Um leitor que acabou de descobrir nosso site pede-nos para fazermos
uma "análise profunda do SUS (sistema socialista de saúde do país) à luz da
extraordinária teoria de Mises".
Curiosamente,
ao se analisar o funcionamento do SUS à luz da teoria misesiana, conclui-se que
o real desafio está em perceber como uma medicina socializada afeta a oferta de
serviços de saúde privados. No caso do
Brasil, o desafio é perceber como o SUS afeta o funcionamento dos serviços fornecidos
pelos planos de saúde privados, e como as regulamentações impostas pelo governo
sobre as seguradoras de saúde ajudam a piorar todo a serviço de saúde do país.
No que
concerne ao funcionamento específico do SUS, ele em nada difere de qualquer
outro serviço socializado. Falar sobre
questões ligadas aos serviços de saúde é algo que desperta grandes paixões,
pois, por algum motivo, parte-se do princípio de que saúde é um direito do
cidadão (de quem é o dever é algo que não se comenta), e que, por conseguinte,
a oferta de serviços de saúde deve ser ilimitada.
Infelizmente,
porém, a realidade econômica não nos permite tais devaneios, e o fato de que
vivemos em um mundo de escassez é uma verdade válida também — e principalmente
— para os serviços de saúde.
Infelizmente. Se a escassez
pudesse ser extinta por meio do simples decreto governamental — como acreditam
os socialistas —, então estaríamos já há muito tempo de volta ao Jardim do
Éden.
Logo,
voltemos à realidade.
Quando se
deixa as paixões ideológicas de lado e busca-se apenas a verdade por meio da
razão e, consequentemente, da aplicação da genuína ciência econômica, nenhum
resultado é surpreendente. Mais
especificamente, o interesse aqui é discutir como a ciência econômica explica
os problemas inerentes a uma medicina socializada, sem fazer qualquer juízo de
valor. Afinal, economia não funciona de
acordo com sentimentalismos, e serviços médicos funcionam exatamente da mesma
maneira que qualquer outro setor de serviços na economia, por mais que as
pessoas se deixem levar pela emoção.
Os
libertários seguidores da doutrina dos direitos naturais — que dizem que cada
indivíduo tem o direito de não lhe tirarem a liberdade, a propriedade e a vida
— diriam que a medicina socializada não só é economicamente maléfica como
também é moralmente indefensável, pois baseia-se no roubo da propriedade alheia
para o financiamento dos serviços médicos.
Embora seja indiscutível que a medicina socializada baseia-se no roubo da
propriedade alheia, somente essa argumentação
não é muito promissora, pois a própria existência do governo baseia-se no
roubo. Logo, por coerência, pedir o fim
da medicina socializada implicaria também pedir a abolição do governo. Embora seja esse o desejo dos
anarcocapitalistas, é preciso reconhecer que tal postura não faria ninguém
vencer um debate econômico.
Logo,
argumentações puramente econômicas são necessárias para explicar por que
nenhuma medicina socializada pode ser de qualidade duradoura. (E, de fato, nenhum país que hoje possui medicina
socializada apresenta serviços de saúde invejáveis. Canadenses e britânicos que o digam,
para não citar os cubanos).
O princípio do SUS é igual ao de qualquer
medicina socializada
Serviços de
saúde socializados são defendidos e ofertados de acordo com o princípio de que
a saúde é um direito básico e indelével do cidadão, principalmente dos mais
pobres. Logo, o acesso aos serviços de
saúde deve ser gratuito ou quase gratuito, pois só assim os pobres podem ter
saúde em abundância.
O problema
é que até aí estamos apenas no terreno dos desejos, e não da realidade
econômica. É indiscutivelmente bonito
posar de defensor dos pobres e oprimidos, exigindo saúde gratuita para
eles. Porém, infelizmente, a realidade
econômica sempre insiste em se intrometer.
E a realidade econômica é que, sempre
que algo passa a ser ofertado gratuitamente, a quantidade demandada desse algo
passa a ser infinita. No caso
específico da saúde, sempre que serviços de saúde passam a ser gratuitos, a
quantidade desses serviços que as pessoas passam a querer consumir torna-se
praticamente infinita. E não poderia ser
diferente. De novo, trata-se de uma lei
econômica, e não de sentimentalismos.
