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Economia

Bancos não podem criar dinheiro

07/09/2012

Bancos não podem criar dinheiro

No que diz respeito a alguns assuntos monetários, praticamente todos os economistas seguidores da Escola Austríaca concordam entre si.  Bancos centrais e o produto que eles criam -- papel-moeda de curso forçado -- são instituições inflacionárias que geram distúrbios na economia e que não servem a nenhuma outra função senão redistribuir renda dentro da sociedade.

O papel-moeda de curso forçado é um arranjo inerentemente estatista porque precisa ser constantemente protegido por meio de leis que impõem o seu curso forçado e por outras formas de intervenção governamental.

O papel-moeda pode ser produzido em quantidades virtualmente ilimitadas pelas impressoras dos bancos centrais.  Essa inflação monetária beneficia aqueles que primeiro recebem esse dinheiro recém-criado e destrói a economia em decorrência dos ciclos econômicos que causa.  Por conseguinte, os bancos centrais deveriam ser abolidos o mais rapidamente possível.

Alternativas superiores aos bancos centrais estão prontamente disponíveis.  Especificamente, metais como ouro e prata podem ser produzidos em termos puramente de livre mercado, isto é, sem necessitar de nenhuma forma de privilégio legal; e suas quantidades dependem muito menos dos caprichos arbitrários de qualquer ser humano.  Nenhuma medida ou reforma especial são necessárias para criar um sistema de moedas metálicas, pois moedas de ouro e prata tendem a surgir espontaneamente em mercado genuinamente livre -- como mostra a história.  A principal medida de uma reforma monetária libertária é, portanto, abolir imediatamente todas as formas de controle monopolista da moeda (como leis que impõem seu curso forçado, os impostos sobre metais etc.).  Ademais, todos os governos deveriam devolver todo o ouro e a prata que confiscaram de seus cidadãos quando estabeleceram seus papéis-moedas nacionais.

Em relação a um ponto vital, entretanto, os economistas austríacos não chegaram a um consenso, e esta discordância tem produzido um intenso e dinâmico debate ao longo dos anos.  Esse debate não está relacionado especificamente à produção de uma moeda metálica ou a qual tipo de metal deve ser utilizado como dinheiro; ele se refere mais minuciosamente ao fenômeno da criação de dinheiro feita por fornecedores de serviços financeiros, como bancos comerciais.  Para entender a questão, é útil fazermos uma distinção entre três tipos de serviços financeiros ou bancários.

Bancos de crédito (ou bancos de investimento)

Os bancos atuam como intermediadores financeiros quando pegam emprestado dinheiro do indivíduo X e em seguida emprestam esse dinheiro para o indivíduo Y.  Note que, nesse empreendimento, em todas as etapas está claro quem é o dono do dinheiro.  Antes de emprestar seu dinheiro para o banco, X é o proprietário exclusivo desse dinheiro.  Ao emprestá-lo para o banco, X abre mão do direito de utilizar o dinheiro pela duração de tempo estipulada no contrato, e concede esse direito ao banco.  O banco então irá emprestar esse dinheiro a Y, desta forma também renunciando ao seu direito de utilizar o dinheiro e concedendo esse direito a Y pela duração de tempo estipulada no contrato.  No tempo presente, portanto, Y é o proprietário legítimo do dinheiro.

Em algum momento futuro, reivindicações contraditórias de propriedade sobre o dinheiro podem surgir caso o crédito concedido por X ao banco tenha um período de duração menor do que o crédito concedido pelo banco a Y.  Cumprir tais reivindicações contraditórias seria uma impossibilidade física.  Há apenas um objeto físico (o dinheiro), porém duas ou mais pessoas desejam utilizá-lo para propósitos distintos.  Do ponto de vista jurídico, reivindicações contraditórias normalmente geram litígios.  Economicamente, elas geram um estado de desequilíbrio, pois pelo menos um dos lados litigantes terá seus projetos prejudicados.

