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Quem quer pagar por um Conselho Profissional?

Se Conselho Profissional fosse bom, ninguém seria obrigado, por lei, a pagar por ele

17/07/2019

Quem quer pagar por um Conselho Profissional?

Se Conselho Profissional fosse bom, ninguém seria obrigado, por lei, a pagar por ele

Nota do Editor

O governo apresentou à Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional (PEC) para alterar a legislação voltada aos conselhos profissionais. O texto tira a obrigatoriedade de adesão dos profissionais em alguns casos e limita poderes das entidades. 

A proposta foi enviada aos parlamentares e assinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

De acordo com o texto, os profissionais não precisam integrar os conselhos sem que a ausência de uma regulação específica gere risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social.

O texto também limita a atuação das entidades ao dizer que a discussão sobre os conselhos não deve criar obstáculos ao desenvolvimento econômico e social do país. "É vedado aos conselhos profissionais promover, facilitar ou influenciar a adoção de práticas anticompetitivas em sua área de atuação", afirma a PEC.

A proposta prevê ainda uma lei federal que disporá sobre a criação dos conselhos, os princípios de transparência aplicáveis, a delimitação dos poderes de fiscalização e de aplicação de sanções e o valor máximo de taxas, anuidades e multas. 

Embora ainda tímida, trata-se de uma excelente medida rumo ao caminho certo. 

Abaixo, um texto sobre isso, publicado em 2017.

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Apesar da resistência das corporações, posicionamentos contrários aos privilégios concedidos a determinados grupos vêm ganhando força no debate público.

O "imposto sindical", por exemplo, que financia entidades de trabalhadores e empregadores, tornou-se facultativo com a aprovação da reforma trabalhista -- resta saber se a mudança vai sobreviver à pressão dos grupos de interesse e ao esforço do presidente Temer para se manter no poder.

Um tema, contudo, acabou ficando de fora das discussões a respeito da modernização do mercado de trabalho brasileiro: a obrigatoriedade do registro profissional e do pagamento de anuidade aos respectivos Conselhos Profissionais.

Conselhos Profissionais, também chamados de Conselhos de Classe, são entidades formadas por membros de cada profissão, representando os interesses destes. Em tese, sua função é registrar, fiscalizar e disciplinar a respectiva profissão que representa. Na prática, são "autarquias especiais ou corporativas" que usufruem poderes monopolistas garantidos pelo governo federal por meio de leis específicas de acordo com cada profissão (veja três exemplos aqui, aqui e aqui).

Falando mais diretamente, os Conselhos impõem que só pode exercer aquela profissão o indivíduo diplomado, devidamente registrado no Conselho e que esteja com as anuidades em dia (a anuidade é obrigatória). Qualquer pessoa não-diplomada e não filiada ao Conselho -- ou seja, que não paga anuidade --, está proibida de exercer tal profissão, por mais qualificada que seja.

Pode-se dizer, portanto, que Conselhos são entidades coercivas que utilizam o estado para impedir justamente os não-diplomados e não-afiliados de exercerem sua profissão.

A justificativa

A existência dessas entidades é justificada, do ponto de vista da teoria econômica convencional, pela presença de 'assimetrias de informações' no mercado: como a sociedade não disporia de informações suficientes a respeito da qualificação de um profissional, caberia a um Conselho registrar os trabalhadores qualificados para o exercício da profissão, assim como fiscalizar a atuação desses profissionais.

Por trás de um objetivo tão nobre, porém, o que observamos na prática são corporações usufruindo reservas de mercado com o objetivo de fortalecer as respectivas categorias profissionais, seus salários e, acima de tudo, a si próprias: afinal, os Conselhos são regiamente financiados pela anuidade compulsória paga pelos trabalhadores registrados.

O argumento mais recorrente em defesa dos Conselhos é o de que, naquelas poucas carreiras que envolvem um saber técnico muito específico, cujo desconhecimento pode colocar a população em perigo físico -- como na área de saúde ou de engenharia --, a regulamentação protegeria a sociedade de maus profissionais e a auxiliaria na tomada das melhores decisões.

Mas isso não necessariamente é assim. Para começar, há o fato de que a própria burocracia inerente à corporação (mais sobre isso abaixo) representa um obstáculo à devida fiscalização dos profissionais. Em segundo, e ainda mais importante, tal justificativa ignora os efeitos benéficos da livre concorrência.

