1. Introdução
As diversas escolas de pensamento econômico concordam com a idéia intuitiva
de que as variações observadas nos níveis absolutos de preços têm algo a ver
com as variações verificadas nos volumes de moeda existentes nas economias,
embora haja consideráveis discordâncias no que se refere ao papel específico
desempenhado pela moeda na relação causal que conduz aos processos
inflacionários, assim como no que diz respeito à própria definição de inflação.
O objetivo deste artigo é o de apresentar o pensamento dos austríacos sobre os
importantes fenômenos monetários.
Como observou Rothbard, "a teoria monetária austríaca
virtualmente começa e termina com a monumental "Theorie des Geldes und der
Umlaufsmittel" (Teoria da Moeda e do Crédito), de Ludwig von Mises,
publicada em 1912".
No ano de 1903, um economista especializado em assuntos monetários e
influente nos meios acadêmicos, Karl Helfferich, lançou um desafio à Escola
Austríaca, no sentido de que, embora Menger, Wieser e Böhm-Bawerk houvessem
obtido extraordinários progressos no que se referia à análise do valor e dos mercados
- isto é, naquilo que hoje conhecemos como "microeconomia"- não
tinham conseguido o mesmo sucesso no campo dos problemas monetários. De fato, o
conceito de utilidade marginal não fora ainda utilizado para explicar a
determinação do valor da moeda, que continuava sendo analisada pela metodologia
desenvolvida pelos economistas clássicos ingleses, que tratava as questões
monetárias em um compartimento isolado, sob um ponto de vista
"macroeconômico" que as separava das teorias da utilidade, do valor e
dos preços relativos, desenvolvendo-as mediante conceitos de agregados
econômicos, tais como "nível geral de preços",
"velocidades" e "produto nacional".
Em outras palavras, a tradição da Teoria Quantitativa da Moeda, bem
como, já nos anos 30, a Teoria da Preferência pela Liquidez, de Keynes e, a
partir da década de 50, a reafirmação monetarista da Teoria Quantitativa e as
que se lhe seguiram (como a análise de Phillip Cagan sobre a demanda de moeda
sob condições de hiperinflação), fixando-se na metodologia da macroeconomia,
não conseguiam estabelecer uma base microeconômica para o estudo dos problemas
monetários, o que tornava essas teorias - mesmo a importante contribuição de
Milton Friedman - um tanto desligadas da ação humana observada no nível dos
indivíduos, que é fundamental para o correto entendimento da ciência econômica.
A única exceção, embora parcial, a esse desligamento fica por conta dos
trabalhos desenvolvidos, a partir do final dos anos 60, por Robert Lucas,
Thomas Sargent e Neil Wallace e que vieram a constituir o que hoje denominamos
de Nova Macroeconomia, ou Escola das Expectativas Racionais, bem como as
contribuições de Robert Clower e Axel Leijonhufvud, nos anos 60 e 70.
Pois bem, Mises, em seu citado livro de 1912 (que ele amadurecera desde
1906), solucionou satisfatoriamente o desafio de Helfferich, aplicando a
análise da utilidade marginal de Carl
Menger - que fora anteriormente utilizada tão somente para explicar a
determinação da demanda do consumidor e dos preços de mercado - aos fenômenos
da demanda de moeda e do seu valor, ou preço. A partir da "Theorie des
Geldes und der Umlaufsmittel", cuja segunda edição, de 1924, integrou as
teorias da moeda, do capital e da utilidade marginal para explicar os problemas
da inflação, da recessão e dos ciclos econômicos, os fenômenos monetários
passaram a ser analisados em conjunto com os demais fenômenos econômicos, como
os da oferta, demanda e preços, sem necessidade de serem isolados nos conceitos
de "velocidades", "níveis gerais de preços" ou "equações
de troca".
