terça-feira, 18 0aio 2010
Várias recentes discussões indicam que os atuais defensores de um sistema bancário livre
(também chamado de livre atividade bancária ou free banking) continuam interpretando equivocadamente o fundamental
desafio teórico proposto por seus críticos.
O principal ponto a respeito desse sistema não está na questão
ética-moral-legal de se definir se o sistema bancário de reservas fracionárias
é uma "fraude" sob todas as circunstâncias.
Tampouco se trata, como vem ocorrendo ultimamente, de se definir entre
qual dos dois arranjos é o melhor: reservas fracionárias ou reservas de 100%. O principal ponto repousa justamente no fato
de se aceitar que a criação de meios fiduciários[1], seja
ela fraudulenta ou não, produz aquela sequência de fenômenos que reconhecemos
como ciclos econômicos.
Assim, o debate sério e profundo sobre o sistema bancário livre não pode ser
confinado a um debate estreito envolvendo apenas "livre mercadistas", ou
"libertários" ou "austríacos" ou seja lá qual nome queiram dar a eles; o debate
é muito mais amplo e tem suas origens nas divergências entre dois movimentos,
duas teorias monetárias cujas visões nunca mais se reconciliaram. Um desses movimentos pode ser chamado de Nova
Escola Monetária — NEM (neo-Currency School), e o outro de Nova Escola
Bancária — NEB (neo-Banking School). As
precursoras de ambas — isto é, a Escola Monetária e a Escola Bancária —
travaram um debate titânico em meados do século XIX — debate esse nunca
resolvido.[2]
Os principais proponentes da Nova Escola Monetária foram Ludwig von Mises e
Murray Rothbard. Ambos foram firmes
aderentes da doutrina de que a criação de meios fiduciários pelo sistema
bancário — seja ele "livre" ou governado por um banco central —
inevitavelmente gera ciclos econômicos.
Mises inicialmente acreditava que um sistema bancário totalmente livre e
desregulamentado, baseado em um padrão-ouro, era superior a um sistema bancário
que estivesse sob a imposição legal de manter 100% de reservas em ouro para
todos os seus depósitos, como meio de suprimir a criação adicional de meios
fiduciários. Porém, em um de seus últimos
trabalhos, Mises chegou a propor um plano para que fosse legalmente exigido que
houvesse 100% de reservas para toda a moeda física que fosse emitida, bem como
para todos os depósitos em conta-corrente.[3]
Rothbard ordenou a efetividade dos métodos de se abolir os meios fiduciários
em ordem reversa da de Mises, muito embora em seu último trabalho que aborda o
assunto Rothbard tenha proposto um sistema bancário livre baseado em ouro como
sendo uma solução alternativa e temporária para o problema.[4] Portanto, Mises e Rothbard estavam unidos em
suas análises sobre os efeitos destruidores que a criação de meios fiduciários
tem sobre a economia de mercado. A
diferença entre ambos estava apenas nas avaliações que ambos fizeram sobre
quais seriam as melhores alternativas técnicas para se atingir o mesmo
objetivo, qual seja, abolir a capacidade de os bancos criarem novos meios
fiduciários.
Os fundadores da Nova Escola Bancária são Lawrence H. White e seu discípulo
George Selgin. Eles afirmam que a
criação de meios fiduciários pelos bancos não apenas é algo benigno, como
também é um pré-requisito necessário para impedir que a economia de mercado se
afunde numa depressão sempre que as famílias e as empresas aumentarem sua
demanda para entesourar dinheiro, o que geraria uma redução efetiva no gasto
total de uma economia. Contrariamente a
Mises e Rothbard, White e Selgin argumentam que a evolução natural de um sistema
bancário livre resultaria numa progressiva substituição do ouro por cédulas e
depósitos em conta em corrente — isto é, as pessoas voluntariamente deixariam
de transacionar em ouro (dinheiro que não é um passivo) e passariam a lidar
apenas com os meios emitidos por bancos concorrendo livremente no mercado
(dinheiro que representa um passivo para seu emissor).
