Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

O euro e a crise europeia

10/01/2011

O euro e a crise europeia

A atual crise europeia, com vários países ameaçando dar o calote em suas dívidas, é resultado direto da expansão da moeda e do crédito feita pelo sistema bancário europeu.  No início dos anos 2000, o crédito foi expandido principalmente nos países periféricos da União Monetária Europeia, como Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha.  As taxas de juros desses países foram substancialmente reduzidas em decorrência da expansão creditícia feita pelo seu sistema bancário e da queda das expectativas inflacionárias e dos prêmios de risco (taxa embutida nos juros de um empréstimo quando existe a chance de que tal empréstimo não seja pago).

A acentuada queda nas expectativas inflacionárias foi causada pelo prestígio do então recém-criado Banco Central Europeu, o qual era uma cópia do Bundesbank, o Banco Central alemão.  Os prêmios de risco dos países periféricos foram artificialmente reduzidos em decorrência do apoio dado ao arranjo pelas nações mais fortes.  O resultado foi uma expansão econômica artificial.  Houve o surgimento de várias bolhas nos preços de ativos, como uma bolha imobiliária na Espanha e na Irlanda.  O dinheiro recém-criado foi inicialmente injetado nos países da periferia, onde ele foi utilizado para financiar o consumismo e os investimentos errôneos, principalmente nos setores automotivo e da construção civil, ambos exageradamente sobredimensionados.  Ao mesmo tempo, a expansão do crédito ajudou também a financiar e expandir estados assistencialistas insustentáveis. 

Em 2007, começaram a surgir aqueles efeitos microeconômicos que revertem qualquer expansão econômica artificial que foi financiada pela mera expansão do crédito e não pela genuína poupança (a abstenção do consumo que permite a formação de capital para ser investido).  Os preços dos meios de produção, tais como commodities e salários, começaram a subir.  As taxas de juros também aumentaram devido às pressões inflacionárias, as quais fizeram com que os bancos centrais tivessem de desacelerar suas políticas monetárias expansionistas.  Finalmente, os preços dos bens de consumo começaram a subir em relação aos preços oferecidos aos fatores de produção.  Foi ficando cada vez mais óbvio que muitos desses investimentos não eram sustentáveis devido à falta de poupança real.  A maioria desses investimentos ocorreu no setor da construção civil. 

O setor financeiro ficou sob pressão à medida que as hipotecas foram sendo securitizadas, indo parar direta ou indiretamente nos balancetes das instituições financeiras.  As pressões culminaram no colapso do banco de investimentos Lehman Brothers, evento esse que levou pânico completo aos mercados financeiros.

Ao invés de deixar que as forças de mercado seguissem seu curso, liquidando e expurgando todos os investimentos ruins, os governos infelizmente optaram por intervir no necessário processo de ajustamento dos mercados (a recessão).  Foi essa lamentável intervenção que não apenas impediu uma recuperação mais rápida e mais completa, mas que também produziu, como efeito colateral, a crise da dívida soberana, que explodiu no primeiro semestre de 2010.  Os governos tentaram estimular os setores sobredimensionados, aumentando os gastos públicos.  Eles forneceram amplos subsídios para a compra de carros novos com o intuito de estimular a indústria automotiva.  Além disso, os governos também incorreram em vários programas de obras públicas para estimular a agora combalida construção civil, bem como o setor que havia concedido empréstimos a essas indústrias: o setor bancário.

Ademais, os governos deram sustento direto ao setor financeiro ao dar garantias aos seus passivos e ao estatizar bancos, comprando seus ativos ou uma fatia de suas ações.  Ao mesmo tempo, o desemprego disparou em decorrência da rigidez e da alta regulamentação do mercado de trabalho.  As receitas dos governos oriundas do imposto de renda e das contribuições previdenciárias despencaram.  Gastos com seguro-desemprego dispararam.  As receitas dos impostos sobre empresas, receitas essas que estavam artificialmente infladas em setores como o sistema bancário, a construção civil e a indústria automotiva durante o período do crescimento artificial, foram quase que completamente aniquiladas.  Com receitas em queda e gastos em alta, os déficits e as dívidas dos governos foram às alturas, como consequência direta das respostas governamentais a uma crise causada por uma expansão econômica que não tinha base na poupança real.

O caso da Espanha é paradigmático.  O governo espanhol subsidiou a indústria automotiva, a construção civil e o setor bancário, os quais foram acentuadamente expandidos durante o boom da expansão do crédito.  Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho altamente inflexível fez com que as taxas de desemprego pulassem para 20%.  O resultante déficit público começou a apavorar os mercados e os outros países membros da União Europeia, os quais finalmente pressionaram o governo a anunciar algumas tímidas medidas de austeridade, com o intuito de fazer com que ele -- o governo espanhol -- pudesse continuar adquirindo empréstimos.

