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Política

O principal argumento em prol da democracia é contraditório e não se sustenta

30/09/2014

O principal argumento em prol da democracia é contraditório e não se sustenta

Talvez o principal argumento em favor da democracia é aquele que diz que ela substitui "tiros por votos": a democracia seria o único arranjo que permite trocas de poder, ou a manutenção do poder, sem derramamento de sangue.  A democracia substitui o processo de mudanças violentas -- algo inconveniente e destrutivo -- pelo processo de mudanças pacíficas que expressam o desejo da maioria. 

Alguns democratas definem a democracia como sendo a vontade da maioria, ao passo que outros tomaram o cuidado de enfatizar que as minorias são livres para tentar, de tempos em tempos, se tornar a maioria decisiva.  Porém, qualquer que seja a definição dada para a democracia, o argumento de que a democracia é o melhor sistema disponível porque permite trocas pacíficas de poder -- ou a manutenção pacífica do poder -- sem derramamento de sangue é o dominante. 

(Outro argumento utilizado pelos defensores da democracia é o de que as decisões da maioria estão sempre, ou quase sempre, moralmente corretas.  No entanto, o apoio a esse ponto específico -- uma verdadeira profissão de fé -- vem minguando nos últimos anos.)

O problema é que, embora persuasivo, o argumento da "mudança pacífica" ou da "manutenção pacífica" foi simplesmente aceito sem nenhuma análise mais profunda.  Mais especificamente, ninguém realmente investigou se a atual forma de democracia seria realmente compatível com esse argumento da "mudança pacífica", e se os resultados práticos estão de acordo com os resultados que a teoria diz que ocorreriam. 

Em vez de procurarem respostas, as pessoas simplesmente assumiram que qualquer tipo de democracia está automaticamente credenciada como o melhor método de se conduzir "mudanças pacíficas" de governo.

Porém, vamos investigar o argumento um pouco mais a fundo. 

O que ele realmente afirma é que, no longo prazo, a opinião da maioria é o que vale sob qualquer forma de governo, e que, portanto, é melhor deixar que a maioria esteja no comando pacificamente -- que é o objetivo da democracia -- em vez de obrigar essa mesma maioria a tomar as ruas periodicamente, praticando algum violento golpe de estado ou uma revolução. 

Desta forma, dizem os democratas, os votos substituem os tiros e a carnificina de uma maneira muito engenhosa -- afinal, uma eleição democrática gera os mesmos resultados políticos que teriam sido obtidos caso a maioria tivesse de testar sua força contra a minoria em um combate violento.

Eis, portanto, o primeiro critério para o argumento da mudança pacífica ou da continuidade pacífica: o resultado das urnas será o mesmo resultado que ocorreria caso houvesse combates físicos da maioria contra a minoria, só que com a vantagem de não haver derramamento de sangue.

É importante perceber que esse critério está rigorosamente implícito no argumento em prol da democracia.  Porém, surge o primeiro problema: se aceitarmos esse argumento, mas por acaso descobrirmos que a democracia gera sistematicamente resultados que estão em contradição com esse argumento de que "os votos substituem o confronto físico, mas geram o mesmo resultado político final", então, como consequência lógica, também teremos de rejeitar essa forma de democracia -- ou, no mínimo, rejeitar esse argumento.

Como, portanto, a democracia se sai quando testada contra esse critério? 

Talvez a forma mais fundamental de democracia seja aquele em que cada homem tem um voto.  Porém, se tentarmos justificar esse arranjo utilizando o argumento da mudança pacífica vamos nos deparar com dificuldades fundamentais.

Em primeiro lugar, a força física notoriamente não é algo igualmente distribuído.  Em um combate direto, as mulheres, os idosos e os doentes se sairiam muito mal.  Portanto, se utilizarmos o argumento de que os votos substituem o combate físico e geram o mesmo resultado, não há qualquer justificativa para dar o poder do voto a esses grupos fisicamente delicados.  E não apenas eles teriam de ser impedidos de votar, como também o mesmo critério teria de ser aplicado a todos os cidadãos que não passassem em um teste de aptidão para o combate.  Por outro lado, obviamente não deveria haver qualquer tipo de proibição ao voto dos analfabetos, uma vez que ser alfabetizado não tem relação alguma com o potencial de combate de um homem.  Além de impedir o voto de todos aqueles não aptos para o combate, teríamos -- por uma mera questão de lógica -- de dar votos plurais para todos aqueles que possuem treinamento militar (tais como soldados e policiais), pois é óbvio que um grupo de combatentes altamente treinados poderia facilmente derrotar um grupo bem mais numeroso de amadores, mesmo que igualmente robusto.

Logo, já identificamos a primeira falha lógica do argumento em prol da democracia.

Mas há outras.