Logo, em um sistema de livre concorrência bancária, as cédulas emitidas
pelos bancos, bem como seus depósitos, iriam, no final, se transformar no
dinheiro de fato utilizado pela economia, e o ouro seria relegado ao papel de
ativo que serve apenas para fazer as compensações interbancárias. Evocando a "lei do refluxo"[5]
da antiga Escola Bancária, White e Selgin argumentam que um sistema bancário
livre iria automaticamente ajustar a oferta monetária às mudanças na demanda
por moeda, garantindo assim que sempre houvesse um "equilíbrio monetário" — o
que significa que um agregado macro chamado "gasto total" estaria sempre
estabilizado.
Portanto, parece que os termos da controvérsia estão claramente
delimitados. Porém, White, Selgin e sua
Nova Escola Bancária não veem as coisas desta forma. Isso tornou-se evidente em recentes
discussões pela internet nas quais os seguidores da NEB declaram de modo
inflexível que "Mises era um adepto do sistema bancário livre". Um deles até questiona, incredulamente: "Por
que ainda há algum debate sobre isso?"
Bom, para responder a essa pergunta retórica — não há e nem nunca houve
qualquer debate quanto a isso. Em relação a Mises, o debate sempre foi sobre
suas visões a respeito dos meios fiduciários e seus efeitos sobre a economia de
mercado. Agora, para que meus amigos da
NEB não digam que estou fazendo afirmações arbitrárias e incomprovadas, bem
como que estou alterando os termos do debate, segue abaixo um trecho
ligeiramente revisado de um artigo que publiquei em 1993.[6]
Em seu ensaio[7], Lawrence H. White caracteriza Mises
como o arquétipo do moderno defensor do sistema bancário livre, que se opõe a
qualquer proibição de que bancos privados operando em regime de livre
concorrência possam emitir meios fiduciários redimíveis em ouro. Ainda de acordo com White, Mises seria contra
porque "tal proibição (1) deixaria a economia mais vulnerável a choques
oriundos de uma maior demanda por dinheiro, e (2) iria aumentar
desnecessariamente os custos de suprir a economia com meios de troca" (White,
p. 528).[8]
Como observa White, essa interpretação da justificativa de Mises a favor de
um sistema bancário livre está em forte contraste com o argumento apresentado
por Murray Rothbard, que dizia que Mises era a favor do sistema bancário livre
como meio de conter a criação de meios fiduciários porque tal sistema evitava
os perigos associados à entrega do controle do sistema bancário ao governo —
controle esse que Mises acreditava ser a consequência inevitável de uma
proibição legal e direta da prática de reservas fracionárias.
Com efeito, essa interpretação que White faz da visão de Mises em relação às
reservas fracionárias e ao sistema bancário livre está baseada na
injustificável homogeneização que ele faz de Mises com Adam Smith — o
precursor da Escola Bancária — na questão dos critérios para decidir qual o
sistema monetário ideal. White erra
porque ele ignora importantes passagens das mesmas obras de Mises que ele
próprio cita, e também porque ele ignora significativas evoluções na teoria
monetária de Mises que ocorreram entre a publicação da primeira edição alemã de
The
Theory of Money and Credit em
1912 e a publicação de Nationalökomie (o precursor alemão de Ação
Humana) em 1940. Em seu livro de
memórias, Mises conta que é em Nationalökomie que sua "teoria monetária
chega à sua inteireza", com a fusão da "teoria das trocas indiretas com a das
trocas diretas em um sistema coerente de ação humana"[9] Esses aperfeiçoamentos resultaram em uma
importante modificação da avaliação anterior que Mises havia feito sobre os
custos e os benefícios relativos trazidos pelos meios fiduciários, modificação
essa que não é reconhecida por White.
