Um
leitor atento me manda por e-mail uma pergunta muito interessante, e percebi que
respondê-la detalhada e publicamente seria de muito mais valia (sem referências
ao alemão).
Referindo-se
à minha postagem no blog
em que eu disse que seria bom para a economia fluminense caso o estado do Rio
de Janeiro perdesse o dinheiro oriundo dos royalties do pré-sal (numa
coincidência mórbida, as recentes tragédias causada pelas chuvas comprovam o
ponto: o que interessa é capital e infraestrutura, e não papel-pintado), ele faz
a seguinte pergunta, a qual tomei a liberdade de reformular:
"Considerando-se que esse
dinheiro dos royalties vem "de fora" - isto é, a Petrobras extrai os barris em
alto-mar, vende-os para todo o país e, do valor total dessa receita, entrega
10% para o governo do Rio, totalizando R$ 7,5 bilhões -, não teria esse
dinheiro o mesmo efeito, sobre a economia fluminense, de uma injeção monetária feita
pelo Banco Central? Ou seja, não seria
como se houvesse um banco central imprimindo dinheiro e jogando-o na economia
fluminense? Sendo assim, a economia
fluminense não deveria estar sujeita à formação de bolhas e a constantes ciclos
econômicos?"
É
de fato uma pergunta bastante interessante e, principalmente, extremamente
importante, pois sempre é fonte de muita confusão.
A
resposta direta é: embora tal "injeção" possa levar à formação de bolhas, ela
não irá provocar os ciclos econômicos.
A
explicação está no fato de que esse fenômeno - grosso modo, equivalente a um
helicóptero sair jogando dinheiro sobre uma dada localidade - possui um
mecanismo de expansão diferente do de uma expansão monetária feita pelo Banco
Central.
Os
ciclos econômicos ocorrem porque o dinheiro recém-criado entra direto no
mercado de crédito - isto é, o banco central o injeta diretamente no sistema
bancário, aumentando as reservas dos bancos e, consequentemente, diminuindo os
juros no mercado interbancário. Assim,
esse dinheiro novo, ao entrar primeiro no mercado de crédito, faz com que os
juros caiam, o que consequentemente provoca uma expansão na estrutura de
produção.
Essa
expansão é justamente a fase do boom econômico.
A injeção de dinheiro faz com que haja uma distorção na estrutura de
preços relativos da economia: o mercado de bens de capital, por causa dos juros
mais baixos, torna-se mais atraente do que o mercado de bens de consumo. Logo, todo o investimento será direcionado
para aquele setor.
Essa
alteração na estrutura econômica durará até o momento em que os juros começarem
a subir novamente. Nesse momento, essa
estrutura de produção expandida será obrigada a se contrair, que é quando
começa a recessão.
Ou
seja: se o dinheiro novo entra na economia por meio do mercado de crédito,
haverá uma distorção na taxa de juros, o que gerará os ciclos econômicos.
Porém,
o que ocorre no Rio de Janeiro com os royalties do petróleo é diferente. O dinheiro despejado na economia do estado
não chega primeiro no mercado de crédito: ele vai direto para o governo do
estado, que então passa a gastá-lo de acordo com sua conveniência.
Ludwig
von Mises chamou esse fenômeno de "inflação simples". Se o dinheiro novo entra na economia por meio
de gastos estatais, o efeito será o da inflação de preços apenas. Ele não vai gerar novos investimentos, como
ocorre no exemplo da inflação via mercado de crédito.
Este
é um fenômeno ao qual se dá pouca atenção, e apenas a Escola Austríaca o
aborda. O efeito de um aumento na oferta
monetária vai depender de onde o dinheiro recém-criado entrará na economia: se
entrar por meio do mercado de crédito (banco central comprando títulos
diretamente dos bancos), haverá uma distorção nos juros e uma consequente
expansão nos investimentos - algo que, no final, inevitavelmente levará a uma
alta de preços e a uma consequente contração econômica. Porém, se o dinheiro entrar na economia via
gastos estatais, haverá apenas inflação de preços, sem novos investimentos.
Um
exemplo histórico ocorreu na Espanha, quando o ouro pilhado das Américas foi
todo descarregado no país. Esse ouro
caiu direto nos cofres do governo, que o utilizou para financiar um aumento nos
gastos do estado. Tudo o que houve na
Espanha foi inflação de preços (enorme).
Outro exemplo foi o da mania das tulipas, na
Holanda do século XVII. Houve um enorme
influxo de metais para aquele país, provocando um aumento na demanda por
ativos, como as tulipas da época.
