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Filosofia

As delícias da ignorância

20/10/2009

As delícias da ignorância

Enquanto toda a conversa atual se concentra em recuperações econômicas e mercados financeiros fortificados, ninguém está prestando atenção no pior dos eventos: a economia americana está em franca deterioração.  Embora hoje já seja praticamente universal a conclusão de que antes do crash de 2008 a economia americana estava em um curso insustentável, tudo indica que os comentaristas financeiros - que aparentemente sofrem de amnésia - já se esqueceram desse detalhe.

Se esses desequilíbrios na economia americana já tivessem sido corrigidos, então talvez eu também estaria hoje fazendo coro a essa euforia.  Mas são abundantes as evidências de que o país de modo algum saiu desse caminho perigoso.

Na semana passada, o Bureau of Economic Analysis relatou que os gastos dos consumidores americanos, medidos em porcentagem do PIB, aumentaram para 71%, um recorde do período pós-guerra.  Esse nível é notavelmente maior do que o dos países industrializados, e amplamente maior do que os níveis mantidos pela China e por outras economias emergentes.  Ao mesmo tempo, a produção industrial americana está em contração, o déficit comercial voltou a aumentar (após ter diminuído no início do ano) e a taxa de poupança entrou em queda livre (após ter havido um aumento no início do ano).

Os dados confirmam que os pacotes de estímulo implementados pelo governo estão piorando os desequilíbrios estruturais da economia americana.  A recente 'recuperação' do PIB [o PIB americano contraiu apenas 0,7% no segundo trimestre deste ano, sendo que havia contraído 6,4% no primeiro trimestre - ambas em taxas anualizadas] não é resultado de um aumento da produção, mas meramente do fato de que os americanos estão se endividando mais do que nunca.  Foi exatamente assim que o país entrou na atual encrenca.  Nenhuma economia pode crescer indefinidamente se estiver havendo mais endividamento (empréstimos) do que produção.  Não apenas tal curso é insustentável, como também toda essa nova dívida vai garantir uma recessão mais profunda assim que a conta vier.

A atual recessão, que logo será chamada de depressão, não irá terminar até que os hábitos de consumo dos americanos se alterem radicalmente.  Essa alteração será desagradável, mas é justamente o balde de água fria de que uma economia desarranjada precisa para voltar a ser viável.  Acredito que os gastos em consumo como porcentagem do PIB terão de encolher temporariamente para 50% do PIB, antes de voltarem para a média histórica de 65%.  Tal mudança significaria uma restauração da poupança dos indivíduos, um declínio no endividamento e nos déficits comerciais e um aumento na produção industrial.  Essa, sim, seria uma real recuperação.

Enquanto isso, quanto maior o aumento da porcentagem dos gastos, mais doloroso será o derradeiro declínio.

Quando uma economia está de ressaca, como a americana, os consumidores e o governo precisam gastar menos.  Essa poupança irá liberar recursos que poderão ser utilizados pelas empresas para investimentos em capital.  As empresas, por sua vez, irão produzir mais bens e empregar mais pessoas - aumentando a prosperidade do país.  Entretanto, ao invés de permitir essa dolorosa cura econômica, o governo americano prefere anestesiar os eleitores com doses maciças de déficits orçamentários e crédito fácil - sendo que ambos exaurem a poupança.

O principal fator que permite o governo americano manter essa ilusão econômica é o privilégio singular de o dólar ser a moeda de reserva mundial - e a disposição dos países credores em continuar mantendo esse status.  Ao comprarem dólares e aplicá-los em títulos da dívida do Tesouro [coisa que o banco central brasileiro vem fazendo com afinco], os países produtivos dão aos políticos americanos carta branca para brincarem de Papai Noel.

Os governos estrangeiros estão hoje criticando as baixas taxas de juros utilizadas pelo Fed.  Ironicamente, ao financiarem a farra da gastança americana, esses mesmos governos estrangeiros estão ajudando nessa distorção.  No recente encontro do G20 em Pittsburgh, todos concordaram - inclusive Obama - que resolver os desequilíbrios econômicos globais é a prioridade principal.  Por definição, tal atitude exige que os americanos gastem menos e poupem mais.  Porém, como os bancos centrais estrangeiros continuam financiando a dívida americana, os EUA continuam sem demonstrar absolutamente nenhuma vontade política para encorajar essa mudança.

Normalmente, se os políticos aumentam o déficit orçamentário do governo, os eleitores rapidamente passam a sofrer as consequências: maior inflação e maiores juros.  Contudo, se os bancos centrais estrangeiros continuam fornecendo os fundos para financiar esse déficit, essas consequências são indefinidamente adiadas.  Como resultado, nunca haverá necessidade de os políticos americanos aceitarem as escolhas duras necessárias para resolver os atuais desequilíbrios.  E quais as consequências disso?

Pergunte aos cidadãos daqueles países cujos governos estão financiando a dívida americana.  São eles que estão arcando com o ônus.  Ocorre que, dentro desses países credores, uma minoria com boas conexões de fato se beneficia dessa política (exportadores chineses, por exemplo), pois ela impede a desvalorização do dólar.  A imensa maioria dos cidadãos restantes é incapaz de entender essa conexão.  Seus impostos são utilizados para a compra de dólares que são investidos em títulos do governo americano.  Esses dólares caem na economia americana e são utilizados para importar produtos estrangeiros.  Essa medida, portanto, se transforma em subsídios para uma determinada classe econômica (exportadores) dos países estrangeiros.  Com isso, os políticos desses países têm os mesmos incentivos que os políticos americanos para continuar jogando esse jogo.

A moral da história é que os governos estrangeiros podem continuar alertando o governo americano sobre a necessidade de prudência o quanto quiserem: se eles continuarem emprestando, os americanos continuarão gastando.  Qualquer pai sabe que se ele determinar um horário para seu filho ir dormir, mas nunca impor qualquer punição quando este for violado, a determinação não será obedecida.  Meu pressentimento é que os governos estrangeiros estão se cansando da conduta americana e estão a ponto de finalmente impor alguma disciplina.  Isso significa que os dias do dólar como moeda de reserva mundial estão contados.  E quando isso finalmente se consumar, começará a forçosa austeridade americana - e mundial, consequentemente.


Sobre o autor

Peter Schiff

É o presidente da Euro Pacific Capita e autor dos livrosThe Little Book of Bull Moves in Bear Markets.

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