Como White aponta corretamente[10], em The Theory of Money and Credit Mises
identificou três benefícios significativos oriundos da criação de meios
fiduciários. O primeiro benefício
envolve a prevenção de "convulsões" na atividade econômica, as quais teriam
ocorrido na ausência de uma expansão da oferta monetária que suprisse "a enorme
extensão do aumento na demanda por dinheiro" trazida pela economia
monetária. O segundo benefício é aquele
familiar enunciado por Adam Smith, o de reduzir os "custos do aparato
monetário". E o benefício final dos
meios fiduciários é que sua criação aprimorou suficientemente a lucratividade
das atividades creditícias do sistema bancário nos primórdios de sua história,
permitindo sua sobrevivência e seu crescimento.
A única desvantagem dos meios
fiduciários reconhecida por Mises em seu livro, de acordo com White, é uma
relativamente inferior: o risco de calote por parte dos bancos emissores de
moeda, decorrente do fato de estes terem emitido algumas cédulas sem lastro ou
de meras corridas bancárias. Com isso,
White conclui que Mises "via o sistema bancário de reservas fracionárias como
uma evolução natural e desejável em uma sociedade livre".[11]
Entretanto, a conclusão de White
está equivocada. E esse erro se deve ao
fato de ele não ter aceitado completamente uma das mais famosas contribuições
de Mises para a teoria econômica: sua demonstração do elo causal entre a
criação de meios fiduciários e os ciclos econômicos. White evidentemente afirma que, de acordo com
Mises, os ciclos econômicos são gerados pela expansão excessiva dos
meios fiduciários por bancos centrais que não estão restringidos pelas forças
concorrenciais de mercado.[12] Entretanto, o capítulo de Mises sobre os
ciclos econômicos — que vem logo depois do capítulo em que ele enumera os
benefícios dos meios fiduciários, os quais White cita em defesa de sua própria
interpretação — deixa claro que as causas necessárias e suficientes dos ciclos
são a insustentável divergência entre as taxas de juros "naturais" e as taxas de
juros "de empréstimo", divergência essa causada exatamente pela criação de
meios fiduciários.[13]
Para Mises, portanto, a
descoordenação cíclica da economia é na verdade uma desvantagem que pesa contra
os meios fiduciários. Apropriadamente,
apenas após ter discutido por completo tanto as vantagens quanto as
desvantagens dos meios fiduciários, é que Mises aborda as "questões básicas de
uma futura política monetária"[14] — essa abordagem
aparece numa seção composta por cinco páginas, ignoradas por White, no final do
livro.
Nelas, Mises reproduziu a conclusão
da primeira edição alemã (a edição em inglês é uma tradução da segunda edição
alemã publicada em 1924), na qual ele enfaticamente exortou a supressão de toda
criação adicional de meios fiduciários, se não o completo banimento do sistema
bancário de reservas fracionárias.
Contrariamente à declaração de White, Mises estava evidentemente
convencido de que as desvantagens trazidas pela criação de meios fiduciários —
dentre as quais a geração de ciclos econômicos — excediam em muito suas três
vantagens, as quais ele havia anteriormente enumerado em seu livro.
Concluiu Mises,
[Os meios fiduciários] deveriam logicamente estar sujeitos aos mesmos
princípios que foram estabelecidos para o dinheiro propriamente dito; as mesmas
tentativas deveriam ser feitas para os meios fiduciários, para eliminar o tanto
quanto possível a influência humana sobre o valor de troca entre o dinheiro e
outros bens econômicos. A possibilidade
de a criação de meios fiduciários causar flutuações temporárias no valor de
troca entre os bens ordem mais alta e os de ordem mais baixa, e as
consequências perniciosas associadas à divergência entre as taxas de juros
naturais e as empréstimo, são circunstancias que levam à mesma conclusão. Agora,
é óbvio que a única maneira de se eliminar a influência humana sobre o sistema
de crédito é suprimindo toda e qualquer criação adicional de meios fiduciários. A concepção básica do Peel's Act deve ser
reformulada e implementada de maneira mais completa do que foi na Inglaterra de
sua (de Sir Robert Peel, secretário de estado britani) época, incluindo agora
entre as proibições legislativas a criação de crédito na forma de saldos
bancários...