A medicina
socializada é um caso clássico de intervenção que necessita de intervenções cada
vez maiores para ser mantida, até o momento em que tudo se esfacela em
decorrência da total imobilidade do setor regulado. Mises foi pioneiro em explicar a mecânica de
tal fenômeno, e é em sua explicação que vou me
basear.
Falando
especificamente do SUS, caso o governo apenas se limitasse a financiar — via
impostos extraídos da população — a oferta de serviços de saúde, a demanda por
consultas de rotina, testes de diagnósticos, procedimentos, hospitalizações e
cirurgias tornar-se-ia explosiva. Logo,
caso o governo nada fizesse, os custos gerados por tal demanda iriam
simplesmente estourar o orçamento do governo.
É aí que a
realidade econômica se impõe.
Como os
recursos para a saúde não são infinitos, mas a demanda é (pois a oferta é
"gratuita"), o governo logo se vê obrigado a impor vários controles de
custo. Os burocratas estabelecem um teto
de gastos na saúde que não pode ser superado.
Porém, apenas estabelecer um limite de gastos não é o suficiente para reduzir
a demanda. Assim, embora os custos
estejam agora limitados, a demanda por consultas, pedidos de testes de
diagnósticos, hospitalizações e cirurgias segue inabalada. Consequentemente, com oferta limitada e
demanda infinita, ocorre o inevitável: escassez. Ato contínuo, começam a surgir filas de
espera para tratamentos, cirurgias, remédios e até mesmo consultas de rotina.
O
agravamento de tais ocorrências faria com que o sistema inevitavelmente entrasse
em colapso. É aí que o governo passa,
então, a impor mais controles. No caso,
ele passa a controlar a demanda. Mais
especificamente, ele começa a "limitar" — por meio de várias burocracias
insidiosas — o número de visitas ao médico, o número de testes de
diagnósticos, o número de hospitalizações, cirurgias etc. Por exemplo, em alguns casos, um paciente é
atendido apenas quando um determinado conjunto de sintomas é perceptível. Em outros, uma hospitalização ou cirurgia
ocorre apenas se o paciente estiver acima de certa idade ou se estiver grávida
de um bebê deficiente. Em inúmeros
casos, o paciente simplesmente é rejeitado — popularmente, ficará na fila
esperando até desistir.
Outra
consequência inevitável do processo de controle de custos aparece nos salários
e nas compensações que o governo paga aos médicos do SUS, algo que é refletido
diretamente na qualidade dos serviços prestados. Afinal, profissionais mal remunerados
simplesmente não têm incentivos para trabalhar corretamente.
A medicina
socializada, portanto, baseia-se no mesmo princípio do controle de preços: a
oferta torna-se limitada e a demanda, infinita.
Como consequência, a qualidade dos serviços decai, os hospitais
tornam-se degradados e a escassez de objetos passa a ser uma inevitabilidade —
em alguns casos, faltam até sabonetes. (Tal realidade explica, por exemplo, os
constantes escândalos de funcionários de hospitais públicos extorquindo
pacientes, cobrando por fora em troca de remédios ou de pronto atendimento).
Tratamentos
ou atendimentos bem feitos ou mesmo satisfatórios tornam-se exceções em um sistema socializado de saúde.
Seguradoras
Nesse
ponto, o leitor mais iniciado pode estar pensando: "ora, dado esse cenário, o
governo deveria incentivar a medicina privada, pois ela desafogaria grande
parte dessa demanda pela saúde pública. No
mínimo, os mais endinheirados não mais estariam demandando os serviços do SUS."
Tal
raciocínio está parcialmente certo. De
um lado, é fato que o governo, ao contrário do livre mercado, sempre vê o
consumidor como algo aborrecedor. Ao
passo que, no livre mercado, as empresas estão sempre ávidas por consumidores
para os quais vender seus produtos, no setor público, o consumidor é apenas um
irritante demandante, um usuário esbanjador de recursos escassos. No livre mercado, o consumidor é o rei, e os
ofertantes estão sempre se esforçando para ganhar mais consumidores, com os
quais poderão lucrar caso forneçam bons serviços. No setor público, cada consumidor é visto
como alguém que está utilizando um bem em detrimento de outra pessoa. No livre mercado, todos os envolvidos em uma
transação voluntária ganham, e as empresas estão sempre ávidas para oferecer
seus produtos ao consumidor. No setor
público, o consumidor é apenas uma chateação para os burocratas.
