Texto
original de 9 de março de 1953
Uma das mais notáveis características da nossa época é
a propensão à mudança nos significados dos termos políticos. Uma revolução semântica converte o sentido
tradicionalmente dado a determinadas palavras em seu exato oposto. George Orwell engenhosamente descreveu essa
tendência em seu livro 1984. Nessa obra, o segundo dos três slogans
utilizado pelo Partido do império da Oceania é "Liberdade é Escravidão". Na opinião dos intelectuais "progressistas",
o atestado de Orwell é conversa de histérico; ninguém, protestam eles, jamais
se arriscou a proferir uma afirmação tão despropositada quanto essa.
Infelizmente os fatos desmentem essa negação. Nos escritos de vários autores
contemporâneos, predomina uma disposição em retratar cada expansão do poder
governamental e cada restrição sobre o arbítrio individual como sendo uma
medida de libertação, um passo rumo a uma maior liberdade. Se levada à sua derradeira conclusão lógica, esse
modo de pensar acaba por deduzir que o socialismo, a completa abolição da
capacidade que o indivíduo tem de planejar e conduzir sua própria vida, traz a
perfeita liberdade. Foi esse raciocínio
que deu aos comunistas e socialistas a ideia de se arrogarem a si próprios a
denominação progressistas.
O professor Robert L. Hale, da Universidade de
Columbia, acaba de publicar um volumoso livro, Freedom through Law: Public
Control of Private Governing Power.[1]
Trata-se de um apelo apaixonado por mais controle governamental sobre as
empresas e por uma revisão da legislação e das decisões judiciais sobre o
assunto. Como compilação de material
jurídico, tal livro pode ter algum mérito.
Mas o autor tem planos mais ousados.
Sua ambição é justificar a política do intervencionismo sob o ponto de
vista da filosofia do direito e do sistema jurídico.
Podemos ignorar o fato de que o autor fracassa
abismalmente em seu empreendimento. Pois
mesmo se ele tivesse tido êxito completo em provar seu ponto, ele não teria
apresentado nenhum argumento sustentável a favor das políticas que
defende. A questão sobre se um país deve
seguir o sistema de iniciativa privada ou se ele deve adotar aquilo que hoje em
dia é chamado eufemisticamente de "controle direto" não é um problema de
filosofia geral ou de jurisprudência. É
um problema de política econômica. E
esse problema tem de ser decidido de acordo com os efeitos que se espera das,
ou que já foram trazidos pelas, políticas em questão. E apenas considerações econômicas podem
esclarecer tais questões.
O argumento contra o intervencionismo não se baseia em
interpretações específicas de qualquer constituição em particular. Os economistas não estão preocupados se o
intervencionismo é legítimo ou não, se ele é bom ou ruim, ou se é desejável ou
indesejável. Eles apenas demonstram que
várias medidas de interferência governamental nos fenômenos de mercado não
produzem os resultados esperados pelo governo que as praticou. Ao contrário, tais medidas criam uma situação
- mesmo do ponto de vista do próprio governo e de todos os defensores do
intervencionismo - ainda mais indesejável do que a situação anterior que o
governo tencionava alterar.
Se o governo, defrontado com essa inevitável
consequência, decidir não revogar seus decretos para que assim se possa
retornar à liberdade econômica, mas, ao contrário, decidir continuar com suas
políticas intervencionistas, ele terá de acrescentar aos primeiros decretos
cada vez mais novos decretos, até que ele acabe por arregimentar cada aspecto
das vidas dos cidadãos, suas atividades de produção e todo o seu modo de
consumo. Nesse estado, qualquer tipo de
liberdade - econômica ou política - terá desaparecido, e o totalitarismo do
tipo hitlerista passará a ser dominante. O intervencionismo não é um sistema econômico que
pode durar. Ele não pode ser preservado
permanentemente. Ou ele é abolido ou ele
inevitavelmente acaba gerando, passo a passo, um sistema de planejamento
estatal total, o socialismo completo, um sistema no qual ninguém é livre.
O estado como um aparato de coerção
Um estado ou um governo é um aparato de coerção e
compulsão. Dentro do território que ele
controla, ele impede todas as agências - exceto aquelas que gozam de sua
expressa autorização - de recorrer a medidas violentas. Um governo tem o poder de impor suas ordens
açoitando a população à submissão completa ou ameaçando-as com tais ações. Uma instituição que não tenha esse poder
jamais pode ser chamada de governo. O
raciocínio que leva o professor Hale a equiparar todas as transações
voluntárias entre cidadãos privados a uma coerção governamental e a chamar tais
transações de "exercício do poder de governo privado" se desenvolve da seguinte
maneira:
Cada
pessoa tem um certo poder de barganha, do qual depende seu sustento. Poder de barganha é o poder de exercer
pressão sobre aqueles com os quais uma pessoa faz transações - o que equivale a
um outro grau de coerção sobre a liberdade de terceiros, enquanto que ao mesmo
tempo sua própria liberdade está sujeita a algum grau de controle por
terceiros.