Seria um erro assumir que o atual
arranjo de trocas irá inevitavelmente continuar existindo. Ele carrega consigo os germes de sua própria
destruição; o crescimento dos meios fiduciários deve necessariamente levar ao
seu próprio colapso... Será uma tarefa para o futuro erigir salvaguardas
contra o uso inflacionário do sistema monetário pelo governo e contra a expansão da circulação de meios
fiduciários pelos bancos.[15]
A única conclusão razoável a ser obtida dos trechos que enfatizei na citação
acima é que Mises via com grande desaprovação a criação de meios fiduciários
pelos bancos, estejam eles operando sob livre concorrência ou não, e
recomendava com grande fervor sua eliminação.
E vale repetir que essa foi uma posição que ele sempre manteve desde o
início de sua carreira como teórico monetário ainda em 1912.
White cita[16] um trecho de um parágrafo de um
trabalho posterior, publicado originalmente em 1928, no qual Mises reiterou a
ideia de que uma supressão da criação de meios fiduciários teria produzido
situações históricas em que o surgimento de um excesso de demanda por dinheiro
resultou em um aumento do poder de compra do dinheiro que foi temporariamente
prejudicial para a economia.[17] Entretanto, por algum
motivo, White não cita a última frase desse mesmo parágrafo, a qual identifica
um importante benefício que teria surgido da proibição da criação adicional de
meios fiduciários: "a economia certamente não teria então vivenciado violentas
expansões seguidas de dramáticas reversões dessas expansões, as quais provocam
crises e declínios econômicos"[18]
Mises também argumentou mais à frente, nessa mesma obra, que os benefícios
trazidos pelos meios fiduciários são muito menores que seus custos em termos de
descoordenações cíclicas da atividade econômica. Ele, consequentemente, pediu a implementação
de um programa revisado da Escola Monetária nos seguintes termos:
O mais importante pré-requisito para qualquer política cíclica, não
importa quão modesto possa ser seu objetivo, é renunciar a todas as tentativas
de reduzir a taxa de juros — por meio de políticas bancárias — para um nível
menor do que aquele estabelecido pelo mercado.
Isso significa um retorno à teoria da Escola Monetária, a qual procurou
suprimir toda futura expansão do crédito de circulação (crédito que os bancos
criam na forma de depósitos em conta-corrente para tomadores de empréstimo) e,
assim, toda a criação futura de meios fiduciários... Isso significa a
introdução de um novo programa baseado na teoria de velha Escola Monetária,
porém expandida à luz do presente estado de conhecimento de modo a incluir
meios fiduciários criados na forma de depósitos bancários. (ênfases minhas)[19]
Longe de ter rejeitado o programa de Escola Monetária, como White teria nos
feito crer, é evidente que Mises procurou reformulá-lo sobre uma base teórica
mais sólida, com o intuito de fortalecer sua aplicação prática. Assim, contrariamente ao que diz White, Mises
defendia um sistema bancário livre precisamente porque tal regime iria, no
final, resultar em uma "restrição extrema da criação de meios fiduciários". Os banqueiros descobririam tal restrição por
meio de suas experiências com as crises e as corridas bancárias que
inevitavelmente ocorreriam durante o curso histórico da expansão dos meios
fiduciários.