A contribuição de Mises à teoria monetária começa a partir de sua
solução para o "problema da circularidade" (ou "círculo
austríaco") e de sua demonstração de que a moeda, ao invés de ter sido
inventada de modo pré-concebido pelo homem, sob a forma de um contrato social,
é uma instituição resultante de ações individuais não intencionais, nas quais
os agentes econômicos foram percebendo a superioridade (em termos de geração de
estados mais satisfatórios) das trocas indiretas, isto é, as efetuadas mediante
a utilização de um meio de trocas, em relação às trocas diretas. Tal meio de trocas - a moeda - é o mais
negociável, o mais aceito entre todos os demais bens e o seu desenvolvimento
deu-se, para usarmos a linguagem de Hayek, como uma ordem espontânea.
Os livros-texto listam como funções básicas da moeda a de meio de
trocas, a de unidade de contas e a de reserva de valor. A dificuldade, contudo,
consiste em saber quais, dentre os diversos ativos financeiros, desempenhando
tais funções, possam ser caracterizados como moeda, fato que gerou conhecidas
controvérsias entre os economistas. Sob o ponto de vista da teoria monetária
moderna, entretanto, o que se requer, mais do que uma simples e universal
definição de moeda, é a solidez de uma teoria que consiga explicar os fenômenos
monetários.
De acordo com a Escola Austríaca, uma boa teoria monetária deve partir
do pressuposto de que a demanda de moeda por parte de um indivíduo depende de
suas estimativas a respeito do poder de compra da moeda em termos dos preços de
"ontem". De fato, cada indivíduo, ao decidir a porção de sua riqueza
a ser mantida sob a forma de moeda (liquidez "não usada"), deve
subjetivamente estimar a utilidade marginal de cada unidade monetária, ou seja,
seu poder de compra, ou, ainda, seu preço. Ocorre, porém, que o poder de compra
da moeda, por sua vez, depende fortemente dos saldos monetários que os
indivíduos decidem manter, isto é, de suas demandas individuais de moeda.
2. O problema da circularidade
ou círculo austríaco
Eis, então o "problema da circularidade": como a demanda de
moeda e, portanto, sua utilidade, depende de seu preço pré-existente (ou poder
de compra), como pode então este ser explicado pela demanda? O leitor deve
observar que esta aparente armadilha circular surge somente ao tentarmos
aplicar a teoria da utilidade marginal para explicar a determinação do preço da
moeda. Ele não existe para os outros bens e serviços: ao estabelecermos nossas
escalas de valores para tênis, sorvetes ou canetas, por exemplo, o que importa
na determinação da utilidade marginal de cada um desses produtos, é a sua
natureza física, ou seu poder de satisfazer necessidades específicas. Isto é,
essas valorações não dependem de preços pré-existentes: na realidade, elas determinam
aqueles preços. Com relação à moeda, no entanto, nós a demandamos não para uso
direto em consumo, mas para retê-la sob a forma de saldos monetários, com o
objetivo de trocá-los por bens que possamos consumir diretamente.
Em outras palavras, não utilizamos a moeda pelo fato dela ser
consumida, mas sim porque ela tem um valor prévio de troca, já que ela será
permutada com outros bens. A moeda é demandada, portanto, por possuir um poder
de compra pré-existente; sua utilidade não apenas é independente de seu preço
de mercado, como surge do fato de que ela tem um preço, ou poder de compra, em
termos dos demais bens e serviços.
Em linguagem técnica, as utilidades de cada unidade monetária
relativamente aos outros bens determinam as demandas individuais de saldos
monetários, isto é, que parcela da riqueza será mantida sob a forma de moeda,
relativamente à que será gasta. Mises, aplicando a lei da utilidade (ordinal)
marginal decrescente e considerando que o "uso" da moeda existe para
fazer frente a futuras trocas, chegou implicitamente a uma "curva" de
demanda de moeda que é decrescente em relação ao poder de compra de cada
unidade monetária, que ele denominou de "valor objetivo de troca" da
moeda e que é determinado, nos moldes da análise convencional de oferta e
demanda, pela interseção da demanda de moeda com o estoque existente de moeda.
Este último - ou oferta de moeda - é, em qualquer instante de tempo, nada mais,
nada menos que a soma dos saldos monetários individuais: nenhuma unidade
monetária existente deixa de ser possuída por alguém, não podendo, por isso,
deixar de estar contida em alguma demanda monetária individual.
