quinta-feira, 17 jun 2010
No
primeiro artigo desta
série, foi apresentado um panorama histórico do padrão-ouro clássico. Nesta segunda parte, falaremos exclusivamente
sobre como (provavelmente) funcionaria a mecânica de um padrão-ouro puro.
Antes,
uma ressalva: não se está falando aqui, de modo algum, que o padrão-ouro puro é
o arranjo monetário ideal e que, portanto, ele deve ser imposto por algum governo.
Nada estaria mais errado do que isso.
Seria uma atitude absolutamente antilibertária impor algum tipo de
arranjo monetário. O que está sendo dito
aqui — e essa é uma opinião puramente pessoal do autor — é que, caso houvesse
uma completa desestatização da moeda, com o banco central perdendo seu poder
monopolista e, consequentemente, havendo plena liberdade de escolha de moedas,
o ouro teria grandes chances de ser voluntariamente escolhido como o meio de
troca geral — como sempre foi ao longo de toda a história.
E
é fácil de entender o porquê. O
propósito do dinheiro é e sempre foi o de facilitar as transações, possibilitando
que elas sejam feitas da maneira mais fácil possível. Sendo assim, a tendência sempre será a de
haver uma convergência natural para uma moeda única — ou, ao menos, para uma
quantidade mínima de moedas distintas.
Se
houver uma multiplicidade de moedas no mercado, então paradoxalmente voltaremos
ao sistema de escambo — algo que foi eliminado justamente pela criação do
dinheiro. Afinal, se você só tem o
dinheiro X e quiser fazer uma compra num determinado lugar que só aceita o
dinheiro Y, você antes precisará trocar X por Y para só então poder fazer sua
compra. Isso é um custo de transação,
algo que um livre mercado sempre procura minimizar. Seria obviamente mais vantajoso se todos
pudessem utilizar o mesmo dinheiro em todos os lugares.
Portanto,
pessoalmente acredito que, se houver uma desestatização completa da moeda, o
livre mercado de moedas inexoravelmente levaria ao estabelecimento de uma ou de
poucas moedas. E o ouro, provavelmente,
seria a mais proeminente delas, justamente por se tratar de uma commodity
escassa. A oferta de ouro aumenta apenas
de acordo com o ritmo das escavações. E,
historicamente, a quantidade de ouro no mundo cresce a uma taxa de apenas 2% ao
ano. Portanto, o ouro sempre será uma
commodity escassa — ao contrário das cédulas de dinheiro que usamos hoje, as
quais podem ser criadas aos montes e ao simples apertar de um botão.
Ademais,
a impressão de uma cédula de 2 reais custa exatamente o mesmo que a impressão
de uma cédula de 100 reais. Por outro
lado, a "criação" de uma barra de ouro de 3kg exige 100 vezes mais esforço e
gastos que a "criação" de uma moeda de ouro de 30 gramas (uma onça). Por que você guardaria toda a sua riqueza em
algo que nunca foi e nunca será escasso, como o papel-moeda sem lastro, quando
você pode guardá-la em algo que já é escasso e que está destinado a sempre ser
escasso? Questão de lógica.
Assim,
sem mais delongas, analisemos agora como provavelmente funcionaria um sistema
monetário baseado no ouro.
Mecanismo
Em
um padrão-ouro puro, o dinheiro utilizado como meio de troca seria, obviamente,
o ouro (e muito provavelmente a prata, para transações de menor valor).
Em
primeiro lugar, inevitavelmente haveria uma concorrência entre os cunhadores de
moedas de ouro. Diferentes pessoas ou
empresas ofereceriam serviços para transformar barras de ouro em moedas de
ouro, utilizando como diferencial para seus serviços coisas como beleza e
qualidade das moedas.
Porém,
isso não significa que as pessoas andariam pelas ruas portando barras ou moedas
de ouro, pois, além de ridículo, seria algo completamente desconfortável e
desajeitado. Da mesma forma, as pessoas
provavelmente não carregariam moedas de ouro dentro da carteira, pois o peso
seria inviável.
Nesse
sistema, inevitavelmente o mercado desenvolveria um substituto monetário para o
ouro, muito provavelmente certificados de ouro (tickets de papel) que
funcionariam da mesma maneira que as cédulas de dinheiro funcionam hoje em
dia. Como seria isso?
Você,
as outras pessoas e as empresas, justamente por não quererem portar barras e
moedas de ouro para fazer suas transações diárias, guardariam suas barras e
moedas em grandes "armazéns". Ao depositar
seu ouro nesses armazéns, você receberia tickets de papel, que nada mais seriam
do que certificados de armazenamento ou recibos de armazenagem. São esses tickets — que funcionam como
substitutos monetários para o ouro — que irão certificar que você é o
proprietário daquele ouro que ali foi depositado. E caso você queira retirar seu ouro daquele
armazém, bastaria obviamente você apresentar esses tickets.
Até
aqui, nada de mais.