Porém, de novo, no tempo presente, somente Y possui uma reivindicação válida sobre o dinheiro, pois no momento ele é o proprietário legítimo do dinheiro.  Não há reivindicações contraditórias no início da transação creditícia.  E o banco certamente fará de tudo para impedir litígios futuros adequando a duração de seu crédito para B -- seja obtendo um prolongamento do empréstimo concedido por A ou obtendo mais crédito por meio de outro cliente.

Bancos de depósito

Os bancos incorrem em atividades de depósito quando aceitam o dinheiro de um cliente apenas para guardá-lo -- porque o cliente, por exemplo, imagina ser mais seguro guardar o dinheiro no banco do que no cofre de sua casa.  Nesse caso, o banco atua essencialmente como um armazém, que nada mais faz do que guardar o dinheiro e emitir um recibo ou um certificado de armazenamento, o qual é entregue para o depositante.  O banco não tem o direito de utilizar esse dinheiro.  Ao contrário, o cliente detém todos os direitos de uso do dinheiro para si próprio, querendo do banco apenas o serviço de armazenamento do dinheiro.  Tal serviço certamente será cobrado, muito embora seja concebível, por exemplo, que os bancos ofertem-no gratuitamente para aqueles clientes que também incorram em frequentes operações de crédito.  Evidentemente, nos bancos de depósito não pode haver reivindicações contraditórias sobre o dinheiro.  Em todos os momentos, o cliente retém propriedade e controle totais sobre o dinheiro.

Ter seu dinheiro pronto para ser vendido (em troca de bens ou serviços) a qualquer momento -- é assim que um proprietário de dinheiro utiliza seu dinheiro.  Disso decorre que os depositantes querem utilizar seu dinheiro constantemente.  É apenas uma questão meramente técnica se eles vão querer manter o dinheiro guardado em suas carteiras ou se vão deixar a custódia sob os cuidados de um banco.  Essa escolha não afeta o comportamento deles.  Em ambos os casos, eles planejam e agem sob a firme crença de que podem utilizar seu dinheiro a qualquer momento.

Depositantes podem utilizar seu dinheiro depositado no banco de duas maneiras: eles podem apresentar seus recibos de armazenamento ao banco e demandar a restituição do dinheiro, com o qual irão comprar bens e serviços; ou podem utilizar os próprios recibos de armazenamento em troca de bens e serviços, desta forma evitando a viagem ao banco.  Com o intuito de facilitar esse último tipo de transação, os bancos normalmente padronizam e aprimoram os recibos de várias maneiras.  Por exemplo, eles criam recibos de papel específico para determinadas quantias de prata (como cinco, dez e quinze onças), eles utilizam um papel especial para dificultar a falsificação, e por aí vai.  Foi desta forma que as tradicionais cédulas de dinheiro surgiram.  Entretanto, vários outros instrumentos, como contas-correntes ou, mais recentemente, cartões de débito, possuem o mesmo propósito: são títulos sobre uma determinada soma de dinheiro atualmente existente.

Observe que, nos bancos de depósito, todos os recibos são totalmente lastreados pela exata quantia de dinheiro que eles cobrem.  Um banco de depósito é necessariamente um "banco com 100% de reservas", assim como qualquer armazém tem de operar com 100% de reservas.  E um banco que incorra em ambas as atividades -- isto é, banco de depósito e banco de crédito -- também é um banco com 100% de reservas, pois todos os recibos (títulos de reivindicação sobre o dinheiro) que ele emitiu estão, a qualquer momento, completamente lastreados pelo dinheiro que está em seus cofres.  Não é possível haver reivindicações contraditórias sobre o dinheiro que está guardado nos cofres dos bancos.  Portanto, nem bancos de depósito nem bancos de crédito per se produzem litígios, e nenhum deles implica desequilíbrio econômico. 

Bancos de reservas fracionárias

Os bancos praticam reservas fracionárias quando se apossam de parte do dinheiro depositado e o utilizam para a concessão de crédito.  Eles podem fazer isso de duas maneiras: emprestando diretamente o dinheiro que foi depositado ou criando recibos de armazenamento em uma quantia maior do que o total de dinheiro que há em seus cofres.  Por exemplo, os clientes do Banco RF (BRF) depositaram nele $1.000, e o BRF correspondentemente emitiu recibos (ou criou contas-correntes) no valor total de $1.000. 