Contudo, o poder de compra da moeda não é, como se costuma considerar,
simplesmente o inverso do "nível geral de preços" - que é, por sinal,
algo que não existe concretamente: o que existe são preços. O poder de compra
ou preço de uma unidade monetária é, na realidade, um conjunto das quantidades
de bens e serviços alternativos que essa unidade monetária pode comprar. E,
como tal conjunto é específico e é heterogêneo, ele não pode ser simplesmente
somado para obtermos uma unidade de preços agregados, ou "nível geral de
preços".
3. O Teorema da Regressão de Mises
Mises resolveu o "problema da circularidade", cuja aparente
insolubilidade fez com que os economistas da "mainstream" deixassem
de aplicar a análise marginal para determinar o valor da moeda, o que os fez
adotar uma postura walrasiana de equilíbrio geral, da qual, por sinal, ainda
não se libertaram. Sua solução é conhecida como o Teorema da Regressão e foi apresentada na primeira edição de seu
tratado "Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel". Este teorema,
apesar de ser uma das importantes contribuições que Mises legou à ciência
econômica, é também, infelizmente, um dos menos conhecidos, fato que gerou
muitos erros. Verifiquemos sua brilhante solução para o problema do
"círculo austríaco".
Em qualquer período de tempo, digamos, no dia D (t), o valor ou poder
de compra da moeda é determinado pela interação da oferta de moeda com a
demanda de moeda, observadas naquele dia. Esta última, como sabemos, é
determinada pela utilidade marginal da moeda para os indivíduos, a qual possui
um componente histórico, pois depende do poder de compra, V, existente no dia
anterior, isto é, de V (t - 1). Este, por sua vez, fora determinado pela oferta
e demanda monetárias no dia precedente, D (t - 2), o qual dependia de V (t - 3)
e assim sucessivamente.
A solução de Mises para este problema consiste em ir empurrando essa
regressão temporal para trás, até o dia, digamos, D (0), em que a moeda não era
usada como meio de trocas, sendo apenas utilizada para consumo direto. O dia D
(1), então, foi o primeiro em que a moeda passou a ser usada como tal, enquanto
D (0) foi o último dia em que a moeda foi utilizada como uma mercadoria comum,
digamos, ouro. Portanto, podemos fazer regredir em uma cadeia temporal o valor
da moeda em qualquer instante D (t), até D (1) e, daí, a D (0). Vemos, então,
que a demanda da moeda-mercadoria (ouro) no dia D (1) dependia do poder de
compra do ouro no dia anterior, isto é, de V (0). A regressão temporal deve
necessariamente ter um fim, uma vez que a demanda de ouro no dia D (0)
consistia, necessariamente, de seu valor direto para consumo, sem qualquer
componente histórico, ou seja, sem influência do preço do ouro no dia D (-1).
Com isto, Mises solucionou o "problema da circularidade",
mostrando, adicionalmente, que, diferentemente dos valores dos demais bens e
serviços, o valor da moeda tem um importante componente histórico. Além disso,
o "Teorema da Regressão" mostra-nos que a moeda, em qualquer
sociedade, não pode ter sido criada a não ser pelo processo de mercado que
caracteriza as trocas, ou seja, a moeda é uma ordem espontânea. Não faz qualquer sentido, portanto, acreditar que
se possa "criar" moeda mediante contratos sociais, ou por imposição
dos governos, ou por quaisquer esquemas artificiais propostos por economistas:
a moeda surge, como observa Rothbard,"organicamente, de dentro do mercado".
A partir desse ponto, depois que mostramos, em linhas gerais, o que é
a moeda (e o que não é), podemos examinar a teoria monetária da Escola
Austríaca.
4. A teoria monetária austríaca
A rigor, não existem divergências entre os economistas da Escola Austríaca,
os adeptos de Milton Friedman ("monetaristas") e os "novos
clássicos" da Escola de Expectativas Racionais, no que se refere ao fato
de que a política monetária - e nada mais - seja a causa da inflação. Mises,
por exemplo, via como uma ameaça à própria democracia a capacidade que os
governos têm de emitir moeda. Também no que se refere aos efeitos das políticas
keynesianas de "pleno emprego" e de "sintonia fina", Hayek,
Friedman e Sargent concordam quanto ao fato de que são desastrosas, porque
geram a aceleração da inflação e, no limite, a hiperinflação.
