caracterizar indivíduos e as suas contribuições. Misesianos e hayekianos são
metaetiquetas que têm sido muitas vezes usadas por amigos e inimigos das
respectivas vertentes de pensamento dentro da Escola Austríaca Moderna. Da
forma como a enxergo, a Economia Austríaca contemporânea é um programa de
pesquisas progressivo e não um corpo resolvido de pensamento e esse é o único
caminho a seguir - o que significa que não devemos nos preocupar com a
fidelidade às obras de qualquer pensador passado ou presente e sim em apenas
buscar a verdade tal como a enxergarmos, acharmos e tomarmos ideias produtivas
onde quer que possamos encontrá-las.
Na
verdade, não há nada de novo nessa afirmativa. Esta era a maneira como Mises e
Hayek enxergavam as ciências sociais. O cruzamento das ideias de Menger e
Böhm-Bawerk com as de economistas ingleses como Wicksteed (tinturas austríacas)
ou mesmo Mill (cuja famosa quarta proposição fundamental influenciou
a Teoria Austríaca do Capital), economistas suecos como Wicksell (de quem a
Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos absorveu o conceito de taxa
natural de juros), economistas franceses como Turgot e Bastiat, belgas como
De Molinari, italianos como Bandini, Galiani e Delfico, espanhóis (como a
maioria dos mais proeminentes pós-escolásticos e, no século XIX, Jaime Balmes) e
economistas americanos (como Knight e Clark), era a melhor alternativa que
Mises e Hayek vislumbravam a respeito da atividade intelectual de um
economista.
Tal
cruzamento não significa completa concordância ou consistência, mas sim uma
seleção capaz de melhorar as concepções sobre a economia.
O
famoso historiador inglês Quentin Skinner, em Meaning
and Understanding in the History of Ideas, antecipava o mesmo alerta a respeito
do erro de considerarmos a História como um sistema fechado, que aqui
repito: "Este procedimento dá aos
pensamentos de vários escritores clássicos uma coerência e um ar geral de um
sistema fechado, que podem nunca ter alcançado ou até mesmo sido feitos para
alcançar".
Deveria
ser senso comum que a compreensão de textos escritos há cem, duzentos,
trezentos ou mais anos, pressupõe a compreensão tanto do que seus autores
tinham a intenção de dizer, como da maneira que esses autores desejavam que
suas ideias fossem tomadas. Logo, a capacidade de compreender um texto deve ser
também a de compreender tanto a intenção a ser compreendida como a intenção de
como deve ser entendida.
A
questão essencial com que nos confrontamos ao estudar qualquer texto, é o que o
seu autor, no momento em que escreveu para o público que pretendia alcançar,
desejava comunicar alguma ideia ou proposta. Portanto, o objetivo essencial de
qualquer tentativa de compreender as afirmativas do autor, deve ser o de
identificar essa sua complexa intenção.
Consequentemente,
a metodologia apropriada para a história das ideias deve se preocupar, antes de
qualquer outra coisa, com a demarcação de todo o conjunto de comunicações que
poderia ter sido convencionalmente realizado por ocasião do enunciado dado pelo
autor e, depois, com o delineamento das relações entre o enunciado dado e o
contexto linguístico mais amplo, como um meio de decodificar a intenção real do
pensador.
Existe
uma crença quase metafísica a que a mitologia da coerência —
isto é, a de que as doutrinas são corpos unificados de pensamento —, dá
origem: ela leva a se esperar de um escritor que não apenas mostre
coerência interna — que se transforma, assim, em um dever
de cada intérprete revelar —, mas também que todas as barreiras aparentes a
essa revelação, constituídas por quaisquer contradições aparentes que o
trabalho do escritor possa sugerir conter, não podem ser barreiras de fato,
simplesmente porque não podem existir contradições.
Uma
vítima constante dessa mitologia da coerência, inclusive por parte
de muitos austríacos, é Hayek. Tenho lido muitas críticas a ele no sentido de
que teria sido um "social democrata" ou um "intervencionista", o que os leva a
classificar Hayek simplesmente como um teórico liberal do século XX; entretanto,
o que esses críticos deixam em segundo plano é que os pontos de vista dele e,
principalmente, o público para quem escrevia e as circunstâncias da época em
que ele tinha quarenta anos, em plena era dos autoritarismos, eram
completamente diferentes de seus pontos de vista, do público e das
circunstâncias existentes quando ele tinha oitenta anos.
Skinner
explica que se podem identificar dois postulados positivos e gerais. O primeiro
diz respeito aos métodos adequados para estudar a história das ideias: por um
lado, é um erro escrever biografias intelectuais concentrando-se nas obras de
um determinado escritor, ou escrever histórias de ideias analisando a
morfologia de um determinado conceito ao longo do tempo. Esse tipo de estudo é
inadequado. Por outro lado, isso não nos permite concluir, como às vezes se
afirma, que nenhuma forma particular de se estudar a história das ideias é mais
satisfatória do que qualquer outra.
Skinner
sugere então uma metodologia alternativa, que não seja sujeita a qualquer
dessas inadequações. O que ele sugere, em poucas palavras, é que a compreensão
de textos pressupõe a compreensão tanto do que eles tinham a intenção de dizer
e de como este significado era destinado pelo autor a ser tomado.
Outra
observação geral refere-se ao valor de se estudar a história das ideias. A
possibilidade mais interessante, ao discutir tanto as causas das ações como as
condições para compreender as propostas científicas, é a de um diálogo entre a
discussão filosófica e as evidências históricas.