Ato contínuo, o banco concede um crédito de $500 para João, "criando" uma conta corrente em seu nome em um valor de $500.  Essa medida imediatamente cria uma situação na qual existem reivindicações contraditórias sobre o dinheiro físico existente.  Os depositantes continuam em posse de recibos que lhe conferem a propriedade sobre $1.000, pois em momento algum eles renunciaram ao seu direito sobre a quantia total de seus depósitos.  Porém, João agora também possui um título sobre $500.  Claramente, é impossível que todos esses títulos de reivindicação sejam satisfeitos pela quantidade existente de dinheiro nos cofres do banco.

Em nível jurídico, essa situação está propensa a acabar em litígio.  Em nível econômico, ela implica imediatamente um desequilíbrio, pois os depositantes agem como se eles realmente controlassem a quantia total de seus depósitos, e João age como se ele controlasse outros $500.  Os membros dessa pequena comunidade se comportam como se houvesse mais recursos do que realmente existem.  Em suma, eles se tornaram vítimas de uma ilusão.  A ilusão pode durar algum tempo por causa da seguinte circunstância: os depositantes raramente pedem a imediata restituição em dinheiro de todos os seus recibos de armazenamento.  Esse dinheiro não-reclamado é exatamente o dinheiro que os bancos podem utilizar para incorrer em reservas fracionárias.

O debate

O debate entre os economistas austríacos está centrado nesse último tipo de prática bancária.  Durante muito tempo, a visão austríaca padrão rejeitava a prática bancária de reservas fracionárias.  Desde a publicação de seu livro The Theory of Money and Credit, em 1912, Ludwig von Mises (1980, 1998) rejeitou a prática bancária das reservas fracionárias por razões econômicas.  F. A. Hayek seguiu o mesmo caminho (1929, 1931, 1937), pelo menos em suas primeiras obras sobre questões monetárias.  Já Murray Rothbard (1983, 1990, 1991, 1993, 1994) rejeitava a prática por questões econômicas e éticas.[1]

Desvios dessa ortodoxia começaram com Lawrence H. White em seu livro de 1984, Free Banking in Britain e em obras posteriores (1989, 1999).  A defesa feita por White das reservas fracionárias foi ampliada e sistematizada por seu aluno George Selgin (1988) em The Theory of Free Banking, bem como em uma posterior coleção de artigos (1996).  Vários outros autores se juntarem ao grupo, mas nenhum exerceu a mesma influência.  Exceto pelos escritos de Rothbard (1988) e Walter Block (1988), praticamente ninguém defendeu a posição ortodoxa no final dos anos 1980 e início dos anos 1990.  Assim, a defesa do sistema bancário de reservas fracionárias, operando em um ambiente sem um banco central, estava a ponto de se tornar um princípio da ortodoxia austríaca, ao menos no que dizia respeito às obras publicadas.  Foi esse sucesso de White e Selgin que despertou interesse em suas obras e levou outros acadêmicos austríacos a analisarem criticamente seus argumentos.[2]

Até hoje, White e Selgin responderam apenas de modo bastante incompleto a essas críticas[3].  Sendo assim, no restante deste artigo, limitarei minha exposição a alguns dos principais argumentos que convincentemente demonstram os problemas inerentes a um sistema bancário de reservas fracionárias.

Sustentabilidade e deterioração institucional

A primeira coisa a ser observada é que um sistema bancário de reservas fracionárias não pode ser visto como algo desconectado de bancos centrais, papeis-moeda de curso forçado e instituições monetárias internacionais, como o FMI.  Em última instância, essas instituições são tentativas fracassadas de resolver os problemas gerados pelo sistema bancário de reservas fracionárias.  Elas foram criadas com o intuito de centralizar todas as reservas em dinheiro e para permitir que os bancos pudessem, em determinados momentos, se recusar a restituir em dinheiro as demandas de seus depositantes.