Outro
economista que explicou bem o mecanismo desse fenômeno, só que com mais detalhes, foi Friedrich Hayek, em
seu livro Prices and Production. Quando o dinheiro recém-criado entra direto
na economia por meio de gastos estatais, há um aumento na demanda por bens de
consumo. Esse aumento repentino da
demanda fez com os lucros no setor de bens de consumo aumentem em relação aos
lucros do setor de bens de capital, fazendo com que o investimento seja
direcionado para aquele setor (bens de consumo). Consequentemente, a produção e o investimento
no setor de bens de capital declinam, junto com o emprego - entretanto, sem que, diferentemente da inflação via mercado de crédito, tenha havido uma
expansão anterior deste setor.
Repetindo:
se o dinheiro recém-criado cai na economia e vai direto para o setor de bens de
consumo, a estrutura de produção se contrai, mas sem que tenha havido uma expansão anterior. (O que explica também por que todas as políticas
de estímulo à demanda provocam o efeito oposto do esperado).
No Rio
Embora
os royalties do petróleo definitivamente se enquadrem na classificação de
"inflação simples", não é necessariamente verdade que a economia fluminense irá
sofrer uma inflação de preços maior que a do resto do Brasil, nem mesmo que sua
indústria de bens de capital irá contrair em relação ao setor de bens de
consumo.
Afinal,
esse dinheiro despejado na economia fluminense pode ser perfeitamente
"exportado" para outros estados, em troca de produtos produzidos por esses
outros estados. Esse cenário, aliás, é o
mais provável.
É
exatamente por isso que os primeiros a receber esse dinheiro indubitavelmente
ganham: seu poder de compra aumenta e eles passam a poder adquirir bens antes dos
outros consumidores (de todos os outros brasileiros, no caso). Isso faz com que haja menos bens no mercado,
cuja consequência mais óbvia é o aumento de preços e uma consequente queda no
padrão de vida.
Portanto,
caso o estado do Rio perca os royalties (algo que eu duvido muito que vá
acontecer), os grandes perdedores seriam aqueles que recebem esse dinheiro em primeira mão e
que ficam mais ricos em detrimento do resto da população - relegada a uma
"concorrência desleal" com os recebedores privilegiados desse dinheiro.
O Brasil é ainda um melhor exemplo
Entretanto,
o melhor exemplo do fenômeno da "inflação simples" é mesmo o Brasil,
principalmente o da década de 1980 e 90.
Poucos
sabem, mas foi apenas em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que o
Banco Central ficou proibido de comprar diretamente do Tesouro os títulos da
dívida do governo. Está escrito lá, nos artigos 35
e 39:
Art. 35. É vedada a realização
de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por
intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e
outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a
forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída
anteriormente.
[...]
Art. 39. Nas suas relações com
ente da Federação, o Banco Central do Brasil está sujeito às vedações
constantes do art. 35 e mais às seguintes:
I - compra de título da dívida,
na data de sua colocação no mercado, ressalvado o disposto no § 2o
deste artigo;
§ 2o O Banco
Central do Brasil só poderá comprar diretamente títulos emitidos pela União
para refinanciar a dívida mobiliária federal que estiver vencendo na sua
carteira.
O
que isso quer dizer?
Até
o ano 2000, o Tesouro emitia um título da dívida que podia ser comprado
diretamente pelo BACEN. Tal medida fazia
com que o dinheiro criado pelo BACEN fosse diretamente para o Tesouro, e dali
para toda a economia, sem passar pelo mercado de crédito. Inflação simples.
É
por isso que os mais iniciados na Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos têm
uma certa dificuldade em estudar os ciclos econômicos no Brasil: aqui
predominou o fenômeno da inflação simples, e não o da inflação via mercado de
crédito. É por isso que na década de
1980 e 90 houve hiperinflação, mas não houve ciclos econômicos, com expansão
industrial seguida de contração. A
depressão era constante.
Mesmo
de 1995 a 2000, após a criação do Real, não se observou um ciclo de forte
expansão industrial seguida de uma contração.
Com efeito, o primeiro ciclo econômico genuinamente austríaco no Brasil
só aconteceu agora, como detalhado aqui.
Conclusão
Os royalties fluminenses não
provocam ciclos econômicos na economia local, tendo apenas o potencial de
causar inflação no setor de bens de consumo, muito embora tal fenômeno não se
distinga do que ocorre no resto do Brasil devido ao fato de o estado poder
exportar para outros estados essa inflação.
Já
no Brasil, até o ano 2000, foi exatamente esse fenômeno da inflação simples que
predominou na economia - o que explica a relativa escassez de ciclos
econômicos austríacos.