E
é justamente por essas características do livre mercado que o governo não pode permitir um genuíno livre
mercado nos serviços de saúde. Para
entendermos o motivo, basta novamente utilizarmos a razão e aplicarmos a
genuína ciência econômica.
Assim,
o que ocorreria em um arranjo em que há contínua deterioração dos serviços de
saúde e os salários dos médicos são controlados pelo governo? A resposta é óbvia: os médicos iriam querer
fugir de tal sistema e passar a lidar diretamente com seus pacientes, sem
amarras burocráticas e sem regulamentações.
Ou seja, haveria uma fuga de médicos para a medicina totalmente privada,
em um arranjo de livre mercado.
Em
tal arranjo, obviamente, os médicos não apenas poderiam ganhar maiores
salários, como também teriam a liberdade de tratar seus pacientes de acordo com
seus próprios critérios médicos, o que iria lhes render ainda mais clientes e,
consequentemente, mais dinheiro. Na
medicina pública permaneceriam apenas os ruins e incapazes, algo péssimo para
qualquer democracia, um sistema em que políticos precisam de votos.
Sendo
assim, o governo fica numa encruzilhada.
Ao mesmo tempo em que deve desafogar o setor público de saúde, ele não
pode permitir que o setor privado crie grandes incentivos, sob pena de perder
seus melhores profissionais e, consequentemente, permitir a total deterioração da
medicina pública. Logo, ele precisa
criar um meio termo.
E
é assim que o governo entra em cena estipulando pesadas regulamentações sobre o
setor de planos de saúde, fazendo com que os serviços médicos fornecidos por
seguradoras sejam quase tão ruins quanto os do SUS.
Apenas
pense: o mercado de seguro-saúde é totalmente regulado pelo governo. Não há livre concorrência. Não é qualquer empresa que pode entrar no
mercado e ofertar seus serviços.
Houvesse livre entrada no setor, as seguradoras que oferecessem melhores
condições para os médicos conveniados certamente teriam os melhores
profissionais para seus clientes. Porém,
como é o governo quem decide quem entra no mercado (o que aniquila a livre
concorrência) e como é o governo quem estipula várias regras para o funcionamento
do setor, o que temos hoje são planos de saúde caros e que remuneram muito mal
os médicos conveniados. Há situações em
que ser médico da rede pública — geralmente de sistemas estaduais ou, em
alguns casos, municipais — é ainda melhor do que ser médico conveniado de
alguma seguradora.
Logo,
temos a seguinte situação:
1)
O sistema público de saúde é ruim, sofre de escassezes e os médicos são mal
pagos.
2)
O sistema privado de saúde é controlado pelas seguradoras, um ramo fortemente
regulado pelo governo, dentro do qual a concorrência é mínima. Logo, os médicos são mal remunerados pelas
seguradoras e os planos de saúde são caros e cobrem cada vez menos
eventualidades. Para ter maiores
benefícios, é necessário pagar apólices muito altas.
3)
O domínio das seguradoras obviamente criou um "mercado paralelo", em que
médicos particulares atendem diretamente seus clientes sem a intermediação de
seguradoras — e, consequentemente, cobrando bem mais caro, justamente por
causa dos incentivos criados pelas regulamentações sobre o setor de
seguros. Tais médicos, entretanto,
precisam ter grande renome e boa reputação para obter sua clientela cativa,
algo trabalhoso e demorado.
Desnecessário dizer que tal arranjo só é acessível para os mais ricos.
4)
Consequentemente, o sistema privado não
se torna, para boa parte dos médicos da rede pública, um sistema
substantivamente mais atraente que o sistema público, exatamente a intenção do
governo.
5)
Tal arranjo contém o êxodo de médicos da rede pública, o que impede o
esfacelamento do sistema.
6)
Apenas os realmente ricos conseguem contornar tais empecilhos, e geralmente
fazem suas consultas, internações e cirurgias sem o uso de seguradoras, lidando
diretamente com os médicos, sempre os melhores.