O principal problema dos bancos que praticam reservas fracionárias é que eles, a todo e qualquer momento, encontram-se virtualmente insolventes -- pois seus passivos monetários são sempre maiores do que a quantidade de dinheiro em seus cofres.[4] Se muitos clientes exigirem a restituição de seus depósitos em dinheiro, o banco estará condenado.  Pode-se alegar que o banco sempre tentará manter em seus cofres uma quantia de dinheiro suficiente para satisfazer as demandas por restituição.  Porém, exatamente qual quantia de dinheiro é "suficiente"?  Por causa da incerteza inerente a todos os empreendimentos humanos, não há uma maneira cognitiva de o banco responder a essa pergunta.  Tudo o que ele pode fazer é incorrer no método de tentativa e erro.  E, nesse processo, ele tentará diminuir ao máximo possível a proporção de suas reservas em relação ao seu passivo, pois fazer isso é uma maneira de ganhar vantagem frente à concorrência dos outros bancos.  Obviamente, tal empreendimento intensifica a probabilidade de que, um dia, ele ficará com uma quantia menos do que suficiente de dinheiro para restituir seus depositantes.

Ademais, a quebra de um banco que pratica reservas fracionárias pode desencadear a quebra de vários outros bancos que também praticam reservas fracionárias, como um efeito dominó.  Várias crises bancárias do passado realmente geraram um efeito dominó, e culminaram no colapso de todo o sistema bancário.

A vulnerabilidade de todo o sistema bancário serviu de argumentação poderosa tanto para a regulamentação do setor bancário quanto para o estabelecimento de bancos centrais, os quais supostamente deveriam fornecer "liquidez" para o sistema em momentos de adversidade.  Entretanto, o banco central criar dinheiro para resolver "problemas de liquidez" é uma medida que dura apenas por um determinado tempo.  Tão logo os bancos se acostumam a serem prontamente socorridos com grandes quantias de dinheiro em situações de emergência, eles perdem o medo de tais situações e começam a emitir recibos de armazenamento -- isto é, a criar contas-correntes para empréstimos sem lastro -- em escalas cada vez maiores.  Assim, ao invés de solucionar os problemas do sistema bancário de reservas fracionárias, os bancos centrais apenas exacerbam o risco moral e multiplicam esses problemas.

A mesma bagunça foi gerada por todas as tentativas de se resolver esse problema causado por bancos centrais por meio da criação de bancos centrais internacionais, papel-moeda de curso forçado e outras invenções.  Em suma, um sistema bancário de reservas fracionárias é insustentável, e não pode ser salvo ou aprimorado por outros esquemas.  No entanto, ele permite a criação de políticas ilimitadas, as quais no passado foram apoderadas pelos inimigos da propriedade privada e da livre iniciativa para que estes pudessem criar um número cada vez maior de instituições políticas centralizadoras.

Os supostos benefícios da reservas fracionárias

Os únicos beneficiários permanentes do sistema bancário de reservas fracionários são os próprios banqueiros -- que são protegidos da concorrência por meio de barreiras à livre entrada no mercado bancário e de outras regulamentações -- e os vários governos, que possuem um ávido interesse em ter acesso imediato a um dinheiro "adicional".  E o fornecimento desse dinheiro extra é algo que bancos que operam com 100% de reservas não podem oferecer.

Tentativas de equilibrar os custos e benefícios do sistema bancário de reservas fracionárias, "olhando de uma perspectiva puramente econômica", apenas obscurecem o fato de que tal esquema é amplamente favorável ao enriquecimento de vários grupos de interesse.  O fato incontestável é que o sistema bancário de reservas fracionárias cria ganhadores e perdedores.  Com efeito, nas ciências econômicas, os termos 'custos' e 'benefícios' se referem à ação humana individual.  Custos são os custos de oportunidade derivados da ação de um indivíduo, e benefícios também são sempre os benefícios gerados para um indivíduo.  Se uma instituição cria benefícios para alguns membros da sociedade ao mesmo tempo em que piora a situação de outras pessoas, então simplesmente não há bases para a afirmação de que, "de uma perspectiva puramente econômica", os benefícios justificam os custos ou os riscos ou qualquer outra coisa.