As diferenças mais importantes entre austríacos
e monetaristas estão em três
importantes hipóteses: a primeira é que a Escola Austríaca possui uma Teoria do
Capital, algo que não existe nas demais abordagens; a segunda é que os austríacos encaram os mercados como
processos essencialmente dinâmicos e, portanto, não utilizam análises de equilíbrio; e a terceira é o contraste
entre a fundamentação microeconômica da primeira (que influenciou a Escola das Expectativas
Racionais, embora esta não seja subjetivista) e a ênfase macroeconômica da
segunda.
A visão austríaca é de que os
efeitos das variações do estoque de moeda, provocadas por alterações nos fluxos
monetários, não são uniformes, afetando desigualmente os preços relativos, a
estrutura de capital e os padrões de produção da economia, bem como alterando
os níveis de emprego dos fatores produtivos, em um processo que se vai tornando
progressivamente mais forte, à medida que o governo, para corrigí-lo, altera a
política monetária.
Mises já havia mostrado a falaciosidade do conceito de "nível geral de
preços", ao examinar porque os preços sobem - isto é, porque o poder de
compra da moeda cai - em resposta a um aumento na oferta de moeda (mantidas constantes
as escalas valorativas individuais que determinam as respectivas demandas de
moeda): ao invés de seguir o procedimento neoclássico de separar a economia em
um setor real e um setor monetário, ele mostrou que as expansões monetárias
afetam desigualmente os diferentes mercados e, portanto, provocam
inescapavelmente alterações nos preços relativos. Esta implicação, que refuta a
tese neoclássica da "neutralidade da moeda", foi posteriormente
desenvolvida por Hayek, em diversos trabalhos.
Rothbard, para explicar que a moeda afeta diferentemente os preços
absolutos, recorre ao que denomina de "Modelo do Anjo Gabriel". A
moeda não entra uniformemente na economia, mas, mesmo se fosse assim, como no
caso em que o anjo descesse do céu e, de noite, aumentasse os encaixes
monetários de todos os habitantes do país em, digamos, 100%, os preços não dobrariam
em sua totalidade: alguns mais do que dobrariam, outros subiriam menos do que
100%, outros ficariam constantes, outros poderiam cair, etc. Isto ocorre porque
cada indivíduo tem uma escala de valores própria, uma ordenação característica
de preferências, que contém as utilidades marginais das unidades monetárias
relativamente às utilidades marginais dos demais bens. À medida que os saldos
monetários dos diferentes indivíduos aumentam, suas compras de bens e serviços
mudarão de acordo com as novas posições desses bens e serviços relativamente à
moeda, em suas diferentes escalas de
valores. A estrutura da demanda, bem como os preços relativos e as rendas
relativas sofrerão alterações; a composição do conjunto que constitui o poder
de compra da moeda, por conseguinte, também será alterada.
Ora, se isto ocorreria em uma situação tão simples quanto improvável, como
a descrita pelo "Modelo do Anjo Gabriel", é evidente que ocorre com
muito maior intensidade por ocasião das expansões monetárias que se verificam
no mundo real. Quando o Banco Central ou os bancos comerciais expandem a moeda
e o crédito, o dinheiro novo assim criado é gasto, inicialmente, em bens e
serviços específicos. As demandas por esses produtos sobem em relação às
demandas dos demais, o que aumenta seus preços relativamente aos demais preços.
À medida que o dinheiro novo espalha-se pela economia, outras demandas aumentam
e, portanto, outros preços também aumentam. A riqueza e a renda se
redistribuem, em favor daqueles que receberam a moeda nova no início do
processo e em detrimento dos que só passaram a recebê-la nos estágios
posteriores. Ocorrem, portanto, duas modalidades de alterações de preços relativos:
a primeira é esta redistribuição de rendas dos últimos para os primeiros
receptores do dinheiro novo, que ocorre durante o processo inflacionário e a
segunda são as mudanças permanentes na riqueza e na renda que continuam a se
verificar mesmo depois que a moeda nova já se tenha espalhado por toda a
economia.