Como dito neste artigo:

Em primeiro lugar, é bom deixar claro que pessoas diplomadas também cometem erros crassos, principalmente em medicina e engenharia. Em segundo, as pessoas que querem seguir essas áreas podem sim obter um diploma e utilizá-lo como diferencial no mercado.  Mas nada impediria que os não diplomados também tentassem mostrar sua competência. 

A chave de tudo, mais uma vez, chama-se concorrência. É isso que determinaria a qualidade dos serviços. As próprias entidades de classe poderiam -- no interesse da defesa de sua própria imagem -- criar registros com os nomes das pessoas de fato capacitadas para determinados serviços. Seria do interesse dela fazer com que os profissionais da sua área fossem os melhores. Afinal, um profissional ruim mancharia toda a reputação da classe. 

Essa solução privada já existe hoje em várias áreas: a Microsoft solta certificados de qualificação de programação que o mercado exige; a SAP também. Da mesma forma, o CREA e seus concorrentes provavelmente teriam de instituir certificações para engenheiros, arquitetos etc.

Na área médica, hospitais e empresas de seguro saúde também seriam forçadas pelo mercado a instituir suas certificações próprias.

Mas nada seria compulsório.

Ou seja, o argumento de que certas profissões necessitam de regulamentação estatal para proteger o consumidor contra maus profissionais é falho por pressupor que, em um ambiente de livre mercado, seria inexistente qualquer tipo de auto-regulação ou certificação profissional. Não apenas existiria, como também certamente seria muito mais eficiente, pois não seria monopolizada por uma entidade apenas, e sim descentralizada entre várias. E a concorrência forçaria cada uma delas a ter de construir uma reputação perante os consumidores e até mesmo diante dos próprios profissionais certificados.

Ineficiências kafkianas

De maneira geral, as atividades dos Conselhos são apenas fonte de ineficiência econômica, seja pela burocracia que criam, seja pelas reservas de mercado que conquistam. Os vários Conselhos, trabalhando para suas respectivas categorias profissionais, acabam gerando um resultado que pode ser ruim para a sociedade como um todo, ao menos do ponto de vista de eficiência econômica.

Para começar, a regulamentação estatal de profissões não tem como assegurar a competência de nenhum profissional regulamentado, pois os Conselhos criados e protegidos pelo governo para exercer essa função são compostos pelos próprios profissionais, o que gera incentivos ao corporativismo e à criação de barreiras à entrada de concorrentes. 

Depois, sobra também para o consumidor. Afinal, quando é estabelecido para as empresas um número mínimo de profissionais com uma determinada formação ou um piso salarial para uma dada categoria, isto pode significar maiores custos, os quais, por sua vez, serão repassados aos preços finais, reduzindo, assim, o acesso dos consumidores às mercadorias ofertadas por aquelas empresas.

O resultado será tão pior quanto maior for a capacidade dos Conselhos de criarem reservas de mercado: uma eventual tentativa de redução de custos por parte das empresas pode prejudicar profissionais de categorias não-regulamentadas ou de Conselhos politicamente mais fracos, que não conseguiram impor reservas de mercado para a categoria que representa.

É importante ressaltar que os diferentes pleitos das mais diversas categorias profissionais são perfeitamente legítimos. Entretanto, não deveriam ser patrocinados pelo estado -- a regulamentação das profissões, como dito, é estabelecida por lei e a anuidade é uma obrigação parafiscal de natureza tributária.

Até porque, quando as entidades que coordenam esses pleitos não nascem por iniciativa dos próprios profissionais, mas são filhas de um estado paternalista, como no caso brasileiro, o que se vê é uma inversão de papéis digna de uma tragicomédia kafkiana: não são os Conselhos que existem para representar e servir os profissionais, mas os profissionais que parecem existir para suportar os Conselhos.

Isso porque as anuidades pagas pelos profissionais sustentam uma burocracia que, muitas vezes, existe apenas para garantir que os profissionais continuem pagando as anuidades. Criada a entidade burocrática, ela passa a atuar, principalmente, para garantir a própria sobrevivência, buscando comprar, com financiamento compulsório, uma legitimidade que nem sempre lhe é conferida espontaneamente pela respectiva categoria profissional.

Isso vai contra tudo aquilo que se observa em associações voluntárias, nas quais tende a haver maior engajamento por parte dos associados, que têm maior clareza a respeito dos custos e benefícios e podem escolher entre participar ou não da associação.

O financiamento compulsório sempre acaba criando entidades ricas e politicamente relevantes, muitas vezes capturadas por interesses particulares que não necessariamente coincidem com os dos profissionais que as financiam. Atender aos pleitos de um Conselho forte acaba sendo uma forma interessante de políticos garantirem votos.

