O
Cine Belas-Artes, um velho cinema de São Paulo, está para fechar. É sempre
uma tristeza quando algo com o qual estamos habituados e temos laços
sentimentais vai embora. Por isso um grupo de amigos do velho cinema já clama
pelo seu tombamento, o que eternizaria o estabelecimento falido. Uma passeata
foi organizada; cem pessoas compareceram. Adesão menor que muita gincana de
colégio. Mas essas cem (mais milhares cujo amor pela causa só não é menor do
que o esforço de assinar petições online) fazem tanto barulho que se cogita
seriamente ceder à pressão dos manifestantes.
O caso todo é involuntariamente humorístico.
Até o diretor do Departamento do Patrimônio Histórico reconhece: "O caso não é
nada simples porque envolve um patrimônio cultural, mas também um prédio que,
em termos arquitetônicos, não tem especial valor". Em outras palavras, o caso é simples: um cinema velho e que dá
prejuízo vai fechar, mas alguns gatos pingados querem proibir o inevitável por
decreto.
No fundo o que está em jogo no "debate" sobre o
tombamento do Cine Belas-Artes é isso: tem gente (pouca gente) que quer
mantê-lo funcionando sem querer arcar com os custos. Então fazem barulho até convencer
os políticos a meter o dedo, isto é, forçar os outros a pagar. O sociólogo Carlos
Alberto Dória é explícito: "Por que os governos não se propuseram a ajudar no
pagamento de um aluguel mais alto?". Pedir que o governo pague um aluguel mais
alto significa pedir que toda a população pague para manter um cinema ao qual
poucos querem ir.
É sintomático da nossa forma de governo: não
ganha quem tem razão, e nem necessariamente a opinião da maioria; ganha quem
faz mais barulho. Então pode bem acontecer que um punhado de indignados de
internet consigam perpetuar um cinema falido sem tirar um Real do bolso. Digo,
um Real do bolso deles, pois pode ter certeza que alguém pagará o pato desse
inestimável patrimônio cultural. Ou o proprietário do terreno vai ter que se
conformar com um aluguel baixo por toda a eternidade ou o dinheiro (seja para
desapropriar o prédio ou para pagar um aluguel mais alto) virá dos impostos.
Alguém como o sociólogo supra-citado acredita
que o Belas-Artes seja um valor absoluto, uma entidade cuja própria existência
é necessária para a humanidade e sem a qual a vida não faria sentido, e que
portanto justifica enormes sacrifícios (dos outros). "Será que só agora
perceberam a importância do Belas Artes?" O que ele deveria ter dito é "Será
que só agora perceberam a importância do Belas Artes para mim?" Não é preciso ser um relativista pós-pós-pós-moderno
para ver que certas coisas importam para uns e não para outros. Toda a cultura
do tombamento ergue-se sobre uma impossível comparação de valorações subjetivas.
Como resolver esse impasse?
O mercado (ou seja, as transações voluntárias
entre pessoas livres) oferece a maneira mais eficiente e mais justa. O dono
decide acerca do que é seu. A solução óbvia dentro dessa perspectiva seria que
os próprios descontentes, reconhecendo que o cinema não se paga, se oferecessem
a pagar uma quantia maior pelo privilégio de frequentá-lo; talvez fizessem uma
vaquinha. Conversando com o dono do estabelecimento poderiam chegar a um valor
pelo qual ele topasse renovar o contrato. Caso o valor fosse muito alto,
perceberiam que, embora valorizem o cinema, não o valorizam a ponto de
sacrificar os recursos que ele necessita para se manter rentável; e nesse caso
é bom que ele feche as portas, para que os recursos nele utilizados possam ir a
destinações nas quais os desejos da população sejam mais bem atendidos.
O problema é que não sabemos essas destinações de
antemão; muitas delas nem existem ainda, então fica difícil angariar
manifestantes para a oposição. O tombamento é popular porque se apresenta como
uma medida sem custos. "Você gosta do Belas-Artes? Então eternize-o." O que se
preserva é bem conhecido, e o que nunca surgirá por causa do tombamento ninguém
ficará sabendo. Quem disse que o valor sentimental do Belas-Artes supera aquilo
do qual abriremos mão? Dado o baixo sucesso do cinema (e é por isso que ele
está fechando), não será muito difícil que os recursos (inclusive o espaço
físico) encontrem finalidades mais de acordo com os valores da população.
Por que os frequentadores assíduos não
aproveitam seus últimos dias para dar-lhe um terno adeus? O mundo muda. Ele
teve uma bela carreira de quase 70 anos, mais do que muitos outros. Tudo nasce,
cresce e morre. Algumas coisas duram mais do que outras; as pirâmides de Gizé
ainda estão aí (ao contrário das demais maravilhas clássicas); a Hobby Video na
qual passei felizes momentos da minha infância já se foi; é a vida. Há muitas
coisas novas que surgiram desde então e que só puderam surgir porque recursos
foram tirados de empreitadas velhas e deficitárias.
Por trás do tombamento há o desejo de tornar
eterno uma idiossincrasia histórica que é, por natureza, temporária. É arbitrário
cristalizar um estabelecimento querido num anseio vão de preservá-lo para todo
o sempre, mesmo contra os desejos expressos (por meio de ações) da população
que ele deveria servir. Se nossos antepassados pensassem assim, ainda
moraríamos sob a taipa. O velho vai embora, surge o novo; às vezes o novo é
pior - outras vezes, apesar da nostalgia que insiste em sobrevalorizar passado,
é melhor. A ânsia nostálgica de se transformar tudo em peça de museu impede que
novas soluções substituam as antigas.
Não exijam dos outros aquilo que vocês mesmos não
estão dispostos a pagar. Se houver demanda, novos cinemas cult surgirão e serão
palco de novas e ricas experiências humanas, que gerarão memórias tão valiosas
quanto as que hoje em dia temos do Cine Belas-Artes. Se não houver demanda
suficiente, então talvez manter cinemas cult funcionando não seja uma boa idéia,
e sessões de DVD em casa sejam a melhor pedida. Em ambos os casos, o mundo
seguirá seu curso e em poucos anos aquela perda incalculável mal será lembrada.
Quem frequentava o cinema um dia morrerá, e suas memórias e gostos irão junto. Seria
injusto impô-los por coerção às gerações futuras. Por valiosíssimo que seja, o
Cine Belas-Artes é um legado cujo peso elas não merecem carregar.
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