Tão logo essas lições fossem absorvidas pelos empreendedores bancários mais
astutos, políticas de extrema precaução e contenção seriam colocadas em prática
por todo o sistema bancário, ao mesmo tempo em que os bancos menos responsáveis
que persistissem na criação adicional de meios fiduciários seriam imediatamente
confrontados por duas ameaças: falta de dinheiro para as compensações
interbancárias e perda de confiança da parte de uma clientela, que justamente
por já ter sofrido uma ou duas crises bancárias, agora estaria mais atenta e
sofisticada.[20]
Nesse ponto, o programa da Escola Monetária seria total e adequadamente
implementado, uma vez que a ampliação do "crédito de circulação" por parte dos
bancos estaria restringida, e qualquer acúmulo adicional de ativos bancários
(isto é, de empréstimos) seria necessariamente uma consequência de um aumento
dos depósitos a prazo e dos investimentos de capitais que foram voluntariamente
poupados (ambos — depósito e investimento — provavelmente feitos em alguma
commodity, provavelmente o ouro).
Ao contrário dos atuais defensores do sistema bancário livre, Mises
enfaticamente não antevia tal sistema evoluindo em direção a um arranjo em que
as reservas de ouro em relação aos depósitos bancários fossem mínimas; tampouco
antevia a progressiva transformação do ouro em um "ativo de compensação"
interbancária praticamente desmonetizado.[21] Para Mises, toda a evolução dar-se-ia na
direção oposta: a ignorância inicial dos empreendedores precipitaria uma rápida
explosão na criação de meios fiduciários, o que geraria flutuações cíclicas, as
quais lentamente levariam o sistema bancário de volta para um sistema com
100% de reservas. Tais eventos
continuamente renovariam a percepção do público de que as cédulas emitidas
pelos bancos e os depósitos não são dinheiro per se, mas meros substitutos e títulos para o dinheiro genuíno —
por exemplo, o ouro.
Portanto, em seus primeiros escritos, Mises de fato percebeu vantagens
específicas associadas à criação de meios fiduciários. Porém ele estava disposto a abrir mão de tais
vantagens em troca da vantagem maior, que era a de manter a integridade do
cálculo monetário e impedir rupturas na coordenação que o sistema de preços e a
taxa de juros fazem em toda a economia.
Quando ele escreveu Ação Humana,
entretanto, suas visões sobre empreendedorismo, cálculo monetário e dinheiro já
haviam se desenvolvido até o ponto em que ele reconhecia que os benefícios que
ele certa vez havia atribuído à criação de meios fiduciários eram em grande
medida ilusórios. Em particular, o Mises
mais velho abandonou sua antiga crença de que um aumento no poder de compra do
dinheiro poderia de alguma forma ser ruim para a economia de mercado.
Considerando um mundo em que ocorre um constante aumento no poder de compra
da moeda, decorrente do crescimento secular na oferta de bens e serviços em
conjunto com uma oferta monetária nominal rigidamente fixa, Mises argumentou em
Ação Humana que tal situação não
perturbaria a função de coordenação de preços momento-a-momento exercida pelo
mercado, tampouco perturbaria os cálculos monetários que levam empreendedores a
alocar eficientemente recursos produtivos na tentativa de antecipar as
preferências dos consumidores.
Agora, os atuais defensores de um sistema bancário livre concordariam com
Mises quanto ao fato de não haver necessidade de um aumento na oferta monetária
para o caso de uma deflação de preços causada pelo crescimento econômico. Porém, em acentuado contraste com o temor que
eles têm dos "choques causados pelo aumento da demanda por dinheiro", Mises
argumentou que um aumento no poder de compra da moeda induzido pela maior
demanda por dinheiro (entesouramento) não era nenhum motivo para alarmes. Mais especificamente, Mises negou que um
aumento na demanda por dinheiro — o que ocasionaria uma queda no gasto em bens
de consumo — impediria o processo de transformação da poupança real assim
gerada em novos bens de capital.