Estes, por sua vez, cobram caro justamente pelos motivos delineados no
item 3, a saber: porque não possuem concorrência para suas qualidades e também
porque sabem que possuem uma clientela cativa, composta daquelas poucas pessoas
que podem se dar ao luxo de não utilizar planos de saúde para pagar suas
cirurgias.
No
final, quem realmente perde são os mais pobres, justamente aqueles a quem os
amorosos defensores da saúde pública querem proteger. A medicina socializada destrói a qualidade
dos serviços médicos e, por causa das regulamentações estatais, encarece o
acesso à medicina privada. Os mais pobres
— aqueles que mais pagam
impostos em relação à sua renda — ficam privados de bons serviços médicos, serviços estes pelos quais eles pagaram a vida inteira.
Caso tivessem podido manter esse dinheiro para si, certamente poderiam
hoje estar usufruindo um melhor serviço de saúde.
Muitas
vezes um pobre tem seu acesso ao sistema público de saúde negado porque os
burocratas que controlam o sistema determinaram que outras pessoas estão mais
necessitadas do que ele; logo, estas têm mais direito àqueles serviços que ele
próprio ajudou a financiar via impostos.
A
ciência econômica mostra, portanto, que defender a medicina socializada é uma
perversidade.
Conclusão
Ainda
mantendo-nos fieis à ciência econômica, fica claro que o arranjo que melhor
atenderia a todos os necessitados seria justamente um arranjo de livre mercado. As pessoas seriam liberadas dos impostos,
podendo agora manter consigo boa parte daquilo que são obrigadas a dar para o
governo a fim de financiar um sistema de saúde que não presta serviços
decentes.
O
setor de seguros de saúde deve ser totalmente desregulamentado, havendo livre
entrada no mercado e, consequentemente, livre concorrência. Os preços dos planos de saúde cairiam e os
médicos agora passariam a ser remunerados de acordo com sua competência. Principalmente: haveria a livre negociação
entre médicos e pacientes, sem intromissões governamentais — algo que hoje só
ocorre entre médicos e pacientes ricos.
A medicina socializada não mais teria motivos para existir (como nunca
teve, aliás).
Por
fim, e ainda mais importante: nunca é demais enfatizar que a saúde é
responsabilidade de cada indivíduo, de cada família, sendo que todos devem ter
o direito de manter para si os frutos de seu trabalho e de poderem utilizar seu
dinheiro da forma que quiserem, tendo a liberdade de escolher os serviços
médicos que desejarem, e com a responsabilidade de encarar as consequências de
suas escolhas.
Não
há nada de radical ou novo nisso: afinal, esse é exatamente o princípio que
seguimos hoje quando escolhemos e compramos alimentos, roupas, carros,
computadores, celulares, iPads, iPods, iPhones, passagens aéreas, apartamentos
e tudo o mais. E, pelo menos até agora,
tal princípio vem funcionando com enorme sucesso. O fato de esse princípio (em outras palavras,
liberdade) ter sido abandonado na saúde e principalmente na educação apenas
mostra as tragédias que ocorrem quando nos desviamos dele.
Serviços
médicos funcionam exatamente da mesma maneira que qualquer outro setor de
serviços, por mais que as pessoas se deixem levar pela emoção. Ademais, pela lógica socialista, não faz
sentido pedir intervenção em serviços médicos e deixar, por exemplo, o setor
alimentício por conta do livre mercado.
Afinal, existe algo mais essencial do que comer? Porém, é exatamente por causa do livre
mercado que temos comida sempre disponível, para todos os gostos. Não importa a que horas você vá ao
supermercado, você sempre tem a certeza de que tudo estará ali. Tanto para
pobres quanto para ricos. Isso não é fascinante?
Sempre
que você quiser serviços de alta qualidade a preços baixos, você tem de ter um
livre mercado, uma livre concorrência. Não há nenhuma outra opção. Quem acha que ofertar bens gratuitamente, criar
uma montanha de regulamentações e impor controles de preços é a receita para
bons serviços, deve se preparar para uma grande decepção. Isso nunca funcionou em lugar nenhum do mundo.
Quem
realmente quer serviços médicos de qualidade para os pobres (e quem não quer?)
tem de defender um livre mercado nos serviços de saúde. Não há outra opção.
A
verdadeira ciência econômica explica.
__________________________________________
Leitura
indispensável:
Quatro medidas para melhorar
o sistema de saúde