Além de ignorar as desigualdades da força física e da aptidão para o combate, há outro aspecto sob o qual as atuais democracias se mostram incapazes de cumprir os requerimentos lógicos do argumento da mudança pacífica.  Essa incapacidade advém de outra desigualdade básica: a desigualdade de interesses ou a desigualdade da intensidade da crença. 

Suponha que 60% da população de um país seja indiferente ou ligeiramente favorável ao atual governo ou ao atual partido político que está no governo, ao passo que os 40% restantes são contra.  Suponha também que esses 40% são realmente contra o atual governo e o atual partido que está no poder, de maneira intensa e inflamada, pois são eles que estão tendo de arcar com as benesses e com os privilégios que o governo distribui para seu eleitorado cativo.  Na ausência de democracia, esses 40% estariam muito mais dispostos a entrar em combates físicos. 

Enquanto isso, os outros 60% são formados por pessoas indiferentes, por pessoas desinformadas, por pessoas que têm apenas um leve interesse no assunto e pelos privilegiados pelo governo.  Os três primeiros grupos certamente jamais iriam às ruas guerrear, mas seu eventual voto em prol do governo tem o mesmo peso de um voto contra o governo. 

Logo, em uma eleição democrática, o voto de uma pessoa apática, desinteressada e desinformada tem o poder de anular totalmente o voto de um eleitor entusiasmado e realmente a fim de alterar o atual estado das coisas.  Por causa de sua falta de interesse, a maior parte dos integrantes dessa maioria jamais se disporia a entrar em combate. 

Assim, se aceitarmos a tese de que a democracia substitui tiros por votos e gera os mesmos resultados, então temos de concordar que um processo democrático que dá a um homem apático o mesmo peso eleitoral de um entusiasta não pode satisfazer nosso próprio critério.  O apático jamais entraria em um combate -- portanto, as atuais democracias sistematicamente distorcem os resultados eleitorais em relação aos hipotéticos resultados de um combate.

É provável que nenhum procedimento de eleição democrática seja satisfatório na resolução desse problema.  Porém, é certo que muito poderia ser feito para alterar as formas atuais, de modo a trazê-las para mais perto de nosso teste. 

A tendência de todas as atuais democracias tem sido a de tornar o voto mais fácil para as pessoas.  Porem, isso viola diretamente o teste, pois isso significa mais facilidades para os apáticos registrarem seus votos.  E quanto mais peso é dado aos votos dos apáticos, mais longe a democracia fica da satisfação de seus próprios critérios.

Claramente, o que se necessita é tornar a votação bem mais difícil, de modo a garantir que apenas as pessoas mais intensamente interessadas irão votar.  Uma medida útil seria remover todos os nomes das urnas, de modo a exigir que todos os eleitores escrevessem por conta própria os nomes de seus candidatos favoritos, podendo assim eleger absolutamente qualquer cidadão.  Não apenas isso iria eliminar esse definitivamente antidemocrático privilégio especial que o estado dá àqueles cujos nomes estão nas urnas, mas também nos deixaria mais perto de nosso critério, pois um eleitor que não sabe o nome de seu candidato favorito dificilmente teria guerreado nas ruas em nome dele.

Desta forma vemos que o argumento da mudança pacífica, longe de endossar todas as atuais democracias, requer mudanças vitais e radicais nas atuais estruturas democráticas.  Por uma total questão de lógica, aqueles que dizem que a democracia é o melhor sistema disponível (porque é o único que garante uma troca pacífica de governo) deveriam defender alterações profundas no atual sistema eleitoral.  Para contrabalançar as diferenças de força física, todos aqueles cidadãos não aptos para o combate corporal teriam de ser privados do voto; e votos plurais teriam de ser designados para soldados e policiais. 

Igualmente, para contrabalançar as diferenças de interesse e entusiasmo, o processo eleitoral teria de ser dificultado, e não facilitado, incluindo-se aí a imposição de que as pessoas escrevessem o nome de qualquer pessoa de seu interesse. 

E, mesmo assim, é provável que ainda restassem sérias distorções, pois meros ajustes nas regras de votação não podem igualar o interesse e o entusiasmo necessários para induzir os cidadãos a guerrearem nas ruas em nome de seu programa ou de seu partido. 

É possível, portanto, que o argumento da mudança pacífica seja autocontraditório, e que tal critério jamais seja cumprido.  Porém, mesmo se desconsiderarmos essas distorções inerentes, as atuais democracias certamente jamais poderiam ser justificadas por esse argumento, e mudanças radicais exatamente como as esboçadas acima seriam necessárias.  

Logo, a democracia atual, marcada especialmente pela votação gratuita e pelo sistema de "um homem-um voto", não pode ser defendida -- sendo, na verdade, negada -- pelo predominante argumento da "mudança pacífica de governo".  Ou esse argumento é abandonado -- e inventa-se outro --, ou todo o sistema deve ser abandonado.


Sobre o autor

Murray N. Rothbard

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. TambÉm foi vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

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