quarta-feira, 13 out 2010
O
presidente do Banco Central americano, Ben Bernanke, fez um discurso
sinistro no dia 4 de outubro. Não
obteve nenhum destaque na mídia. Não
obteve destaque justamente porque foi muito sinistro.
O
assunto abordado foi a vindoura crise fiscal do governo americano. Não haverá maneira fácil de evitá-la, disse
ele. O Congresso americano terá de
decidir qual gasto irá cortar. Isso
significa que o Congresso terá de decidir quais lobistas e grupos de interesse
terão de ser ignorados. Depois ele terá
de decidir quais impostos serão elevados.
Qual pirão ficará sem a farinha?
O
Congresso americano vem adiando essa decisão dupla desde que o governo Nixon
exterminou de vez o pouco que restava do padrão-ouro, acabando com o padrão
ouro-câmbio.
A
essência da política é saber comprar votos com o dinheiro dos pagadores de
impostos, de modo que o número de votos que você vai perder seja sempre menor
que o número de votos que você vai conseguir comprar. Em outras palavras, você precisa saber
enganar. Cada beneficiário deve chegar à
seguinte conclusão: "Nesse esquema, vou ganhar mais do que terei de
pagar". Dado que todos os participantes
não podem estar corretos em seu julgamento, o fardo dos impostos tem de estar
bem escondido.
Há
outros dois fatores que também devem estar bem escondidos: o aumento dos
déficits e o aumento da expansão monetária.
É
aqui que Bernanke começou a disparar advertências para o Congresso. Em seu discurso, ele mandou um aviso: o Fed
não vai aceitar ficar com a culpa. Ele
não vai destruir o dólar (isto é, continuar expandindo a oferta monetária) a
fim de que o Congresso continue podendo fazer seu jogo do engano.
Essa
foi a Declaração de Independência de Bernanke.
A mídia não deu destaque e tampouco debateu o assunto. Creio que o Congresso também não.
FECHANDO
UMA SAÍDA
Vou
guiar você leitor através do discurso. À
medida que você lê o que Bernanke diz, mantenha em mente essa pergunta: "O que
ele está tentando dizer para o Congresso?".
Ele
deixou claro que o Congresso americano não pode seguir mantendo sua atual
política. Os mercados não
permitirão. Ele disse que haverá um dia
do ajuste de contas: as taxas de juros vão subir. Em algum momento futuro, os credores irão
decidir que o governo dos EUA não mais é um devedor confiável.
Esse
alerta vai visa a atingir o cerne de todo o procedimento de enganação efetuado
pelo Congresso. Bernanke disse que os
juros irão subir. Porém, todos sabem que
os juros subirão para uma dívida já vastamente expandida, o que significa que o
serviço da dívida encarecerá. Os
déficits atuais continuam elevando o total da dívida nacional. O fardo dos juros atualmente está baixo
porque as taxas de juros estão em mínimos não vistos desde a Grande
Depressão. Atualmente, não custa muito
para seguir rolando a dívida.
O
mesmo também é válido para os mercados de capitais privados. Os tomadores de empréstimo podem continuar
expandindo o nível de sua dívida pessoal porque suas parcelas mensais estão
baixas em decorrência das baixas taxas de juros. Isso seduz o público americano a contrair
ainda mais dívidas. Bernanke mencionou
esse fato brevemente. Ele consegue ver o
que está por vir. Quando as taxas de
juros subirem, os americanos terão de restringir seu endividamento e reduzir
suas compras.
Bernanke
disse à plateia que a porta de saída atualmente mantida aberta pelos
emprestadores será fechada. Caso os
juros pagos pelo governo continuem baixos, eles simplesmente irão reduzir suas compras
desses papeis da dívida, parando de financiar o governo.
Essa
foi uma maneira de dizer que a classificação AAA dada ao governo americano será
rebaixada. A ideia de que você nunca
perde ao comprar títulos da dívida do governo americano irá entrar em
extinção. Trata-se de uma declaração e
tanta feita por um presidente do Fed. Atingiu
em cheio os planos do Congresso americano de continuar adiando eternamente o
dia do acerto de contas.
A
intenção de Bernanke foi mostrar que uma das duas portas de saída será fechada
pelo mercado. Os emprestadores irão
fechá-la. Eles o farão por interesse
próprio.
Isso
irá deixar apenas uma outra saída: a disposição do Banco Central para comprar
os títulos da dívida do Tesouro americano.
Ele nunca se refere diretamente a essa hipótese.