Porém,
apenas fazer esse serviço de armazenagem não ajuda muito. Afinal, todo mundo quer comodidade, e não
faria sentido você depositar ouro em um armazém ao final do dia apenas para, no
início do dia seguinte, você ter de ir novamente até esse armazém e sacar a
quantidade de ouro que julga ser necessária para aquele dia. O que você e todos querem é poder fazer
transações fáceis e rápidas sem ter de manejar moedas e barras de ouro.
Sendo
assim, o mercado novamente virá ao socorro.
É certo que esses armazéns de ouro terão todo o interesse em facilitar a
vida de seus clientes. Consequentemente,
é certo que eles farão de tudo para adquirirem uma reputação de confiabilidade;
eles terão todo o interesse em deixar claro para todas as pessoas que os
tickets por eles emitidos podem ser ressarcidos em ouro a qualquer momento,
assim como carros num estacionamento privado.
Por
conseguinte, ao invés de você ter de sacar seu ouro para pagar alguém, você poderá
simplesmente entregar seu ticket para uma pessoa com a qual você faça uma
transação qualquer, e essa pessoa, justamente por confiar na reputação daquele
armazém, irá aceitar esse ticket como pagamento, pois sabe que poderá a
qualquer momento ir até lá e retirar seu ouro.
Enfatizando: as pessoas vão receber pedaços de papel apenas porque sabem
que eles não são meros pedaços de papel.
Eles são títulos que podem ser a qualquer momento convertidos em ouro.
Vários
desses armazéns — que poderiam ser chamados de bancos — surgirão para ofertar
esse serviço, o qual, obviamente, seria pago.
A livre concorrência faria com que os preços cobrados por esse serviço
de armazenagem fossem os mais baixos possíveis.
Cada
banco ofereceria seus próprios substitutos.
O Banco A, o Banco B, o Banco C imprimiria seus próprios tickets e, de
posse deles, você poderia ir até aquele banco para retirar seu ouro. Por exemplo, se você guardou seu ouro no
Banco A, mas numa transação recebeu um ticket do Banco B, você pode ir até o
Banco B e redimir esse ticket naquela determinada quantia de ouro. Ou você pode também ficar com esse ticket e
utilizá-lo numa futura transação. Ou
você pode pedir que o Banco B transfira esse ouro para o Banco A, sendo
bastante provável que o custo dessa transferência seja alegremente coberto pelo
Banco A, que agora terá mais ouro em seus cofres, o que lhe garantirá mais
receitas (assunto para o terceiro artigo).
Já
é possível perceber onde estamos chegando.
Todas as comodidades que temos hoje, como transferências interbancárias
ou pagamentos com cheque e cartão de débito, continuariam sendo feitas
exatamente da mesma forma. Tentemos
imaginar um exemplo prático.
Você
deposita no Banco A 300g de ouro (no preço de hoje, isso é equivalente a nada
menos que R$ 23.000). Ao depositar seu
ouro no Banco A, além dos tickets é provável que você possa receber também um
cartão de débito, por exemplo. Da mesma
forma que hoje você decide quanto quer reter de cédulas e quanto quer deixar no
banco em forma eletrônica, nesse sistema você terá de escolher quanto quer de
tickets e quanto quer em seu cartão de débito.
Assim,
suponha que você escolha ficar com 10g (R$ 700) em tickets e 290g no cartão de
débito. Tudo isso será, obviamente,
controlado eletronicamente pela informática do seu banco. Ao gastar 5g (R$ 350) no cartão de débito,
por exemplo, em uma loja que tenha conta no Banco B, este banco reclamará junto
ao seu Banco A a transferência dessa quantidade de ouro. Ou ele também poderá optar por deixar o ouro
no Banco A, sabendo que poderá demandá-lo a qualquer momento, uma vez que
aquela determinada quantia de ouro agora é dele. Não sei, existem várias hipóteses e não cabe
a mim ficar dizendo como o mercado funcionará.
Estou apenas mostrando que é perfeitamente possível, sob um padrão-ouro
puro, haver as mesmas comodidades de hoje.
Por
exemplo, uma ATM (caixa eletrônico) funcionaria da mesma maneira que funciona
hoje. Você passa seu cartão de débito,
digita o valor que quer sacar, e a máquina imprimirá a quantidade de tickets
desejada. Atendo-se ao nosso exemplo
numérico dado, se você quiser sacar mais 10g (R$ 700) em tickets, seu cartão de
débito ficará com 10g a menos e você ficará com 10g a mais em tickets. O total de ouro armazenado no seu banco não
foi alterado, e nem poderia ser. Tampouco houve alteração da oferta monetária.[*]
(Em
um detalhe mais técnico, atualmente, quando você retira dinheiro do banco, há
uma alteração na composição do M1, diminuindo o valor dos depósitos à
vista. Isso possui um efeito
contracionista sobre o sistema bancário de reservas fracionárias, algo que, se
feito em larga escala, poderia causar uma enorme deflação monetária.)
O poder da concorrência para refrear as
fraudes
Mas
a real vantagem desse padrão-ouro puro está justamente no fato de que esse
arranjo desestimularia enormemente a expansão dos meios fiduciários — isto é,
a criação de tickets que não sejam lastreados por ouro. E é exatamente isso que o atual sistema
bancário de reservas fracionárias faz: criar dinheiro que não existe.