Tal é o caso dos supostos benefícios do sistema bancário de reservas fracionárias.  Vamos supor, em prol da argumentação, que o sistema bancário de reservas fracionárias estimule a industrialização.  Disso não se pode concluir que esse tipo de arranjo bancário seja algo bom.  Algumas pessoas -- por exemplo, os banqueiros, empreendedores sem propriedade, e o governo -- irão lucrar com uma industrialização rápida e financiada pelos bancos.  Entretanto, outras pessoas -- por exemplo, donos de propriedades, capitalistas-empreendedores e artesãos utilizando tecnologia tradicional -- ficarão em desvantagem em decorrência de tal crescimento artificial.  Não há nenhuma base científica para a afirmação de que o primeiro grupo deve ser privilegiado em detrimento do segundo. 

Ademais, embora provavelmente seja verdade que o sistema bancário de reservas fracionárias promova a industrialização, não é verdade que ele promova o crescimento econômico.  O crescimento econômico depende, é fato, de uma maior "abundância" ou de um "aprimoramento" dos bens a serem utilizados pelos indivíduos.  Independente de qual seja a escala de valores do indivíduo, o crescimento depende da quantidade disponível de fatores de produção e da sagacidade como esses fatores são combinados entre si.  Claramente, imprimir dinheiro não aumenta a quantidade de fatores necessária para a produção, tampouco aprimora a capacidade empreendedorial.  Disso se conclui que, na melhor das hipóteses, bancos que praticam reservas fracionárias jogam a economia em um diferente caminho de crescimento; eles redirecionam a renda de modo a produzir um diferente tipo de crescimento; mas eles não aumentam -- e nem são capazes de aumentar -- o crescimento geral de economia.

Também é errado supor que o sistema bancário de reservas fracionárias seja particularmente adequado para "ajustar" a oferta monetária em resposta a mudanças na demanda, da parte dos indivíduos, por mais dinheiro em seus encaixes -- isto é, quando as pessoas decidem reter mais dinheiro consigo.  O motivo é que, antes de tudo, nenhum ajuste especial é necessário.  Quando alguém aumenta sua demanda por mais dinheiro, isso significa que ele está disposto a pagar um preço maior para obter dinheiro ou -- o que dá no mesmo -- que ele quer um preço maior para o dinheiro que ele está vendendo.  Em ambos os casos, o aumento dessa demanda por dinheiro aumenta seu poder de compra, equilibrando desta forma a demanda e a oferta de dinheiro.  E o mesmo é válido, obviamente, para o caso de uma redução na demanda por dinheiro.

Portanto, a oferta de dinheiro não precisa ser ajustada à demanda por dinheiro.  Ao contrário de todas as outras mercadorias, o dinheiro constantemente se ajusta por si mesmo às condições do mercado.  Os serviços prestados por qualquer unidade de dinheiro são constantemente ajustados sob o impacto das mudanças na demanda e oferta de dinheiro.  É claro que tal ajuste automático não se dá em benefício de todos.  Nenhum ajuste consegue tal proeza, e nenhum arranjo institucional, como o sistema bancário de reservas fracionárias, pode alterar esse fato.

Reservas fracionárias e os ciclos econômicos

Conclui-se que é errada a afirmação de que um aumento na oferta de dinheiro fiduciário (recibos fiduciários, isto é, recibos de armazenamento em uma quantia maior do que o total de dinheiro real nos cofres dos bancos) pode "contrabalançar" um aumento na demanda por dinheiro.  Aumentos na demanda por dinheiro se neutralizam sozinhos.  O real impacto da criação de recibos fiduciários adicionais vem em duas partes.

Por um lado, a criação de recibos fiduciários adicionais reduz o poder de compra do dinheiro -- um efeito igual ao que ocorreria caso houvesse um aumento no dinheiro propriamente dito, o dinheiro real.  Por outro lado, entretanto, e em distinto contraste com aumentos na oferta de dinheiro real (no caso, um dinheiro metálico), recibos fiduciários adicionais geram um ciclo econômico.  Como já mencionado, tão logo esses recibos são criados, as pessoas começam a agir de maneiras incompatíveis com a real oferta de bens na economia.  Essa reação é precisamente o que está no cerne daquilo que os economistas chamam de desequilíbrio.

