segunda-feira, 12 jul 2010
A
noção de propriedade é tão natural, tão simples e tão intrínseca ao ser humano,
que qualquer criança com menos de dois anos já a absorveu por completo sem que
tenha tido qualquer doutrinação a respeito.
Se você tomar o brinquedo de uma criança, ela certamente vai lhe fuzilar
com o olhar e gritar "É meu!". Ela só
não vai reagir com mais afinco simplesmente por uma questão de incapacidade
física. Entretanto, se uma criança
roubar o doce de outra criança da mesma idade, as chances de ambas saírem no
braço são consideráveis. Mesmo o mais
inocente dos seres humanos sabe que, quando se é o dono de um bem, quando esse
bem é sua propriedade, você é quem controla a disposição e o arranjo dele. Você é quem decide o que fazer com ele. Trata-se de um direito seu.
Vou
mais além: a noção de propriedade é tão natural, que ela é compreendida até mesmo
no Reino Animal. Tente tirar uma bola de
borracha da boca de um cachorro e observe se ele vai oferecer alguma
resistência. Muito certamente, no mínimo
um rosnado ameaçador ele vai soltar. Da
mesma forma, experimente adentrar um covil de lobos, raposas, ou até mesmo
galinheiros e canis, e as chances de você ser visto indiferentemente pelos
residentes locais será nula.
Entendido
isso, conclui-se que é preciso ser um jornalista da grande mídia, com o cérebro
completamente infectado pelas bazófias marxistas abundantemente propaladas nas
universidades (públicas e privadas), para achar que os pobres são diferentes
das crianças, dos animais, da classe média e dos ricos.
Os
trechos a seguir, de uma reportagem
publicada na Folha de S. Paulo, são
típicos dessa mentalidade.
Antes,
uma contextualização. Moradores da
favela de Heliópolis, a maior de São Paulo, foram contemplados por um projeto
de urbanização feito pela prefeitura. A ideia
era transformar essas favelas em bairros por meio de obras como a canalização
de córregos, abertura de ruas e de acesso ao transporte público, além de novos
pontos de iluminação. Já que o estado
detém o monopólio destes serviços, não permitindo qualquer concorrência e
cobrando impostos para tal, ele nada mais fez do que sua obrigação.
O
problema é que houve uma pequena revolução.
Tão logo os pobres que habitavam esses locais viram suas vidas
melhorarem — com a construção de 296 unidades habitacionais, algumas famílias,
de favelas, passaram a morar em apartamentos —, os insensíveis rapidamente
adotaram um modo de vida "elitista", tratando rapidamente de adotar medidas de
proteção à sua propriedade. E a mídia,
obviamente, não perdoou essa traição de ideais — afinal, pobre bom é pobre que
mora em barracão de lona, totalmente desapegado a qualquer bem material.
Observe
o tom inadvertidamente cômico da reportagem, com aquela afetação de
superioridade típica dos que acham que os pobres, justamente por serem pobres, têm
a obrigação de serem orgulhosamente diferenciados de todas as outras classes
sociais, mantendo-se impolutos e incontaminados pela praga do egoísmo que
atinge apenas a classe média e os ricos.
Em suma, os pobres não podem demonstrar o odioso vício de demonstrar
apego à propriedade. Para esses
intelectuais, a pobreza é criadora de uma moralidade própria, indelevelmente
superior a qualquer outra moralidade ostentada pelas classes mais altas.
É
como se o tamanho da conta bancária fosse inversamente proporcional à probidade
e à honestidade; é como se ela fosse uma garantia de desapego aos efêmeros bens
materiais. Os pobres são, ao contrário
de todo o resto da humanidade mesquinha, seres proibidos de mostrar qualquer afeição
à propriedade simplesmente porque sempre foram vistos, em última instância,
como instrumentos essenciais de uma revolução que nunca veio — mas que, se
viesse, teria justamente a propriedade como seu grande alvo.
Veja
os trechos mais interessantes. Eles vão
de vermelho, eu vou de preto:
Primeiro foram muros. Depois
grades, cadeados e a fechadura. Na entrada do prédio, um aviso aos moradores:
"Mantenham o portão fechado para nossa segurança".
A cena, comum em condomínios de classes média e alta, surge agora
em Heliópolis, maior favela paulistana, e em outras regiões periféricas.
Uma vez incluídos no sistema habitacional formal, os moradores
também acabam optando pela segregação. O
fenômeno já levou a prefeitura a reavaliar os projetos de intervenção em
favelas.