Já em 1912 Mises chamara a atenção para o fato - que fora observado por
David Ricardo cem anos antes - de que aumentos na oferta de moeda não geram
benefícios para a sociedade, basicamente porque eles não alteram os serviços de
troca que a moeda proporciona; apenas diluem o poder de compra de cada unidade
monetária. Portanto, não existe nenhuma "necessidade social" que
justifique o crescimento da oferta monetária, nem mesmo se a produção ou a população
aumentarem: simplesmente, as pessoas poderão manter uma proporção maior de
saldos monetários reais (em termos de poder de compra) para uma dada oferta de
moeda, gastando menos, o que fará subir o poder de compra de seus saldos
monetários. Conforme Mises escreveu no capítulo XVII de "Ação
Humana", em 1948, "... a
quantidade de moeda disponível em toda a economia é sempre suficiente para
assegurar a todos tudo o que a moeda faz e pode fazer".
A inflação - que não deve ser entendida simplesmente como um aumento
contínuo e generalizado de preços (este é o seu efeito, não a sua causa), mas
como uma "queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a
correspondente elevação dos preços" - é um método pelo qual o governo, o
sistema bancário que ele controla e os grupos que ele favorece politicamente
adquirem a capacidade de expropriar parte da riqueza dos demais grupos da
sociedade. Portanto, é mais do que aconselhável - é crucial - que a sociedade,
mediante o estabelecimento de instituições adequadas, impeça que a política
monetária fique sujeita às pressões de natureza política. Existem três
mecanismos institucionais voltados para esse fim.
O primeiro, defendido por Mises, é ancorar a moeda ao estoque de ouro dos
bancos centrais, isto é, o regime do padrão ouro; o segundo, sugerido por
Hayek, consiste na "desnacionalização" da moeda, em que se
estimularia a competição entre as diversas moedas sobre as quais os bancos
passariam a ter poder de emissão, de modo que as moedas das instituições bancárias
administradas mais eficientemente teriam utilidades marginais maiores do que as
emitidas pelos bancos mal administrados e, portanto, seus valores seriam mais
elevados do que os das segundas, o que faria o sistema tender para a
estabilidade. Por fim, o terceiro mecanismo, que, embora não tenha sido
proposto por economistas austríacos,
tende a isolar a política monetária das pressões políticas, é a
"independência ou autonomia do Banco Central", que equivale a separar
a política monetária da política fiscal.
O grande desafio - a ser prontamente enfrentado, como frisou Hayek - é
proteger permanentemente a moeda contra os falsos remédios receitados por
muitos economistas, que podem surtir efeitos paliativos no curto prazo, o que
sustenta sua popularidade e os leva a crer que possuem a chave da salvação. No
Brasil e no mundo há milhares desses economistas, cujas teses, obviamente,
quase sempre soam em harmonia com os interesses políticos de diversos grupos,
mas que têm o efeito de, no longo prazo, abalar aquela que deve ser a
instituição mais bem guardada dentre todas as outras: a moeda, cuja
estabilidade deve ser o começo de qualquer conversa a respeito do crescimento
sustentado.
5. Inflação, Recessão,
Estagflação e Ciclos Econômicos
Para compreendermos melhor a visão da Escola Austríaca com relação ao
problema da inflação, da recessão, da estagflação e dos ciclos de negócios,
podemos preliminarmente contrastá-la com as posições dos keynesianos e dos
monetaristas. Inicialmente, tanto uns como outros admitem implicitamente que o
setor real da economia está permanentemente em algum tipo de equilíbrio de
longo prazo, em que a política monetária afeta apenas o "nível geral de
preços" e o produto nominal (ou o produto real), sem qualquer efeito sobre
a estrutura de produção e a composição do produto real, já que esses modelos
não contam com nehuma Teoria do Capital - admitem, simplesmente, que o estoque
de capital é "constante" no curto prazo.
