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Filosofia

Por que não podíamos abolir a escravidão ontem e não podemos abolir o governo hoje

08/02/2011

Por que não podíamos abolir a escravidão ontem e não podemos abolir o governo hoje

A escravidão existiu por milhares de anos, em todos os tipos de sociedade e em todas as partes do mundo.  Imaginar como seria a vida social dos homens sem a escravidão era algo que exigia um esforço extraordinário.  Entretanto, de tempos em tempos, sempre surgiam alguns excêntricos que se opunham a ela, a maioria argumentando que a escravidão era uma monstruosidade moral e que, portanto, as pessoas deveriam aboli-la.  Tais pessoas geralmente provocavam diversas reações, que iam desde a galhofa educada até o escárnio ríspido, chegando até mesmo a agressões violentas.

Quando alguém se dava ao trabalho de fornecer alguns argumentos contra a abolição, várias ideias eram defendidas.  Na primeira coluna da tabela abaixo, listo dez dessas ideias que descobri ao longo de minhas pesquisas sobre o assunto.  Em um dado momento da história, incontáveis pessoas recorreram com naturalidade a uma ou mais das razões abaixo expostas para fundamentar sua oposição à abolição da escravidão. 

Entretanto, quando se analisa em retrospecto, esses argumentos nos parecem extremamente prosaicos -- parecem mais racionalizações (ato de se inventar possíveis razões para uma ação, razões essas que não se baseiam nas razões verdadeiras) do que argumentações lógicas.

Hoje, para praticamente qualquer pessoa, esses argumentos parecem ser, senão completamente enganosos, na melhor das hipóteses questionáveis ou não convincentes.  Atualmente, ninguém desenterra essas ideias -- ou o corolário delas -- para defender alguma proposta de se restabelecer a escravidão.  Embora vestígios de escravidão ainda existam no norte da África e em alguns outros poucos lugares, a ideia de que a escravidão é uma instituição social defensável está extinta.  Razões que há até pouco tempo pareciam fornecer fundamentos irrefutáveis para se opor à abolição da escravidão, hoje não provocam absolutamente nenhum impacto intelectual.

É estranho, entretanto, que essas mesmas e retrógradas ideias uma vez utilizadas para justificar a oposição à abolição da escravidão sejam hoje rotineiramente utilizadas para justificar a oposição à abolição do governo (como o conhecemos).  Anarquistas libertários ousados o bastante para já terem defendido sua proposta de abolir o estado certamente já terão lidado com muitos dos, senão todos, argumentos utilizados por séculos para dar sustento à escravidão.  Assim, fazemos uma lista paralela, como mostrada na segunda coluna da tabela.

Na tabela, minha constante repetição da enfadonha expressão "governo (como o conhecemos)" pode parecer esquisita, ou até mesmo irritante, mas optei por tributar a paciência do leitor dessa forma por um motivo.  Quando o cidadão comum encontra um defensor do anarquismo, sua imediata reação é identificar uma lista de funções críticas do governo -- preservação da ordem social, manutenção de um sistema legal para se resolver contendas e lidar com criminosos, proteção contra agressores estrangeiros, fiscalização e aplicação dos direitos de propriedade, defesa dos fracos e indefesos, produção e manutenção da infraestrutura econômica, e por aí vai.  Essa reação, entretanto, atira no alvo errado.

Anarquistas libertários não negam que tais funções sociais devam ser mantidas para o funcionamento exitoso de uma sociedade.  Entretanto, o que eles realmente negam é que necessitemos de um governo (como o conhecemos) para executá-las.  Anarquistas libertários preferem que essas funções sejam executadas por provedores privados com os quais os beneficiários tenham concordado em lidar.  Quando escrevo sobre o governo "como o conhecemos", estou me referindo à forma de governo monopolista e não consentida pelo indivíduo, forma essa que existe hoje em praticamente todos os lugares da terra.

Os leitores podem contestar dizendo que pelo menos algumas das formas existentes de governo de fato têm o consentimento das pessoas.  Mas eu pergunto: onde está a evidência?  Mostrem os contratos adequadamente assinados, com testemunhas e tudo.  A menos que todos os adultos que hoje estão submetidos a essa autoridade reivindicada pelo governo tenham voluntariamente e explicitamente aceitado serem governados em termos específicos, a única suposição lógica que resta é a de que os governantes simplesmente impuseram seu domínio. 

Declarações, propagandas, textos cívicos, pesquisas de opinião, conversas de boteco, eleições políticas e afins são irrelevantes e nada têm a ver com essa questão.  Ninguém pensaria em oferecer tais formas de evidência para mostrar que eu possuo um contrato válido com minha operadora de celular, que me provê serviços telefônicos.  Quando o governo do meu país, o governo do meu estado e a prefeitura da minha cidade irão me mandar os contratos para que eu possa assinar dizendo se concordo (ou não) em comprar seus "serviços" em termos mutuamente satisfatórios?

A similaridade entre os argumentos contra a abolição da escravidão e os argumentos contra a abolição do governo (como o conhecemos) deveria abalar a fé daqueles que ainda possuem a falsa ideia de que vivemos em um "governo do povo, pelo povo e para o povo".  Do meu ponto de vista, os argumentos pró-governo parecem lastimosamente iguais aos mesmos questionáveis e trôpegos fundamentos intelectuais que deram base à escravidão.

Argumentos Contra a Abolição da Escravidão e Argumentos Contra a Abolição do Governo (como o conhecemos)

A escravidão é natural.

O governo (como o conhecemos) é natural.

A escravidão sempre existiu.

O governo (como o conhecemos) sempre existiu.

Todas as sociedades do mundo têm escravidão.

Todas as sociedades do mundo têm um governo (como o conhecemos).

Os escravos não são capazes de cuidar de si próprios.

As pessoas não são capazes de cuidar de si próprias.

Sem seus mestres, os escravos morrerão em massa.

Sem o governo (como o conhecemos), as pessoas morrerão em massa.

Onde as pessoas comuns são livres, elas estão ainda piores que os escravos.

Onde as pessoas comuns não têm um governo (como o conhecemos), elas estão muito piores (por exemplo, na Somália).

Acabar com a escravidão iria ocasionar um grande derramamento de sangue e outras perversidades.

Acabar com o governo (como o conhecemos) iria ocasionar um grande derramamento de sangue e outras perversidades.

Sem a escravidão, os ex-escravos ficariam fora de controle, roubando, estuprando, matando e provocando o caos generalizado.

Sem o governo (como o conhecemos), as pessoas ficariam fora de controle, roubando, estuprando, matando e provocando o caos generalizado.

Tentar acabar com a escravidão é algo ridiculamente utópico e impraticável; somente um sonhador confuso e sem noção defenderia proposta tão absurda.

Tentar acabar com o governo (como o conhecemos) é algo ridiculamente utópico e impraticável; somente um sonhador confuso e sem noção defenderia proposta tão absurda.

Esqueça a abolição. Um plano muito melhor é manter os escravos suficientemente bem alimentados, bem vestidos, bem instalados e ocasionalmente entretidos, distraindo-os da exploração que sofrem e estimulando-os a se concentrar na boa perspectiva de vida que os aguarda daqui pra frente.

Esqueça o fim do estado. Um plano muito melhor é manter as pessoas comuns suficientemente bem alimentadas, bem vestidas, bem instaladas e ocasionalmente entretidas, distraindo-as da exploração que sofrem e estimulando-as a se concentrar na boa perspectiva de vida que as aguarda daqui pra frente.

 

Sobre o autor

Robert Higgs

É scholar adjunto do Mises Institute, é o diretor de pesquisa do Independent Institute.

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