Como ousam esses pobres!
Muros, grades, cadeados e fechaduras!
Recusando-se a deixarem os portões de seus prédios abertos, criando
segregação!
Um comportamento típico das classes média e alta foi ávida e inesperadamente (ao menos na concepção da mídia)
incorporado pela classe baixa, até então a última esperança da eternamente
vindoura revolução socialista que iria abolir a propriedade privada ("a
propriedade é um roubo").
É claro que tal comportamento da parte dos mais pobres precisa de
uma urgente intervenção estatal. Ou eles
passam a dormir de porta aberta, para evitar a segregação, ou o estado terá
de reavaliar a situação, tomando tudo e restabelecendo desta forma a ordem
natural das coisas.
De acordo com a reportagem, uma representante da Prefeitura de São
Paulo — Elisabete França, superintendente de habitação popular — também é crítica
do que está acontecendo. Dispara a
benfazeja:
"As pessoas repetem o modelo que conhecem. Muro não é seguro, não é solução. É uma coisa
cultural brasileira".
Muro é coisa cultural brasileira... Por que será? Será que é porque os brasileiros têm essa
estranha predileção cultural por viver dentro de gaiolas? Ou será talvez porque o estado não cumpre bem
aquela função precípua da qual se arroga o monopólio, a saber, a segurança? A superintendente da prefeitura deixa clara
sua lição de humanidade: derrubem os muros. Não apenas tudo será mais seguro, como também
toda a criminalidade deixará de existir.
Afinal, muros não seguram ninguém.
O que realmente barra as pretensões violentas do seres humanos são portões
abertos e ausência de qualquer delimitação de propriedade.
Ruy Ohtake, arquiteto criador de um desses projetos em Heliópolis,
diz que concebeu tudo "sem muros, cercas ou grades". De acordo com a reportagem, ele não gostou
nada do que viu:
"Há um espelhamento na classe média, que, de 20 anos para cá,
ficou cercada. A comunidade tem de
entender a urbanização. É preciso
conversar com esses moradores para retirar esses fechos".
Malditos pobres! Tão
mesquinhos... Adquirem propriedade e já
saem tratando de protegê-la! E fazendo o
que há de pior, o que há de mais moralmente baixo na escala dos valores
humanos: copiar a classe média! Tão logo
receberam as propriedades "sem muros, cercas ou grades", já correram para
colocar tudo isso que faltava — apenas com a intenção de macaquear a classe
média, é óbvio.
Por que eles não deixam seu egoísmo de lado e vão tratar de
"entender a urbanização", essa coisa de espírito aparentemente transcendental? Por que eles não compreendem de uma vez por
todas que basta retirarem os fechos de suas portas para poderem dormir tranquilos?
A maioria dos conjuntos entregues agora, como os da Nova Jaguaré,
zona oeste, são cercados. Em Itaquera,
do outro lado da cidade, além de muros, os moradores instalaram portões com
controle remoto para os carros.
Essa agora! Já pensaram
numa coisa dessas? Portões com controle
remoto, porca miséria! Por que esses
pobres não tratam de fazer algo realmente decente, como descer de seus carros,
na chuva, para abrir manualmente seus portões?
Que negócio é esse de fazer uso de tecnologias modernas típicas da
burguesia, e que nunca fizeram falta ao mundo civilizado dos de baixa renda? Por que eles simplesmente não aceitam sua
condição de pobreza perene e renunciam a esse conforto, como, a julgar pela
lógica da denúncia, seria o correto a ser feito por qualquer cidadão de bem?
É muita folga desses emergentes!
"Era uma favela, transformada num conjunto habitacional de 296
apartamentos, ainda rodeado de pobreza."
Tradução: os novos moradores desses apartamentos deveriam ter
"consciência social" e entender o básico: todo mundo tem de ser igual. Nada de uns terem mais que outros. Nada de alguns poucos abastados rodeados de
pobreza. Como não dá pra todo mundo ser
igualmente rico (afinal, vivemos em um mundo de escassez), que todos sejam
igualmente pobres, então.
O susto e a exasperação contidos nessa reportagem são típicos de uma
mentalidade que não entende o mais básico conceito de uma economia baseada na
propriedade privada: dê liberdade a um grupo de pessoas vivendo dentro de uma
área com direitos de propriedade estabelecidos, e elas rapidamente vão se
organizar por conta própria, criando suas próprias regras dentro do espaço onde
vivem. É aquilo que Hayek chamou de ordem
espontânea. O arranjo daí emergente será
o mais vantajoso possível para todos os envolvidos, dado que as regras foram
adotadas voluntariamente.