Enquanto
eu lhe guio através do discurso, mantenha essa pergunta em sua mente: "Por que
ele está dizendo isso para o Congresso?"
Eu consigo pensar em uma razão superficial: ele está dizendo ao
Congresso para não contar com o Fed, pois este não irá socorrer o governo
quando os emprestadores começarem a dizer "não". Ele está dizendo que o Congresso deve começar
a impor cortes no orçamento, pois o Fed irá deixar os juros subirem. Todo o jogo de enganação terá de acabar nesse
momento.
Bernanke
estava dizendo para o Congresso americano começar a decidir quis grupos de
interesse ficarão sem farinha no pirão.
SEM
SAÍDA
Ele
estava tentando conseguir a atenção do Congresso. Entretanto, isso foi indireto. Ele não fez o discurso em uma sessão do
Congresso. Ele o fez para um grupo em
Rhode Island — algo fora da tradição.
Não há como contornar a situação
— enfrentar esses desafios irá requerer que os elaboradores de políticas
econômicas e o público em geral tomem algumas decisões muito difíceis e aceitam
alguns sacrifícios.
Decisões
muito difíceis? Sacrifícios? Congresso?
A regra do jogo no Congresso é evitar decisões difíceis e sacrifícios. O Congresso sempre supõe que o Banco Central
estará lá como o emprestador de última instância.
Intuo
que esse discurso foi a tentativa de Bernanke de mandar um sinal: "Não contem
com o Fed para socorrê-los."
E
então ele ofereceu esperança. Mas foi
uma esperança puramente hipotética.
Mas a história já deixou claro
que os países que continuamente gastam além de suas posses padecem de um
crescimento mais lento de suas rendas e do seu padrão de vida, e estão
propensos a maiores instabilidades econômicas e financeiras. Inversamente, uma boa gestão fiscal é o
alicerce do crescimento sustentável e da prosperidade.
Pergunto:
Por que os EUA deveriam esperar uma boa gestão fiscal do Congresso? Para quando?
O Congresso americano vem jogando o jogo do "deixa pra depois" desde que
eu comecei a monitorar suas atividades: há meio século. Bernanke sabe disso.
Qual
nação do Ocidente já adotou uma "boa gestão fiscal"? Todas elas estão incorrendo em déficits. Todas elas dependem de seus bancos centrais
para socorrê-las de tempos em tempos.
Bernanke
estava dizendo ao Congresso que o jogo do deixar para depois deve acabar. Porém, não agora! Não é imperativo que algo seja feito por
ora. Tudo pode ser adiado. Com efeito, deve ser adiado.
Por ora, o déficit orçamentário
se estabilizou e — enquanto a economia e os mercados financeiros continuarem
se recuperando — ele deve se reduzir em relação à renda nacional ao longo dos
próximos anos. As atuais condições
econômicas não permitem muita margem para uma redução significativa do déficit
nos próximos dois anos; com efeito, um aperto fiscal prematuro poderia colocar
a recuperação econômica em risco.
Isso
autoriza o Congresso americano a continuar "deixando pra depois" até 2012. É isso que o Congresso quer ouvir. Mas Bernanke escondeu uma pílula envenenada
no bolo da festa.
No médio e no longo prazo,
entretanto, a história é bastante diferente.
Ninguém
em qualquer legislatura presta atenção em qualquer coisa distante mais do que
dois anos. Por isso Bernanke concentrou
seu discurso em 2012 e adiante. Isso
significa que o Congresso não pedirá que ele elabore mais suas palavras.
JARGÕES
BUROCRÁTICOS
Bernanke
utilizou jargões burocráticos convencionais.
"Desafio" significa "politicamente insolúvel". "Sacrifício" significa "o que os americanos
fizeram durante a Segunda Guerra Mundial".
"Difícil" significa "adiável".
E
então ele listou os "desafios". E de
fato são desafios.
Se as atuais políticas forem
mantidas, e mantendo-se hipóteses razoáveis quanto ao crescimento econômico, o
orçamento federal manter-se-á em um caminho insustentável nos próximos anos,
com a razão dívida federal em poder do público/renda nacional aumentando em
taxas crescentes.
Pegou
essa? Insustentável. Significa "que não pode ser mantido". Significa "sem saída". Significa "sem perspectiva".
Ademais, à medida que a dívida
nacional seguir crescendo, o mesmo ocorrerá com o pagamento do serviço da
dívida, o que por sua vez irá gerar um aumento nos já déficits programados.