Os keynesianos, que, de um modo geral, crêem que os preços são determinados
pelos custos de produção, acreditam que as tentativas de controle da oferta de
moeda, ao provocarem aumentos nos custos, aumentarão o desemprego sem reduzir a
inflação. Por isso, costumam sugerir controles diretos de custos, via
"políticas de rendas", como forma de obter estabilidade de preços e
pleno emprego. É uma visão míope.
Para os monetaristas, a inflação é resultado das discrepâncias entre a
oferta de moeda (historicamente instável) e a demanda de moeda (considerada
estável, isto é, previsível), o que os leva a recomendar como a única terapia
anti-inflacionária correta o controle sobre a oferta de moeda, que deve crescer
a uma taxa fixa(. Para Friedman, o desemprego associado aos programas
anti-inflacionários não deve ser visto como o remédio para a cura da inflação,
mas como um inevitável efeito colateral, resultante de um "processo de
ajustamento" de curto prazo que perdurará enquanto houver discrepâncias
entre a inflação observada e as expectativas de inflação. É uma visão correta
no que tange à identificação da causa e da solução do problema da inflação, mas,
sob a ótica da Escola Austríaca, é incompleta: primeiro, por não mostrar como
os fluxos monetários alteram os preços relativos; segundo, por não verificar
como esses fluxos alteram a estrutura de capital e terceiro, por não considerar
o mercado como um processo e, portanto, por não conseguir explicar (por seu
enfoque macroeconômico e por sua hipótese de uniformidade à la "Modelo do Anjo Gabriel") a natureza das alterações
geradas pela moeda nos preços absolutos e nos preços relativos.
A Teoria Austríaca, resumida a seguir, mediante a integração das teorias da
moeda, do capital, do processo de mercado e dos ciclos econômicos e calcada
epistemologicamente no individualismo metodológico (praxeologia), consegue
sanar estas deficiências do enfoque mais convencional.
A política monetária não é "neutra": ela não afeta todos os
preços de maneira uniforme e, portanto, altera os preços relativos e, assim, a
estrutura temporal de produção!
A idéia central é que o dinheiro novo entra em um ponto específico do
sistema econômico e, sendo assim, ele é gasto em certos bens e serviços
específicos, até que, gradualmente, vai-se espalhando por todo o sistema, assim
como um objeto qualquer, ao ser atirado na superfície de um lago, forma
círculos concêntricos com diâmetros progressivamente maiores, ou como quando se
derrama mel no centro de um pires e ele vai-se espalhando a partir do montículo
que se forma no ponto em que está sendo derramado (analogias, respectivamente,
de Mises e Hayek). Por isso, alguns gastos e preços mudam antes e outros mudam
depois e, enquanto a mudança monetária - digamos, uma expansão do crédito - for
mantida, essa dança de gastos e preços persiste em movimento.
Assim, as alterações provocadas nos preços relativos produzem mudanças na
alocação de recursos. Quando ocorre uma expansão do crédito bancário, supondo
que as expectativas quanto à inflação futura não existam, as taxas de juros,
inicialmente, caem, mantendo-se abaixo dos níveis que alcançariam se o crédito
não tivesse aumentado. O efeito disso é que, necessariamente, os padrões de
gastos sofrerão alterações: os gastos de investimentos subirão relativamente
aos gastos de consumo corrente e às poupanças. Portanto, a expansão monetária,
necessariamente, provoca uma descoordenação entre os planos de poupança e de
investimento do setor privado. Esse impacto descoordenador da política
monetária é essencial na visão hayekiana, mas não é levado em conta pela teoria
macroeconômica convencional.
Até aqui, contudo, nem os keynesianos nem os monetaristas teriam muitos
pontos de desacordo. De fato, para os primeiros, ocorreria um excesso do
investimento sobre a poupança, o que faria crescer a renda e o produto real (e,
possivelmente, os preços, assim que o "pleno emprego" fosse
atingido); já para os monetaristas, a expansão monetária provocaria aumento na
renda nominal e no "nível geral de preços" (e, possivelmente, no
produto real, embora apenas no curto prazo, enquanto o "processo de
ajustamento" friedmaniano não se completasse).