E é justamente a ausência de uma coerção externa — ou o excesso
de liberdade individual concedido — que deixou a mídia irritada. Pobres não têm o direito de proteger aquilo
que é seu. Sua obrigação moral é a de
mostrar desapego a tudo que possuem, pois afeto à propriedade seria um vício
burguês.
Essa postura ostensivamente anti-pobres tem suas raízes mais
explícitas ainda nas décadas de 1960 e 70, que foi quando os atuais professores
universitários — esses que envenenam os graduandos com suas teses
revolucionárias — eram ainda estudantes que romantizavam aquela Cuba
igualitária, bem como a "qualidade de vida" da URSS e o "Grande Salto para Frente"
(e seus 170 milhões de mortos) empreendido por Mao na China.
Naquele tempo, a ordem revolucionária era a de não ajudar os
pobres, não dar esmolas — uma "alienação burguesa" — e tratá-los o mais
humilhantemente possível. A elite
intelectual dizia que uma empregada doméstica, por exemplo, deveria ser
confinada em um quarto minúsculo e, se possível, sob condições
degradantes. Somente sob essas condições
é que os pobres iriam se organizar e criar um levante, levando a cabo a
revolução redentora, finamente desapropriando a burguesia de todos os seus
bens.
Passaram-se cinquenta anos e a revolução não veio (nos países em
que veio, os pobres ficaram ainda mais pobres). E, em nome desse ideal maior, três gerações
de necessitados continuaram sendo mantidos na mais absoluta penúria, proibidos
de receberam qualquer tipo de ajuda voluntária, tudo em prol da prioridade da
revolução.
Agora que os pobres finalmente estão tendo a chance de ascender a
um padrão de vida mais alto, os nostálgicos daquela época não se
conformam. Se os pobres adquirirem amor
à propriedade, a chance de uma luta de classes nos velhos moldes estará
praticamente extinta.
Pobreza e desigualdade
Entretanto, há uma outra abordagem possível. Além da questão da propriedade, a inquietação
demonstrada na reportagem está calcada na eterna dicotomia pobreza e
desigualdade, os "grandes males" do país.
É curioso notar como os intelectuais sempre têm fórmulas simplistas para
solucionar uma questão que é, no mínimo, milenar. Pobreza e desigualdade sempre foram a norma
em toda a história do mundo. Porém,
segundo os personagens citados pela reportagem, uma solução localizada seria
apenas retirar os muros e as trancas, o que acabaria com a "segregação" e, por
conseguinte, com a desigualdade.
É claro que se trata de uma visão absolutamente tacanha não só de
economia, mas também principalmente de história. Embora não seja minha intenção sair dando
lições a essas pessoas citadas pela reportagem, um fato incontornável é que
elas aparentam não ter o mínimo conhecimento da história daquilo que se propõem
a combater. Quando deixamos as paixões
ideológicas de lado e nos colocamos a analisar friamente essa questão da
pobreza e da desigualdade, vemos que ela é um pouco mais complexa do que nos
fazem supor tais concepções de mundo ultrapassadas. Acompanhe-me, por gentileza.
1) Até onde sabemos da história da humanidade, a desigualdade e a
pobreza são as condições mais gerais e constantes por que passaram os seres humanos
na terra. Não são, de modo algum, anomalias
temporais que aparecem, de vez em quando, em certos lugares que até então eram
prósperos e igualitários. Tampouco são mutações que surgem após um período de
riqueza geral e de justa distribuição de renda.
2) Antes da Revolução Francesa, no século XVIII, em nenhum lugar
do mundo observou-se uma revolta geral e crescente contra qualquer tipo e forma
de desigualdade social. Tal revolta, a
qual foi iniciada justamente na França, veio junto com a crença na
possibilidade de existir uma sociedade totalmente planejada por uma elite de
revolucionários clarividentes e sábios — o resultado, todos sabem, foram as
diversas experiências socialistas, cujos níveis de miséria e desigualdade
social foram ainda maiores que os vivenciados pelas gerações anteriores.
