segunda-feira, 2 ago 2010
Cento e cinquenta anos atrás não existia nem RG nem imposto de renda,
que data, aliás, de
1922 (teto de 8% da renda e o governo não podia olhar os livros contábeis
dos contribuintes, o que violaria sua privacidade). Hoje em dia, viver sem essas instituições
"essenciais" é impensável. Livre do
poder estatal, hoje, só o que se passa dentro de nós, no interior de nossas preciosas
mentes (para as quais ainda não
existem meios de regulamentar, inspecionar e taxar). Então deixe-me apresentar uma tese controversa:
é exatamente o que se passa dentro das nossas mentes que dá ao estado o poder
que ele tem fora delas. O insight vem de
longe, de Etienne de la Boétie (1530-1563) em seu Discurso Sobre a Servidão Voluntária, e já foi trabalhado por outros
pensadores de peso, como David Hume e Ludwig Von Mises. Poucos são, contudo, os que o levam até suas
últimas consequências: é a opinião dos próprios governados, e não a força das
armas, que confere poder aos governantes; e assim como ela dá, ela pode tirar.
Tomemos como exemplo o presidente Lula. Não é ele quem fisicamente obriga os 190
milhões de brasileiros a seguir suas ordens. Seu poder tem que vir de outra fonte. Imaginem
que ele ordene algo a algum ministro, mas esse lhe responda "não". Ao tentar demiti-lo, o encarregado da demissão
também lhe devolve um "não". Desesperado,
Lula apela a um general, e recebe outro "não". O general, por sua vez, dá uma ordem aos
capitães e... "não"; e em todo o exército os soldados dizem um sonoro "não!" a
seus superiores. A estrutura de poder
acabou aí. Nenhuma autoridade tem como
fazer nada contra a opinião dos governados. Dela depende todo poder, inclusive o das armas.
Foi, por exemplo, uma mudança de opinião
que se materializou no fatídico 31 de abril de 1964. João Goulart foi tirado do poder num ato sem
dúvida ilegal, e descobriu que ninguém lhe obedecia; não o queriam como líder
do país. O que pode a legalidade contra
isso? O presidente fugiu, a resistência
foi minúscula, e instaurou-se o regime militar.
O que vale para os governantes vale para as leis. Muitos acham um absurdo que no Brasil certas
leis "não peguem". Eu considero isso um
dos nossos maiores patrimônios culturais; é a prova de que o bom senso e a
justiça do homem comum às vezes superam o legalismo dos advogados. Só porque a lei manda, não quer dizer que seja
bom ou certo; ela é tinta num pedaço de papel. Não digo que não devamos obedecer à lei, ou
que todas as leis sejam arbitrárias. O
ponto é que, boas ou más, seu poder depende da nossa opinião de que devemos
segui-las. A nossa própria Constituição
Cidadã se encarregou de imortalizar esse princípio, ao estabelecer o teto
de 12% ao ano para taxas de juros. O
limite foi formalmente revogado em 2003, mas amplamente ignorado — com razão —
desde o princípio. A lei era ignorada e
ninguém falava nada. Tinta no papel.
A recusa moral de obedecer ao governante ou à lei injustos chama-se
desobediência civil, tendo sido nomeada no ensaio "Sobre a Desobediência Civil"
do americano Henry David Thoreau (1817-1862), figura singular que, segundo seu
amigo, o filósofo Emerson, "não nasceu para profissão alguma, nunca casou;
viveu sozinho; nunca foi à igreja; nunca votou; recusava-se a pagar imposto ao estado;
não comia carne, não bebia vinho, nunca usou tabaco; e, embora naturalista, não
usava armadilha nem arma. Escolheu, o
que para ele certamente foi sábio, ser o bacharel do pensamento e da natureza".
Desse homem solitário, que se retirava
por longos períodos para viver na floresta, na pequena Concord, Massachusetts,
em um Estados Unidos ainda provinciano, brotaram idéias perigosas para qualquer
império.
"Deve o cidadão, ainda que por
um instante, ou no menor grau que seja, entregar sua consciência ao legislador?