Mesmo quando parece bom, é ruim

Em suma: mesmo quando bem-sucedidos na defesa das respectivas categorias, os Conselhos, ao protegerem grupos específicos, acabam gerando custos excessivos e, com isso, prejudicando a sociedade como um todo -- fenômeno este que, no mínimo, não deveria ser patrocinado pelo estado.

A situação é especialmente lamentável em categorias cuja área de atuação profissional, por sua abrangência, é de definição mais complexa e de fiscalização praticamente impossível, como, por exemplo, no caso dos economistas e dos administradores -- embora, mesmo nas demais categorias, como as da área de saúde, a atuação dessas entidades possa ser prejudicial, elevando custos e reduzindo a oferta de produtos e serviços.

Os Conselhos Profissionais no Brasil, pode-se dizer, representam mais um exemplo do que os economistas Marcos Lisboa e Zeina Latif denominaram "sociedade da meia entrada" --  institucionalização de um esquema pelo qual os mais diversos grupos sociais disputam benefícios e proteção do estado.

Conclusão

Foi Milton Friedman quem melhor sintetizou a situação:

O licenciamento muitas vezes estabelece essencialmente o mesmo tipo de regulamentação das guildas medievais, nas quais o estado atribui poderes aos membros da profissão. Na prática, as considerações envolvidas na concessão de uma licença não têm, até onde o leigo pode julgar, qualquer relação com a competência profissional. Isso não é de surpreender. Se alguns poucos indivíduos vão decidir se outros podem ou não exercer determinada profissão, todo tipo de considerações irrelevantes pode muito bem ser levado em conta.

O custo social mais óbvio consiste em que uma destas medidas -- registro, certificação ou licenciamento -- quase inevitavelmente se torna um instrumento nas mãos de um grupo produtor especial para a obtenção de uma posição de monopólio às expensas do resto do público. Não há meios de evitar esse resultado.

As pessoas mais interessadas nesse tipo de procedimento e as que maior pressão exercem para sua adoção serão aquelas que pertencem à profissão ou ao ramo de negócio envolvido. Inevitavelmente, estenderão a pressão do registro para a certificação e desta para o licenciamento. Uma vez estabelecida a necessidade de licenciamento, as pessoas que possam ter alguma intenção de alterar os regulamentos existentes serão impedidas de poder exercer sua influência. Não obterão licença; terão, portanto, que passar para outras profissões e perderão o interesse. 

O resultado será o controle da entrada na profissão pelos membros da própria profissão e, portanto, o estabelecimento de um monopólio.

Como explicou o professor André Luiz Ramos, uma eventual desregulamentação não significa que qualquer profissão será exercida por qualquer despreparado. Em um ambiente de livre concorrência, surgirão entidades (associações, certificadoras etc.) que exigirão requisitos para a filiação (voluntária) de interessados. E existirão profissionais que optarão por não se filiar a nenhuma dessas entidades. Essas associações/certificadoras e esses profissionais independentes vão competir pelos clientes livremente, e para tanto vão procurar sempre apresentar mais e melhores qualidades.

Obviamente, alguns consumidores preferirão contratar um profissional com formação universitária e filiado a uma entidade respeitada, pagando mais caro pelos seus serviços. Já outros consumidores poderão perfeitamente optar por contratar profissionais independentes e autodidatas, pagando menos. Isso vale para qualquer profissão.

Superar a crise e o atraso do país passa necessariamente por reduzir a burocracia e acabar com os privilégios concedidos a determinados grupos. Ademais, a liberdade de escolha, como regra geral, tende a dar mais opções à população e gerar alocações mais eficientes dos recursos escassos.

Quer, portanto, um conselho profissional? Passe a questionar a obrigatoriedade do pagamento da anuidade aos Conselhos Profissionais. Você estudou, trabalhou, adquiriu experiência e, com raras exceções, não é um simples registro que será capaz de dizer se você está apto ou não para desempenhar a sua profissão. O mercado de trabalho, por si só, tem plenas condições de avaliar isso.

No caso de muitos Conselhos Profissionais, aquela máxima a respeito dos conselhos -- "se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia" -- é invertida: se Conselho Profissional fosse bom, não seríamos obrigados, por lei, a pagar por eles.

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Sobre o autor

Vitor Augusto Meira França

É economista pela USP, mestre em Economia pela FGV-SP e professor universitário.

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