3) A promessa de eliminação da pobreza tendo o estado como agente
solucionador é apenas um discurso puramente ideológico: não há nenhum mecanismo
prático para lograr esse feito, a não ser a utilização daqueles meios que já
foram criados pela própria expansão do capitalismo. Ou seja: a ação direta do governo servirá
apenas para acrescentar mais um elemento parasitário ao arranjo econômico,
aumentando os custos de uma burocracia cada vez mais paralisante, intrusa e
contraproducente.
4) No Brasil, a luta contra a pobreza e a desigualdade gerou um
círculo vicioso extremamente danoso ao país, mas que poucos percebem: de um
lado, a insatisfação radical contra esses males milenares se incorporou de tal
modo à mentalidade coletiva, que acabou por gerar uma expectativa insana de
soluções nacionais a prazos relativamente curtos; de outro lado, essa mesma
expectativa serve para alimentar o crescimento de uma burocracia que suga para
si própria grande parte dos frutos da renda nacional, retardando a distribuição
dos seus benefícios justamente para aqueles que mais precisam. Afinal, a pobreza é uma indústria e, em uma
democracia, é sempre possível lucrar politicamente em cima dela. Todo e qualquer ministério, programa ou
secretaria criada pelo governo tem, em última instância, o objetivo de reduzir
a pobreza e a desigualdade.
5) A prosperidade é o resultado da ambição de cada um, da
inteligência, da energia, da disciplina, do talento, da responsabilidade, da
habilidade e do conhecimento. Quanto
mais os indivíduos tiverem essas qualidades, mais irão progredir. Quanto mais progredirem, maiores serão as
desigualdades. Consequentemente, lutar
pelo fim das desigualdades não só é inútil, como também é contraproducente para
o próprio desenvolvimento do país.
6) Aqueles que querem a igualdade material pensam que cabe ao estado
instaurá-la. Como dizia Roberto Campos,
é fácil observar que os intelectuais de "esquerda" dividem a humanidade em três
grupos: os desalmados, os desvalidos e os iluminados. Os segundos, os pobres, são maltratados pelos
primeiros, os ricos. E cabe aos terceiros — os próprios intelectuais de
"esquerda" — intervir usando os poderes coercivos estatais para
defender os bons dos maus e implantar a "justiça social" na Terra. A contradição desse discurso igualitário é que
sua implementação exige que um determinado grupo de iluminados seja incumbido
da tarefa de igualar os outros grupos, detendo para tanto poderes exclusivos. E isso, por si só, já inviabilizaria qualquer ideia
de igualdade.
7) Em uma economia de mercado, na qual os melhores e mais capazes
prosperam, acabar com a desigualdade é impossível. Por outro lado, acabar com a pobreza é algo
quase que inevitável. Bastaria que o
governo — não tributando, não gastando, não incorrendo em déficits e não regulamentando
— permitisse a progressiva acumulação de capital por parte dos empreendedores
capitalistas. O resultado seria de tal
grandeza que até o trabalho mais mal remunerado geraria renda mais do que
suficiente para a subsistência.
Conclusão
Por mais escandaloso que seja, os pobres reconhecem que a
propriedade é algo benéfico que deve ser protegido e muito bem cuidado. Semelhantemente, as origens milenares da
pobreza e da desigualdade não estão na existência da propriedade. Muito pelo contrário: foi a definição dos
direitos de propriedade que permitiu ao mundo sair do seu constante estado de
penúria e escassez.
São dois os principais fatores que estimulam o desenvolvimento
econômico: a razão e o reconhecimento de que o mundo opera de acordo com o princípio
da causa e efeito
Sem esse último, a ciência e a tecnologia, por exemplo, jamais
poderiam ser aprimoradas. Já a
influência da razão é o que torna um indivíduo uma pessoa dotada de
responsabilidade própria, tornando-o um agente causal com o poder de melhorar a
própria vida. É essa combinação de
ideias que produz nas pessoas a compreensão de que elas devem ser as responsáveis
pelo próprio futuro.
Mais ainda: foi essa mesma combinação de ideias que forneceu as
bases intelectuais para o estabelecimento e a ampliação dos direitos de
propriedade. Os direitos de propriedade
baseiam-se no reconhecimento do mais básico princípio da causalidade: aqueles
que produzem algo devem ter a motivação de poder se beneficiar dos efeitos daquilo que criam. Ou seja: os direitos de
propriedade se baseiam no reconhecimento de que um indivíduo tem o direito de
se preocupar com seu progresso material.
E disso os pobres sabem melhor do que ninguém.