Hayek, porém, vai mais longe: ele estabelece em pormenores as alterações
que a expansão creditícia provoca nos padrões de gastos e de produção. Na
abordagem hayekiana, a produção é vista como uma série de "estágios",
que começam na produção de bens exclusivamente de consumo final (ou de
"primeira ordem") e vão até estágios de "ordens" mais
elevadas, isto é, sistemática e sucessivamente afastados da produção de bens de
consumo. Isto significa que a produção consiste em uma série de processos
interligados, em que bens de capital caracterizados pela heterogeneidade são
combinados em diversas proporções, juntamente com a terra e o trabalho. Esta é
a essência da Teoria do Capital de Böhm-Bawek.
Tanto os bens de capital como o trabalho (e, de certa forma, a terra), são específicos
a determinados estágios de produção
e possuem as características de heterogeneidade e complementaridade.
Adicionalmente, os investimentos devem realizar-se em uma estrutura de produção
integrada, isto é, em uma série dependente e interligada de investimentos
complementares.
Ora, a política monetária, ao alterar os preços relativos, modifica os
sinais emitidos pelos preços. No caso de uma expansão monetária, estes sinais
apontam para a redução dos lucros das empresas que produzem para consumo
corrente e para o aumento dos lucros da produção de bens para consumo futuro.
Alteram-se, portanto, as taxas de retorno sobre as várias combinações de
capital. Os retornos nos estágios de produção mais próximos do consumo caem,
enquanto crescem os retornos nos estágios de produção mais afastados do
consumo; recursos não-específicos deslocam-se dos primeiros para os segundos;
vai diminuindo a produção de bens de consumo, ao mesmo tempo em que os padrões
de produção de bens de capital vão sofrendo alterações, passando-se a produzir
bens que se adaptem a estruturas de produção que abarquem mais estágios do que
anteriormente. Para que esses investimentos se completem até o estágio dos bens
de consumo final, deverão ser subtraídos mais recursos do consumo, o que
significa que a produção de bens de ordens mais baixas deverá manter-se em
queda, até que a nova estrutura de produção se complete.
O processo descrito é auto-reversível: na medida em que as rendas dos
titulares dos fatores de produção aumentam (em decorrência da expansão
monetária), cresce a demanda por bens de consumo, o que faz com que os preços
desses bens, relativamente aos preços dos bens mais afastados do consumo,
aumentem. Reverte-se, desta forma, o processo: caem os retornos nos estágios
mais afastados do consumo final, enquanto sobem os retornos nos estágios mais
próximos do consumo final; recursos não específicos fazem o caminho de volta;
os bens de capital, que haviam sido dimensionados para a estrutura de produção
anterior, têm agora que ser redimensionados para uma estrutura menos intensiva
em capital; surgirão perdas e desemprego, que serão mais fortes nos setores que
anteriormente haviam se expandido mais e que, agora, defrontam-se com
superproduções.
As perdas e o desemprego gerados nada mais são do que a contrapartida das
alocações perversas de recursos geradas pela expansão monetária. Ou seja, expansão
monetária e recessão são inseparáveis!
As tentativas de fazer a estrutura de produção voltar à situação anterior,
mediante novas expansões monetárias nos mesmos pontos em que elas inicialmente
ocorreram apenas terão o efeito de perpetuar a descoordenação que se inoculou
na estrutura de capital, o que fará com que cada vez mais inflação e mais
desemprego sejam gerados para manter-se o artificialismo desejado. Eis aí a
origem dos ciclos econômicos, segundo os austríacos.
Mesmo sob a vigência da famosa "x-rule" friedmaniana - isto é,
com a oferta monetária crescendo a uma taxa constante - permanecerão os
sintomas recessivos impostos pela realocação corretiva de recursos. Isto se
explica pelo fato de que a ação conjunta das expectativas de inflação (que
surgem com a manutenção da expansão monetária) e a escassez real (provocada
pelas más informações que o sistema de preços passa a transmitir) fará com que
as margens de lucros que haviam aumentado pelo estímulo da inflação passem a
cair.