O cálculo monetário — levando em conta o declínio relativo nos preços de
bens de consumo de ordem mais baixa e de fatores de produção não específicos —
iria refletir fielmente o aumento na disponibilidade de bens de capital, e a
perspectiva de maiores lucros induziria empreendedores a empregá-los na
expansão de suas operações. Como
concluiu Mises,
O principal ponto é que os bens de capital resultantes da poupança
suplementar não são destruídos por concomitantes alterações monetárias...
Sempre que um indivíduo direciona uma quantia de dinheiro para a poupança ao
invés de gastá-lo com consumo, o processo de poupança combina perfeitamente com
o processo de acumulação de capital e investimento. Não importa se o poupador individual aumenta
ou não seus encaixes.[22]
Para Mises e a Nova Escola Monetária, portanto, o processo de mercado
(coordenador e calculador) pode e irá responder com perfeita (ex ante) eficiência
a qualquer combinação de mudanças antecipadas no conjunto de preferências do
consumidor, incluindo mudanças nas preferências por liquidez.[23]
O que nos deixa, finalmente, com apenas uma única aparente vantagem dos
meios fiduciários: a redução dos custos de se fornecer um meio de troca. Embora, como observa White, Mises estivesse
propenso a atribuir grande importância a essa suposta vantagem em seus
primeiros escritos, em Ação Humana
Mises não fez qualquer alusão a isso; entretanto, ele de fato se referiu ao
"grande custo inerente à produção de ouro" como sendo um "mal menor" quando
comparado ao potencial inflacionário do papel-moeda de curso forçado e do
crédito bancário sem lastro.[24]
É claro, em Ação Humana, Mises
ainda aderiu às suas visões anteriores no que tange as avassaladoras
desvantagens da criação de meios fiduciários associada ao seu potencial de
falsificar as taxas de juros e o cálculo monetário, introduzindo ineficiência à
alocação intertemporal de recursos e precipitando os ciclos econômicos. Essa última avaliação do maciço desequilíbrio
trazido pelas desvantagens dos meios fiduciários em relação às suas vantagens
pode ter finalmente feito com que Mises superasse seus temores prévios sobre a
expansão da interferência política sobre o sistema bancário, a qual ele havia
previsto como sendo uma possível consequência da ultrarradical proposta da Nova
Escola Monetária de proibir legalmente todos os futuros acréscimos aos meios
fiduciários já existentes, incluindo os depósitos em conta-corrente e as cédulas. Assim, em seu ensaio de 1952 sobre
"Reconstrução Monetária", o qual foi incluído como a parte quatro da segunda
edição em língua inglesa de Theory of
Money and Credit, Mises propôs exatamente esse programa como a base para um
"retorno dos EUA a uma moeda forte".[25]
Concluo, então, que a tentativa de White de retratar as visões de Mises em
relação às reservas fracionárias e a um sistema bancário livre como sendo
típicas das de um defensor desse sistema é insustentável. Se Mises chegou a defender a irrestrita
liberdade de os bancos criarem meios fiduciários, ele o fez apenas porque suas
análises o levaram à conclusão de que essa política resultaria em uma oferta
monetária estritamente regulada de acordo com o princípio da Escola da Moeda —
ou seja, cada unidade monetária seria lastreada por ouro.
A aspiração de Mises não era, portanto, uma moeda "neutra", ou mesmo uma
aproximação prática de uma; antes, sua aspiração era a completa eliminação da
"influência humana" sobre o poder de compra do dinheiro. Junto com a inflação do papel-moeda de curso
forçado decretado pelo governo, essa influência humana incluía a distorciva
influência que os meios fiduciários criados pelos bancos provocam sobre o
cálculo monetário e sobre o dinâmico processo de mercado. Se esse resultado seria melhor obtido por um
sistema bancário livre ou por um sistema bancário com reservas compulsórias de
100%, isso era uma questão política e técnica que Mises considerava de
importância secundária.