Com relação a isso, o fato de o euro ser uma moeda única mostrou uma de suas "vantagens".  Sem o euro, o governo espanhol certamente teria recorrido ao artifício de desvalorizar sua moeda, como fez em 1993, imprimindo dinheiro para reduzir seu déficit.  Isso teria gerado uma revolução na estrutura de preços da economia espanhola e um imediato empobrecimento da população, uma vez que os preços dos produtos importados iriam disparar.  Ademais, ao desvalorizar a moeda, o governo poderia continuar gastando sem ter de fazer quaisquer reformas estruturais.  Com o euro, o governo espanhol (ou qualquer outro governo em apuros) não pode desvalorizar sua moeda, imprimindo dinheiro diretamente para pagar sua dívida.  Consequentemente, tais governos tiveram de incorrer em medidas de austeridade e em algumas reformas estruturais após sofrerem pressão da Comissão Europeia e de estados-membros, como a Alemanha.

Com isso, é bem provável que um dos cenários delineados por Philipp Bagus em seu novo livro The Tragedy of the Euro venha a ocorrer.  O Pacto de Estabilidade e Crescimento pode vir a ser reformado e colocado em vigor.  Como consequência, os governos da União Monetária Europeia teriam de continuar e intensificar suas medidas de austeridade e reformas estruturais com o intuito de obedecer ao Pacto de Estabilidade e Crescimento.  Pressionados por países mais conservadores, como a Alemanha, todos os membros da União Monetária Europeia seguiriam o caminho das tradicionais medidas anticrise, com corte de gastos.

Em contraste à União Monetária Europeia, os Estados Unidos estão seguindo à risca a receita keynesiana contra recessões.  Na visão keynesiana, durante uma crise o governo tem de contrabalançar uma queda na "demanda agregada" aumentando os gastos.  Com isso, o governo dos EUA optou por incorrer em gastos deficitários e em políticas monetárias extremamente expansionistas, tudo com o intuito de "revitalizar" a economia.  Talvez um dos efeitos benéficos do euro foi o de empurrar toda a UME rumo ao caminho da austeridade.  Com efeito, certa vez argumentei que uma moeda única seria um passo na direção correta, dado que ela iguala as taxas de câmbio entre todos os países da Europa, acabando assim com o nacionalismo monetário e com o caos das taxas de câmbio flutuantes manipuladas pelos governos -- principalmente em épocas de crise.

Meu caro colega Philipp Bagus, entretanto, desafiou-me em relação a essa minha visão positiva sobre o euro.  E isso desde a época em que ele era meu aluno.  Ele corretamente apontou as vantagens da competição entre moedas.  Ao passo que, do ponto de vista teórico, uma moeda única extingue o nacionalismo monetário na Europa, a questão permanece: quão estável é na realidade a moeda única?

Em seu livro, fortemente recomendado, Bagus lida com essa questão por dois ângulos, fornecendo ao mesmo tempo os dois principais feitos e contribuições do livro: uma análise histórica das origens do euro e uma análise teórica do funcionamento e dos mecanismos do sistema do euro.  Ambas as análises apontam para a mesma direção.  Na análise histórica, Bagus lida com as origens do euro e do Banco Central Europeu, mostrando como os interesses dos governos nacionais, dos políticos e dos banqueiros foram fundamentais no processo de implementação da moeda única. 

Considerando os interesses políticos, a dinâmica e as circunstâncias que levaram à introdução do euro, SS570.jpgtorna-se claro que o euro pode de fato ser um passo na direção errada; um passo na direção de uma moeda pan-europeia, de curso forçado e inflacionária, com o objetivo de abolir os limites que a concorrência e a política monetária conservadora do Bundesbank haviam imposto antes.  A análise teórica de Bagus deixa o propósito inflacionário do eurossistema ainda mais claro.  No livro, o eurossistema (formado pelo Banco Central europeu e pelos bancos centrais dos diversos países membros da zona do euro) é exposto como um arranjo autodestrutivo que gera uma maciça redistribuição de riqueza por toda a UME, com incentivos para que os vários governos nacionais recorram ao BCE como forma de financiar seus déficits.  O conceito de Tragédia dos Comuns, que eu apliquei para o caso do sistema bancário de reservas fracionárias, também é aplicável para o eurossistema, dado que diferentes governos europeus podem explorar o valor da moeda única. 

É uma grande notícia saber que este livro está sendo disponibilizado gratuitamente pelo Mises Institute.  O futuro da Europa e do mundo depende de uma ampla compreensão sobre teoria monetária e sobre o funcionamento das instituições monetárias.  Este livro provê poderosas ferramentas que ajudam no entendimento da história do euro e de seu perverso arranjo institucional.

Sobre o autor

Jesús Huerta de Soto

Jesús Huerta de Soto, professor de economia na Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele tambÉm é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário.

Comentários (7)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!