As tentativas de manutenção da inflação costumam ser incentivadas pelas
pressões políticas, geradas pelo fato de
que, via de regra, as rendas dos fatores não específicos são fortemente
afetadas pelas variações nas demandas por seus serviços. A reflação, isto é, a
aceleração da expansão monetária, provocará, então, desajustamentos adicionais:
dados os contínuos e crescentes aumentos de preços e as quedas de salários
reais, surgem normalmente pressões para que os preços sejam controlados. Os
controles sobre os preços dos bens de consumo exacerbam a situação
desconfortável que o próprio governo criou, uma vez que seu efeito será o de
intensificar a escassez de bens de consumo e, portanto, o de perpetuar as
pressões realocativas.
A estagflação provocada pelas más alocações geradas pelas políticas
monetárias "anti-cíclicas" mostra que essas políticas, na realidade,
são "pró-cíclicas"! Enquanto a expansão monetária persistir, continuarão
a ser realizados maus investimentos, até a estrutura de capital ficar
"grimpada".
Se o governo estancar a expansão monetária, ocorrerá rapidamente uma
recessão que, embora possa ser forte, cessará, tão logo o reajustamento da
estrutura de produção se complete e as trajetórias de produção e emprego se
restabeleçam em moldes sustentáveis. Terminarão, então, as perturbações
alocativas e a inflação. Se o governo der, contudo, permanecer emitindo, a
recessão e a inflação crescerão progressivamente.
Por fim, se o governo, para combater a recessão, resolver acelerar a
expansão monetária - o que ocorrerá se ele ceder às pressões no sentido de
reduzir as taxas de juros - o resultado, líquido e certo, no final do processo,
será uma hiperinflação.
A indexação de preços, que foi largamente utilizada no Brasil até antes da
implementação do Plano Real, além de não ser neutra em relação aos efeitos
alocativos da inflação, ao representar mais uma pressão artificial sobre os
preços relativos, agravava o problema. Na realidade, ela não podia fazer mais
do que cobrir variações de preços que já haviam ocorrido no passado, em
decorrência da expansão monetária.
Nunca é tarde, contudo, para aprender. Os economistas passaram quase todo o
século XX e a primeira década do atual encantados com a pseudo-panacéia
keynesiana e com a venenosa serpente marxista. Mas Mises, desde 1912,
apontou-nos o caminho correto para a estabilidade de preços; Hayek, dos anos 20
até sua morte, em março de 1992, aplainou aquele caminho. Ambos foram, por
isso, perseguidos e negligenciados.
A tarefa dos austríacos de hoje é
resgatar suas idéias, procurar aperfeiçoá-las e contribuir para que sejam adotadas
pelos governos. É uma tarefa difícil, muito difícil - como os "remédios"
adotados pelos governos em todo o mundo em reação à crise de setembro de 2008
estão aí para atestar - mas devemos esperar que os economistas e os governos,
de tanto errarem, venham a exercer sua condição de seres racionais e, portanto,
aprendam...
6. Conclusões
Espero que este artigo possa ter
ajudado o leitor a compreender que, conceitualmente, não existe uma "teoria
monetária" austríaca, no sentido puro, mas uma teoria mais ampla, que integra
as teorias da moeda, do capital, do
processo de mercado e dos ciclos econômicos. No mundo real, não há um "setor
monetário" e um "setor real", não existe um bem chamado "PIB" que se possa
comprar em padarias ou lanchonetes, não há tampouco algo como um "nível geral
de preços", não existe uma "taxa de juros" e muito menos o estoque de capital é
"constante" - ou, como disse certa vez um aluno, referindo-se à notação dos
modelos macroeconômicos (que denominam de Ko o estoque de capital de
curto prazo, constante), "não existe um kazão"...
Se Keynes conhecesse a Teoria Austríaca do Capital, provavelmente não teria
escrito a Teoria Geral e Friedman não tentaria ter corrigido a Teoria Geral. E o
mundo seria melhor sem a Teoria Geral.