Trata-se
de um redemoinho. Os déficits
tornar-se-ão retroalimentáveis. Será
cada vez mais difícil controlá-los.
Hoje, com a taxa básica de juros extremamente baixa, os déficits já
estão crescendo incessantemente. O que
acontecerá quando os juros subirem?
Expectativas de déficits amplos
e crescentes no futuro podem inibir os gastos correntes das famílias e das
empresas — por exemplo, reduzindo a confiança nas perspectivas de longo prazo
da economia ou aumentando a incerteza quanto à futura carga tributária e aos gastos
do governo —, reprimindo desta forma a recuperação.
Ele
estava alertando o Congresso de que os efeitos do adiamento serão o aumento dos
juros. Se os juros subirem, os
consumidores irão cortar seus gastos.
Isso irá produzir uma recessão, ou ao menos um desaquecimento. E isso, consequentemente, vai reduzir as
receitas de impostos. Portanto, quando
os juros subirem, ficará mais difícil para o governo americano coletar
impostos. De novo, temos aí um
redemoinho. Ao adiar os cortes de
gastos, o Congresso americano fará com que o desastre seja pior quando os juros
subirem. Como disse Bernanke, isso irá
diminuir a capacidade do Congresso de escapar da encrenca.
Preocupações com a situação
fiscal de longo prazo do governo também podem restringir a flexibilidade da
política fiscal em responder às atuais condições econômicas.
Tradução:
"O Congresso terá pouca flexibilidade quando os emprestadores disserem não."
Consequentemente, medidas
tomadas hoje para melhorar a situação fiscal de longo prazo do país não apenas
ajudariam a garantir uma estabilidade econômica e financeira no longo prazo,
como também poderiam aprimorar a perspectiva econômica de curto prazo.
Observe
a voz passiva: medidas tomadas.
Pergunta: "Exatamente quem deve tomar exatamente quais medidas?"
Resposta: silêncio. Bernanke não iria identificar
qual pirão terá de ficar sem a farinha. Isso é problema do Congresso, não dele.
Nossos desafios fiscais são
especialmente intimidantes porque são predominantemente o produto de poderosas
tendências subjacentes, e não fatores temporários ou de curto prazo.
Tradução:
isso veio pra ficar. Por quê? Porque é uma questão demográfica. Trata-se de um fluxo que já está no
encanamento e não pode ser revertido.
Duas das mais importantes forças
propulsoras serão o envelhecimento da população americana — cujo ritmo irá se
intensificar ao longo das próximas décadas, quando a geração nascida no
pós-guerra irá se aposentar — e os crescentes custos da saúde. À medida que as necessidades de serviços de
saúde da população envelhecida forem aumentando, os programas federais voltados
para a saúde tornar-se-ão, de longe, a maior fonte única de desequilíbrios
fiscais no longo prazo.
Qual
congressista irá se levantar e dizer "Vamos cortar os fundos dos aparelhos
médicos que mantêm a vovó viva"?
Nenhum? Bem, então de fato
teremos "desafios intimidantes".
"Desafios intimidantes" significa "depois que eu me aposentar".
Aqui em Rhode Island, assim como
em outros estados, a aposentadoria de funcionários públicos estaduais, em
conjunto com os contínuos aumentos nos custos da saúde, fará com que os fundos
de pensão estaduais e os planos de saúde desses aposentados tornem-se
crescentemente difíceis de serem atendidos.
Estimativas do passivo a descoberto de todos os sistemas de pensão
estaduais variam bastante, mas alguns pesquisadores apresentaram valores tão
altos quanto US$2 trilhões, ainda no final de 2009.
O
que os estados estão fazendo para lidar com isso? Exatamente o que o Congresso americano está
fazendo para lidar com os déficits do programa Medicare (programa de responsabilidade da Previdência Social
americana que reembolsa hospitais e médicos por tratamentos fornecidos a
indivíduos acima de 65 anos de idade): absolutamente nada.
Como já apontei, as projeções do
Congressional Budget Office (agência
federal responsável pelos cálculos e análises do orçamento do governo)
apontam um crescimento incontrolável dos déficits e da dívida do governo, a
taxas crescentes. É fato que projeções
são de alguma forma meros exercícios de hipóteses. Quase que por definição, trajetórias insustentáveis
de déficits e dívidas nunca irão se realizar de fato, pois os credores jamais
se disporiam a emprestar para um país cuja dívida fiscal em relação à renda
nacional esteja crescendo sem limites.
Herbert Stein, um sábio economista, certa vez disse que "Se algo não
pode prosseguir para sempre, irá parar."