O governo diz para os cidadãos: "Paguem impostos ou
minha guarda armada irá aprisioná-los!".
Já o padeiro diz para o cliente em potencial: "Se você quiser que eu lhe
sirva e asse-lhe um pão, então você tem de recompensar fazendo algo por
mim." Na opinião do professor Hale, não
há diferença alguma entre os dois modos de ação. Ambas são coerção, ambas representam o
governo dos homens sobre outros homens, ambas são transgressões sobre a
liberdade de terceiros. O padeiro coage
o dentista ao vender-lhe pão, e o dentista está coagindo o padeiro ao preencher
as cavidades de seus dentes. Para qualquer
aspecto que você olhe desse abominável mundo, você irá descobrir restrições
sobre as liberdades. Mas felizmente há
uma entidade paternal, o governo, sempre pronta para intervir e salvar a
liberdade. Pois, como diz o professor
Hale,
É
uma falácia supor que qualquer tentativa do estado de controlar e alterar os
resultados econômicos de uma transação envolve uma restrição da liberdade
individual. Pode ser que isso não
aconteça. Se a liberdade daqueles que
são restringidos pelo estado é menos vital do que a liberdade das pessoas que
seriam restringidas por estas, então a intervenção estatal pode resultar em um
ganho líquido para a liberdade individual . Em determinados momentos, torna-se
necessário que o estado restrinja a liberdade de domínio de grupos poderosos.
O poder de governo privado
Alguns anos atrás, a senhora X costumava preparar a
sopa da família em sua própria cozinha.
Posteriormente ela passou a comprar sopa enlatada fabricada por uma das
fábricas de conservas de seu país. Um
observador lúcido e perspicaz argumentaria que esta senhora, por algum motivo,
considera essa maneira de suprir sua família preferível ao método
anterior. Porém tal raciocínio não se
aplica ao professor Hale. Sob sua ótica
arguciosa, está havendo uma coerção. A
fábrica de conservas, ao fabricar a sopa e vendê-la à senhora X, está exercendo
poder de governo. Como a fábrica de conservas é uma empresa
privada - e não uma fábrica controlada pelo governo e administrada por ele,
como ocorre na Rússia - há nisso algo de altamente imoral e repreensível. Trata-se, pois, de um poder de governo privado.
E como todo mundo concorda que todo e qualquer poder de governo pertence
ao governo por direito, torna-se portanto óbvio - pelo menos sob a arguta ótica
do professor Hale - que o governo deve restringir esse poder que a fábrica de
conservas tem de "dominar" a senhora X fabricando-lhe sopa.
A maneira como o professor Hale descreve a operação da
economia de mercado é, no mínimo, espantosa.
Munido de um ar de sapiência professoral, ele declara:
O
cliente pode negar seu dinheiro ao revendedor; e, ao ameaçar com essa negação,
ele pode coagir o revendedor a suprir-lhe com os bens.
Pelo que se sabe, milhões de pessoas, dessa mesma
maneira, "ameaçam" os joalheiros e as lojas de departamento chiques presentes
nas grandes cidades; essas pessoas "ameaçam negar seu dinheiro a elas". Entretanto, aqueles "ameaçados" não fornecem
seus braceletes e colares aos "ameaçadores".
Porém, se um assaltante aparecer e ameaçar à sua maneira o joalheiro,
brandindo uma arma, o resultado será diferente.
Portanto, parece que aquilo que o professor Hale chama de ameaça e
coerção abrange duas coisas completamente diferentes e que possuem
características e conseqüências inteiramente distintas. Sua incapacidade de distinguir entre essas
duas coisas já seria deplorável caso tal raciocínio estivesse em um livro não
técnico. Estando ele em um livro
presumivelmente jurídico, a coisa assume ares simplesmente catastróficos.
Não seria necessário dar muita atenção ao livro do
professor Hale caso esse seu modo de argumentação fosse privativo apenas a
ele. O problema é que tal raciocínio
tornou-se elegante e está em voga hoje em dia.
Esperemos apenas que ele não engane muitos.
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[1] Columbia University Press,
New York, 1952.