Um aumento na oferta de dinheiro real (dinheiro metálico) não gera um desequilíbrio porque os participantes do mercado podem antecipar o impacto que essa quantidade adicional de dinheiro terá sobre os preços e também porque, normalmente, é explícito quem é o proprietário de cada nova unidade monetária.[5]

Os participantes de mercado podem também antecipar o impacto que a criação de recibos fiduciários adicionais terá sobre os preços.  Entretanto, embora normalmente seja claro quem é o proprietário de cada recibo, de modo algum é claro quem é o dono do dinheiro ao qual tais recibos se referem.  Existem mais recibos do que dinheiro.  Eis aqui a contradição.  Eis aqui a raiz do desequilíbrio gerado pelo sistema bancário de reservas fracionárias.

Paulo possui $1.000 em sua conta-corrente.  Todos os seus empreendimentos e todos os seus gastos com consumo se baseiam nesse valor que ele crê possuir em sua conta-corrente.  Roberto pensa e age da mesma forma.  Ele possui $2.000 em sua conta-corrente.  Entretanto, o banco na realidade possui apenas $500 em seus cofres.  Trata-se de um banco que pratica reservas fracionárias; todo o seu negócio se baseia na esperança de que Paulo e Roberto jamais irão, em conjunto, pedir a restituição em dinheiro de grande parte de seus recibos. 

Assim, resta a pergunta: enquanto esse esquema funcionar, vale a pena se preocupar com ele?  Será que a realidade é algo diferente daquilo que as pessoas acreditam ser real?

Defensores do sistema bancário de reservas fracionárias implicitamente endossam a ideia de que 'realidade' é aquilo que as pessoas creem ser real.  Partindo do óbvio fato de que o indivíduo que mantém em sua posse um recibo de depósito deseja manter consigo esse recibo, os defensores deduzem que as pessoas adquirem recibos de depósito não porque eles sejam um meio conveniente de portar dinheiro, mas sim porque elas querem portar esses recibos per se.  Assim, para esses defensores, não há absolutamente nenhuma diferença fundamental entre uma unidade de dinheiro real e um recibo que se refere a esse dinheiro.  Tanto o dinheiro real quanto o recibo são formas de "dinheiro".  Ambos se diferem um do outro apenas em grau, não em tipo. 

Afirmo que essa crença é uma absurdidade que precisa apenas ser explicitada para se tornar óbvia.  Existe uma diferença fundamental entre um pedaço de propriedade e um recibo -- por exemplo, entre uma onça de ouro e um recibo de armazenamento para uma onça de ouro; ou (hoje) entre uma cédula de dinheiro e um cheque que dá a alguém a propriedade sobre uma cédula.  Similarmente, há uma diferença fundamental entre um título que é redimível agora e um título que se torna redimível apenas no futuro.  Apenas uma propriedade física e evidente pode de fato ser poupada ou investida, ao passo que o uso de recibos de depósito (instantaneamente redimíveis em dinheiro) apenas nos faz crer que realmente poupamos ou investimos algo.

Por sua própria natureza, o sistema bancário de reservas fracionárias cria uma diferença entre o que existe de fato e o que as pessoas creem que existe.  Ele faz as pessoas pensarem que estão em uma situação melhor do que realmente estão -- e essa convicção desencadeia a fase expansionista do ciclo econômico.  Entretanto, mais cedo ou mais tarde, quando as pessoas descobrem que, em seus empreendimentos, elas se basearam em coisas que não existiam, a recessão inevitavelmente chega.

Um sistema bancário de reservas fracionárias honesto

O sistema bancário de reservas fracionárias nada mais é do que um esquema Ponzi em larga escala.  Ele enriquece alguns à custa de outros.  Ele gera distúrbios econômicos e serve como instrumento auxiliar dos governos e de outros grupos de interesse.