Então por que todo homem tem uma
consciência? Penso que devemos ser,
antes, homens, e só depois súditos. Não
é desejável cultivar o respeito pela lei, e sim pelo que é certo. A única obrigação correta de se assumir é a de
fazer a todo o momento aquilo que se considere correto." Thoreau não cooperaria com um governo que
permitia a escravidão e que travava uma guerra injusta de dominação do México. Liderou uma revolta de um homem só. "Há pouca virtude na ação das massas humanas. Quando a maioria finalmente votar pelo fim da
escravidão, é porque serão indiferentes à escravidão, ou porque haverá muito pouca
escravidão a ser abolida com seu voto. Serão
eles, então, os únicos escravos."
A história conhece muitos exemplos de desobediência civil. O primeiro que me vem à mente é a perseguição
à Igreja primitiva. Houve tempos em que
o estado romano mandava, sob pena de morte, que os suspeitos de Cristianismo
queimassem incenso aos ídolos. Eram
cidadãos exemplares, mas nesse ponto não cediam. O estado podia dobrar e destruir seus corpos; não
suas almas. No final das contas, quem venceu? O poderio militar ou a fé que contava apenas
com a adesão livre dos fiéis? Estavam
lançadas as bases da nossa civilização.
Thoreau foi para a cadeia por não pagar o imposto, sendo libertado por
um amigo que acertou suas contas, e o governo contra o qual lutava não parou de
crescer (hoje em dia, Concord discute proibir
a venda de água engarrafada). Mas
seu exemplo durou, e a semente de suas idéias germinou no século XX. Foi de Thoreau que Gandhi tirou a expressão
"desobediência civil" para explicar no Ocidente o movimento popular que
liderava, e que convenceu os indianos a não obedecer ao poder colonial. Alguns capitães ingleses queriam matá-los
todos, mas os próprios soldados da ocupação perceberam a injustiça que
cometeriam. Quando os soldados têm que
escolher entre a missão e a consciência, o poder das armas já não existe mais.
Voltemos para a América: a segregação racial em muitos estados dos EUA (bem
como a restrição de direitos aos negros) era definida na lei. Muitos deviam esperar calmamente que uma
maioria se formasse no Congresso para daí mudar a situação. Felizmente, indivíduos corajosos, como Rosa
Parks, não esperaram até que o
assunto se resolvesse pelos meios previstos, e simplesmente pararam de obedecer;
negros se sentaram nos lugares reservados aos brancos. Houve uma repressão inicial, que só serviu
para aumentar o repúdio à segregação. Os
cidadãos perceberam que a lei não é sacrossanta e, por isso mesmo, ela deixou
de sê-lo.
Em nenhum dos casos citados, note-se, manifestou-se o subjetivismo moral
ou a filosofia do "cada um vive como quer". Resistir à lei não é afirmar a inexistência de
leis, e sim a existência de uma lei superior à do estado, que, como qualquer
autoridade, pode usar o poder de forma injusta ou incompetente. É direito, ou até dever, de todo indivíduo,
combater o mal, ainda que legalmente instituído. Há um princípio do direito natural que nunca
será apagado do coração dos homens: "a lei injusta não é lei". Vivemos num país de leis injustas. Leis que impedem um homem de trabalhar, de
abrir seu negócio, de consumir aquilo que precisa para viver, de possuir o
fruto do próprio trabalho; todas elas prejudicam, e muito, a sociedade como um
todo, beneficiando apenas grupos de interesse que não precisam de, e nem
merecem, benefício algum. Imaginem se
fôssemos seguir à risca nossas leis trabalhistas; dá para imaginar o tamanho do
desemprego? Podemos responder ao
crescimento sem precedentes das leis injustas pelos caminhos previstos na lei; mas
lembremos de Thoreau: "Quanto aos meios que o estado oferece para remediar os
males, não quero saber. Tomam muito
tempo, e a vida de um homem terá acabado. Tenho mais o que fazer. Vim para este mundo não para torná-lo um bom
lugar de se viver, e sim para viver nele."
Aquilo de que um Thoreau sozinho foi incapaz, milhares deles organizados
conseguem pelo mero não-fazer. É um
plano irreal? Sem dúvida; ouso dizer que
é o plano mais irrealista possível, pois propõe uma revolução sem que ninguém
saia do lugar. Ao mesmo tempo, é algo
que já funcionou, e que sempre funcionará. Enquanto concedermos ao estado a prerrogativa
moral, ele será invencível; no momento em que a retirarmos, ele já estará
derrotado. Se os governantes arrogam-se
cada vez mais poderes, é porque têm a permissão moral dos governados. Outros não a deram; e nós?