________________________________________
Notas
[1] Definimos "meios fiduciários" como sendo aqueles
depósitos bancários utilizáveis como meios de pagamento e que não estão
lastreados por dinheiro padrão, seja esse dinheiro alguma commodity como ouro
ou simplesmente cédulas de papel-moeda.
Ou seja, trata-se da moeda escritural que não tem lastro algum, que foi
criada do nada pelo sistema bancário.
[2] Para um relato dessa controvérsia, ver Murray N.
Rothbard, Classical
Economics: An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, Volume
II (Brookfield, VT: Edward Elgar Publishing Company, 1995), pp. 225-74 e
as referências ali contidas.
[3] Ludwig
von Mises, The Theory of Money and Credit, trans. H. E. Batson, 2nd ed.
(Irvington-on-Hudson, NY: Foundation for Economic Education, 1971), pp. 448-52.
[4] Murray
N. Rothbard, The Case against the Fed (Auburn, AL: Ludwig von Mises
Institute, 1994), pp. 145-51.
[5] A "lei do refluxo" foi originalmente formulada pelo
teórico da Escola Bancária John Fullarton em 1844. Concisamente, ela diz que cédulas e depósitos
bancários que são conversíveis em ouro ou em alguma outra commodity jamais
poderiam ser emitidos em excesso, o que causaria inflação de preços. O motivo, de acordo com Fullarton, é que
quaisquer cédulas ou depósitos supérfluos iriam imediatamente ser devolvidos
aos bancos pelos tomadores de empréstimos, como quitação destes.
[6] Joseph T. Salerno,
"Mises and Hayek Dehomogenized," The Review of Austrian Economics,
Vol. 6, No. 2 (1993): 113-46.
[7] Lawrence
H. White "Mises on Free Banking and Fractional Reserves," in John W.
Robbins and Mark Spangler, eds., A Man of Principle: Essays in Honor of Hans
F. Sennholz (Grove City, PA:
Grove City College Press) pp. 517-33.
[8] Ibid.,
p. 528.
[9] Ludwig
von Mises, Notes and Recollections (Spring Mills, Ill.: Libertarian
Press, 1978), p. 112. [Retraduzido e republicado pelo Mises Institute como Memoirs (2009)]
[10] White,
"Mises on Free Banking and Fractional Reserves," pp. 522-24.
[11] Ibid., p.
522.
[12] Ibid., pp.
524-25.
[13] A discussão de Mises sobre as vantagens dos meios
fiduciários ocorre nas páginas 298—99 e 323, ao passo que sua teoria dos
ciclos econômicos é apresentada nas páginas 339—66 em Mises Mises, Theory
of Money and Credit.
[14] Ibid., p. 406.
[15] Ibid.,
pp. 407-409.
[16] White,
"Mises on Free Banking and Fractional Reserves," p. 520.
[17] Ludwig
von Mises, "Monetary Stabilization and Cyclical Policy," in idem, On
the Manipulation of Money and Credit, trad. Bettina Bien Greaves (Dobbs
Ferry, NY: Free Market Books, 1978), p. 145. [Republicado pelo Mises Institute como Causes of the Economic Crisis (2009)]
[18] Ibid.
[19] Ibid.,
pp. 167-68.
[20] Ibid.,
pp. 138-40
[21] Lawrence H. White and George A. Selgin, "The
Evolution of a Free Banking System," in Lawrence H. White, Competition and
Currency: Essays on Free Banking and Money (New York: New York University
Press, 1989), p. 235.
[22] Ibid.,
pp. 521-22.
[23] Para uma demonstração disso, ver Joseph T. Salerno,
"Commentary: The Concept of Coordination in Austrian Macroeconomics,"
in Richard M. Ebeling, ed., Austrian Economics: Perspectives on the Past and
Prospects for the Future (Hillsdale, Mich.: Hillsdale College Press, 1991),
pp. 335-40.
[24] Mises, Human Action, p. 422.
[25] Mises,
Theory of Money and Credit, pp. 448-52.