De um jeito ou de outro, ajustes fiscais suficientes para estabilizar o
orçamento federal certamente irão ocorrer em um determinado momento.
Em
que momento? Quando o Fed parar de
comprar títulos do Tesouro. Então haverá
um calote. É claro que Bernanke nunca
irá utilizar essa palavra politicamente incorreta. Porém, está claro que ele espera que o
Congresso intua isso.
E
o Congresso irá ter essa intuição? É
claro que não. Ele irá deixar pra
depois.
ALERTA
TOTAL
Bernanke
seguiu em sua lengalenga monótona, como sempre faz. Ele listou tudo aquilo de que todo mundo sabe
e sempre ignora. Mas ele cumpriu sua
obrigação. Ele deu seu alerta, sem dar
especificidades. Ser específico é algo
que ele nunca é. Mas ele terminou
dizendo isso.
Hoje eu destaquei os desafios
fiscais dos EUA. Nos últimos anos, a
recessão e a crise financeira, em conjunto com as medidas políticas tomadas
atenuas seus efeitos, erodiram nossa situação fiscal. Uma economia em crescimento deverá reduzir os
déficits no curto prazo, mas nossas finanças públicas estão em um caminho de
longo prazo insustentável, refletindo em grande parte o envelhecimento de nossa
população e o contínuo aumento nos custos da saúde. Não devemos subestimar esses desafios
fiscais; uma reação omissa a eles irá pôr em risco nosso futuro econômico.
O
Congresso será omisso em sua reação? É
claro que sim. O futuro econômico dos
EUA está em risco? É claro que sim.
Normas fiscais bem concebidas
não substituem a determinação política de se tomar decisões difíceis, porém as
experiências americana e internacional sugerem que elas podem ajudar os
legisladores em certas circunstâncias.
Em
outras palavras, elas não vão funcionar se não houver determinação política
para impor sacrifício aos eleitores.
Existe tal determinação? É claro
que não. Portanto, agora que sabemos que
as normas fiscais não funcionarão, paremos com essa torcida por normas fiscais.
Com efeito, a implementação de
uma norma fiscal poderia mandar um importante sinal para o público de que o
Congresso está sério quanto à obtenção de uma sustentabilidade fiscal de longo
prazo, o que por si só seria bom para restaurar a confiança. Uma norma fiscal poderia também enfocar e
institucionalizar apoio político para a responsabilidade fiscal. Dada a importância de se obter uma
estabilidade fiscal de longo prazo, discussões adicionais sobre normas e
abordagens fiscais parecem bem justificadas.
Fim
do discurso. Aplausos. Almoço.
Estou
dizendo que o discurso foi um exercício de futilidade? É claro que sim. Bernanke sabe disso? É claro que sim. Alguma coisa irá mudar até o dia em que o
Congresso americano der de cara com o muro e descobrir que os emprestadores
pararam de emprestar? Não.
CONCLUSÃO
Haverá
um grande calote. Creio que Bernanke
sabe disso. Seu discurso serviu para que
ele possa no futuro dizer "Não digam que eu não os alertei."
O
que ele realmente estava dizendo? Isso:
"O Federal Reserve não irá agir para socorrer o Congresso." Ele estava dizendo
que ambas as portas de saída irão se fechar: os empréstimos privados para o
governo e as compras de títulos feitas pelo Fed.
É
por isso que ele gastou tanto tempo na ameaça da elevação dos juros. Se o Fed estiver lá para socorrer o
Congresso, mantendo os juros lá em baixo por meio de uma hiperinflação
monetária, então o Congresso nunca precisará arrumar suas contas. Porém, Bernanke estava dizendo ao Congresso
justamente o oposto: que ele terá de arrumar a casa.
Conclusão:
o Fed não irá hiperinflacionar a base monetária.
Eu
não sei se o Congresso irá entender a mensagem.
Mas é bom que o resto do mundo entenda.
O
Congresso irá continuar jogando o jogo do "deixa para depois". Mas chegará o dia em que o Fed não mais irá
ajudar o Congresso a continuar jogando esse jogo. Esse será o dia do acerto de contas.
Bernanke
estava dizendo que o Congresso terá de nacionalizar o Fed caso queira continuar
jogando esse seu jogo de empurra. O Fed
não irá destruir os grandes bancos destruindo o dólar para salvar o Congresso.
O
discurso de Bernanke foi feito para os grandes bancos. Eles acabaram de mandar um memorando para o
Congresso. É bom que o Congresso leia
esse memorando.