Mas
como esse sistema de padrão-ouro poderia impedir essa expansão dos meios
fiduciários? Afinal, não há um banco central
para coibir a prática, impondo altos compulsórios.
O
segredo, novamente, chama-se concorrência.
Pra começar, vale dizer que os efeitos da concorrência já começam na
cunhagem da moeda. Se uma empresa de
cunhagem começa a trapacear, dizendo que suas moedas possuem um grau de pureza
maior do que de fato têm, ou mesmo um peso fora do especificado, isso seria
rapidamente descoberto e denunciado pelos concorrentes, que, assim como em
qualquer outra área, ganham mercado justamente em cima dos erros e falhas de
seus rivais.
Fazendo
uma comparação jocosa, porém verdadeira, o que impede que um vendedor de atum
coloque comida de gato em seu produto é exatamente o fato de que seus
concorrentes rápida e prazerosamente o denunciariam. "Ei, consumidores, a marca
XYZ diz que vende atum, mas nós analisamos uma amostra e descobrimos que ela é
composta de comida de gato". Tal marca
iria rapidamente à bancarrota.
Só
pra deixar claro, não estou dizendo que a concorrência tem o poder mágico de
acabar com as fraudes. Mas certamente a
concorrência é um poderoso mecanismo capaz de diminuir sensivelmente a
probabilidade de tais ocorrências.
Da
mesma forma, o que impediria que os bancos imprimissem tickets que não fossem
lastreados em ouro? Afinal, eles têm
todo o estímulo para fazer isso. Quanto
mais tickets eles imprimirem, mais eles poderão emprestar, e mais juros poderão
ganhar com esses empréstimos. O que os
impede?
Ora,
a concorrência. Se um banco emitisse
mais tickets do que pode redimir em ouro, seus concorrentes iriam à forra. Bastaria que avisassem ao público que o Banco
A está praticando fraude e, por isso, está tecnicamente insolvente. "Eles emitiram mais tickets do há que ouro
nos cofres. Corram e retirem seu
dinheiro enquanto há tempo. Os últimos a
irem sacar ficarão sem nada".
Essa
corrida bancária deixaria o Banco A de joelhos e seus concorrentes, rindo à
toa.
Entretanto,
resta a pergunta: seria possível que todos os bancos fizessem um cartel,
imprimissem tickets sem lastro de maneira concertada e concordassem em não
exigir a compensação do ouro uns dos outros?
Possível,
seria. Porém, altamente improvável. Vale lembrar que, num mercado totalmente
desregulamentado, qualquer pessoa pode criar um armazém para atuar como banco
(no nosso sistema bancário, o Banco Central proíbe ou restringe severamente a
criação de bancos que venham a concorrer com seus favorecidos). Assim, esses novos entrantes seriam uma
constante ameaça aos bancos já estabelecidos.
Bastaria um pequeno banco exigir a compensação de um banco que criou
meios fiduciários, e este ficaria imediatamente em apuros, tendo de pedir ouro
emprestado para outros bancos para cobrir seu rombo. Só que, como todos criaram meios fiduciários,
algum banco fatalmente ficará sem ouro para restituir seus clientes ou para
mandar para outros bancos caso fosse reclamado.
Ou
seja, esse cartel é insustentável — como, aliás, são todos os carteis em um
mercado desregulamentado e com livre entrada.
Consequentemente,
tem-se aí a explicação de por que um sistema bancário livre e operando com uma
moeda-commodity tenderia a ser sólido e não incorrer em expansões dos meios
fiduciários, o que traria um efeito benéfico em termos de inflação de preços e
ciclos econômicos.
Conclusão
O
objetivo desse artigo foi apenas o de relatar como funcionariam as transações
monetárias em um padrão-ouro puro, algo que sempre intrigou muita gente. No próximo artigo da série, serão
explicitadas as vantagens desse sistema em termos de tamanho do governo e
liberdade econômica, bem como o funcionamento do sistema bancário no quesito
empréstimos e lucratividade.
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[*] A tecnologia vem a cada dia nos deixando mais perto da
realidade de um sistema monetário sólido.
Um hotel em Abu Dhabi apresentou recentemente um caixa
eletrônico que libera barras de ouro de 24 quilates em tamanhos de 1, 5 e
10 gramas, bem como moedas de ouro. Um
computador dentro da máquina mostra em tempo real o preço do ouro e faz
atualizações a cada 10 segundos. Já há
planos para instalar mais 200 dessas máquinas na Áustria, Alemanha e
Suíça.
É
válido notar que essa tecnologia de mostrar em tempo real o preço do ouro pode
ser adaptada para fazer o mesmo com a taxa de câmbio entre o ouro e a prata,
reduzindo os custos de transação e facilitando o desenvolvimento de mercados
paralelos de ambos os metais. Moedas de
prata seriam muito mais convenientes que moedas de ouro para as pequenas
transações diárias — ou, como dizem, para os pequenos trocados. A preços atuais, uma
barra de prata de 1 grama possui o poder de compra de US$ 0,70 e uma barra de 5
gramas, de US$ 3,50.