O melhor argumento a favor do sistema bancário de reservas fracionárias invoca a liberdade de escolha e de contrato.  Deveria o sistema de reservas fracionárias ser proibido caso todos os agentes envolvidos soubessem o que estão fazendo?  Não, não deveria, pois nenhuma lei deveria suprimir qualquer atividade insensata apenas porque ela é insensata.  Porém, sejamos mais específicos sobre o que a frase "todos os agentes envolvidos soubessem o que estão fazendo" implicaria.  Bancos de reservas fracionárias teriam de utilizar uma linguagem diferente da que normalmente utilizam, pois palavras como "depósito" são enganosas.  Eles teriam de deixar claro que o dinheiro "depositado" junto a eles é, na verdade, um crédito de duração não especificada.  E os "recibos de armazenagem" que eles emitem teriam de ser apresentados não como dinheiro mas como algum tipo extremamente líquido de nota promissória.  Assim, bancos de reservas fracionárias honestos teriam de instruir seus clientes mais ou menos da seguinte forma:

Quando você deposita seu ouro em nosso Banco RF, você abre mão da sua propriedade sobre ele por um período de tempo indefinido.  Nós nos tornamos os proprietários do ouro e podemos utilizá-lo da maneira que mais nos aprouver.  Em troca, damos a você "recibos RF" no valor da quantia total do seu depósito, pagamos a você x% de juros sobre o investimento, e prometemos fazer o possível para restituir seu investimento em ouro quando você o demandar.  Se por algum motivo não formos capazes de fazer tal restituição, a seguinte regra se aplica...

Nos "recibos RF", haveria uma nota promissória do seguinte tipo:

O Banco RF promete ao portador desse recibo tentar restituí-lo com o ouro de nossas reservas.  Porém, como os recibos RF não são 100% lastreados pelo ouro que presentemente se encontra em nosso banco, em caso de impossibilidade de restituição, as seguintes regras se aplicam...

É perda de tempo especular sobre o sucesso que o sistema bancário de reservas fracionárias teria caso apresentasse explicitamente essas cláusulas, as quais não existem hoje.  Em uma economia livre, o arranjo estipulado poderia de fato ser atraente como um investimento com uma combinação específica de riscos e benefícios, porém é fato que ele claramente em nada beneficiaria o indivíduo que apenas tem a intenção de manter dinheiro consigo.

As pessoas mantêm dinheiro consigo porque elas querem ter a certeza de que o dinheiro vai estar ali quando precisarem dele (caso contrário, já teriam se desfeito dele há muito tempo).  É, portanto, seguro dizer que um sistema bancário de reservas fracionárias honesto teria uma existência apenas marginal em uma economia genuinamente livre.


Veja também:

O sistema bancário de reservas fracionárias

O sistema bancário brasileiro e seus detalhes quase nunca mencionados

Como funcionaria o padrão-ouro

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Notas

[1] Mises originalmente concedeu algumas vantagens para o sistema bancário de reservas fracionárias; porém, mais tarde, repudiou essa concessão.  No cômputo geral, ele sempre foi um sincero e aberto oponente dessa prática.  Sobre isso, ver o importante trabalho de Salerno (1993), em particular pp. 139ff.  Ver também Hülsmann (2000).

[2] Ver em particular Hoppe 1994; Huerta de Soto 1994, 1995, 1998a, e 1998b; Hülsmann 1996a, 1996b, e 1998; e Hoppe, Hülsmann, e Block 1998. Ver também Reisman 1996.

[3] Ver, por exemplo, Selgin and White 1996.

[4] Quanto a esse ponto, os defensores das reservas fracionárias normalmente dizem que há uma distinção legal entre insolvência e "falta de liquidez".  Sou incapaz de ver qualquer diferença econômica entre ambos os termos.

[5] Estritamente falando, essa afirmação é verdadeira apenas para dinheiro metálico (moeda-commodity), e não para dinheiro de papel de curso forçado.  Ver Hülsmann 1998.  Essa distinção pode ser ignorada aqui porque estamos interessados exclusivamente nas diferenças entre aumentos na oferta de dinheiro metálico e aumentos na oferta de recibos fiduciários.

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Sobre o autor

Jörg Guido Hülsmann

É membro sênior do Mises Institute e autor de Mises: The Last Knight of Liberalism.

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