Skinner
sugere um ponto importante sobre o valor filosófico de se estudar a história
das ideias. Por um lado ele deixa claro que qualquer tentativa de justificar o
estudo do tema em termos de problemas perenes e verdades
universais a serem aprendidas com os textos clássicos é ingênua.
Qualquer declaração de princípios é inevitavelmente a personificação de uma
intenção particular, em uma ocasião especial, dirigida à solução de um problema
particular, e, portanto, específica para a sua situação de uma forma que tentar
ignorar esse fato só pode ser sinal de ingenuidade.
A
implicação principal disso é que não é meramente que os textos clássicos não
possam estar preocupados com as nossas perguntas e respostas, mas apenas com as
de seus próprios autores; há também, a implicação de que só existem respostas
individuais a questões individuais, com tantas respostas quantas questões
diferentes e tantas perguntas quanto questionadores diferentes.
Não
há, consequentemente, nenhuma esperança de buscar o ponto certo no estudo da
história das ideias pela tentativa de aprender diretamente com os autores
clássicos, concentrando-se em suas tentativas de respostas a perguntas
supostamente intemporais.
Exigir
da história do pensamento uma solução para os nossos problemas imediatos é,
assim, incorrer em uma falácia não apenas metodológica, mas, no dizer de
Skinner, um erro moral. Mas aprender com o passado — e jamais
poderemos aprendê-lo em sua totalidade — a distinção entre o que é necessário
e o que é produto apenas de nossas próprias dúvidas momentâneas é a chave para
nossa própria autoconsciência.
Já
Rothbard lembra que em toda a obra de Mises está presente a tese de que são
as ideias que fazem a história, e não a história que faz as ideias. Mises
sabia que apenas ideias com bases sólidas podem servir de sustentáculos a
programas de ação econômicos e políticos capazes de alcançar os resultados
desejados. E sabia, naturalmente, que ideias derivadas de premissas e
lógicas equivocadas levam necessariamente a interpretações errôneas da
realidade e que essas ideias resultarão numa conduta que "não somente deixa de alcançar os
objetivos desejados por seus autores e defensores como também cria um estado de
coisas que - do ponto de vista das avaliações destes - é menos desejável do que
o estado de coisas anterior".
O
Prof. José Manuel Moreira (que me concedeu a honra de escrever o Posfácio de
meu modesto livro), na página 50 de sua tese de doutoramento (resumida), Filosofia
e metodologia da economia em
F. A. Hayek — ou, a descoberta de um caminho "terceiro" para
a compreensão e melhoria da ordem alargada da interacção humana [Universidade
do Porto, 1994, no terceiro tópico do capítulo I, em que trata de teoria e
história], ressalta com muita propriedade que:
Hayek
defenderá a complementaridade do tratamento histórico e teórico, mas ao mesmo
tempo manterá que a aspiração a tornar a história uma ciência teórica é em si
contraditória com uma outra exigência defendida por muitos historicistas (e
particularmente pelos marxistas), a de que a teoria deveria sempre ser
histórica.
E
prossegue o notável economista português esclarecendo que Hayek não negava que
a História lida com eventos únicos, singulares, isolados, mas que isso não é
uma característica exclusiva da história da humanidade. Por essa razão,
enfatizava que a distinção entre teoria e história não
tem conexão com a diferença entre os objetos concretos utilizados pelos dois
métodos e que, assim sendo, as duas espécies de conhecimento são necessárias
para que possamos compreender os fenômenos concretos, sejam eles da natureza ou
da sociedade humana.
Por
sua vez, Edward H. Kaplan, em sua resenha "Writing
History: Essay on Epistemology" ao livro de Paul Veyne, Writing
History: Essay on Epistemology escreve
que Veyne nega que a história seja uma ciência social, uma vez que qualquer
ciência verdadeira utiliza um conjunto de abstrações como objeto, enquanto a
História os fixa em elementos particulares concretos.
Para
Veyne, o historiador os compõe como "verdadeiras novelas" e assim se
parece mais com um romancista do que com um cientista. Isto porque, como o romancista
cria ficções às quais ele se esforça para dar uma aparência de verdade, ele
pode ter que realizar o tipo de pesquisa em documentos semelhantes aos
estudados normalmente pelo historiador. Este último, obviamente, não precisa
criar personagens ou incidentes, mas, tal como o romancista, ele tem que
decidir sobre algum "enredo" que se encaixe em sua narrativa. E
escreve:
Uma
ciência do homem é possível e até certo ponto já existe, mas a história não é e
não pode ser essa ciência. Tal ciência deve, Veyne argumenta (citando Mises,
Hayek e Schumpeter), ser praxeológica. Se os objetos da história são eventos
específicos, os objetos de uma verdadeira ciência humana devem ser abstrações
que podem ser manipuladas na mente, independentemente do mundo de onde foram
tiradas.
Por
fim, nunca é demais lembrar que uma das características da Escola Austríaca é o
individualismo metodológico.
Assim sendo, cada agente — e, no caso do livro, cada pensador — é um
indivíduo diferente dos demais, tanto nos aspectos objetivos como,
principalmente, nos subjetivos.
Ora,
esta característica das pessoas, elaborada cientificamente pela Escola
Austríaca mediante o individualismo metodológico, por si só já deve ser suficiente
para espantar a lenda da "mitologia da coerência", um fantasma muito mais em
conformidade com as ideias coletivistas do que com a defesa das liberdades
individuais.