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Economia

Erdogan e os heterodoxos defensores do juro baixo destroçam a lira turca

Eis a consequência de não se dominar a teoria

20/12/2021

Erdogan e os heterodoxos defensores do juro baixo destroçam a lira turca

Eis a consequência de não se dominar a teoria

Não é nenhum exagero dizer que é calamitosa a situação da lira turca. 

Em janeiro de 2020, logo antes da pandemia, eram necessárias 6 liras turcas para se comprar um dólar. Hoje, dia 20 de dezembro de 2021, são necessárias 18 liras para se comprar o mesmo dólar.

Isso representa uma desvalorização de 67% em menos de um ano.

Nos últimos 5 anos, a lira perdeu quase 80% de seu valor em relação ao dólar. E, apenas no último mês, ela se depreciou 40%

A moeda está em queda livre, como mostra o gráfico abaixo.

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Gráfico 1: evolução da taxa de câmbio da lira turca em relação ao dólar

Embora, como mostra o gráfico, a desvalorização seja a clara tendência de longo prazo, a pergunta premente é: o que ocorreu em 2021 para que a cotação da lira tenha entrado em queda livre?

Essencialmente, de novembro de 2020 a março de 2021, o Banco Central da Turquia era comandado pelo austero Naci Agbal. Durante este período, a lira se valorizou, com o dólar caindo de 8,60 liras para 6,90 liras.

No entanto, após Agbal aumentar a taxa básica de juros do país em 2 pontos percentuais (de 17% para 19%), o presidente Erdogan o demitiu e, na prática, tomou o controle do Banco Central turco. O dólar disparou desde então.

Não obstante a alta taxa de inflação de preços no país, que sobe 20% no acumulado de 12 meses, Erdogan impôs ao Banco Central turco que não apenas não mais aumente os juros, como ainda os reduza. Desde o final de setembro, a taxa básica de juros na Turquia foi reduzida de 18% para 14% (era de 19% sob Agbal).

E piora: no último fim de semana, Erdogan veio a público e afirmou que mais cortes nos juros estão por vir.

Desde janeiro de 2020, a oferta monetária mensurada pelo M1 já aumentou 129%.

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Gráfico 2: evolução do M1 na Turquia

O M2, por sua vez, subiu 80%.

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Gráfico 3: evolução do M2 na Turquia

Já o crédito cresceu, neste período, a uma taxa de 54%.

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Gráfico 4: evolução do crédito na Turquia

Dado que Erdogan não titubeou na hora de continuar cortando a taxa básica de juros, não obstante a cada vez mais acelerada depreciação da moeda, o mercado financeiro já se convenceu de que o presidente não dará o braço a torcer e continuará reduzindo os juros sem qualquer consideração. 

E é exatamente esta constatação de que o Banco Central turco abriu mão de estabilizar o valor de sua moeda, que está estimulando cada vez mais a especulação baixista contra a mesma.

Mas e então: por que Erdogan está fazendo exatamente o oposto do que se esperaria? Ou seja, por que, em vez de elevar a taxa básica de juros para um valor acima da taxa de inflação de preços — para assim aumentar os juros reais e, com isso, limitar a expansão monetária e do crédito —, ele está reduzindo a taxa de juros?

Fisher na Turquia

A resposta é que Erdogan é seguidor de uma teoria econômica denominada de "neofisherismo", a qual prescreve que, para se combater a inflação de preços, é necessário reduzir as taxas de juros.

Foi Irving Fisher quem constatou que as taxas de juros reais (r) eram o resultado da subtração entre as taxas de juros nominais (i) e a taxa de inflação de preços (p), de modo que r = i - p.

Os neofisherianos inverteram os termos da equação e agora dizem que a inflação é igual à diferente entre as taxas de juros nominais e as taxas de juros reais. Ou seja, p = i - r.

Se partirmos da ideia de que as taxas de juros reais são determinadas por variáveis exógenas ao Banco Central (por exemplo, pela preferência temporal ou pela aversão ao risco dos poupadores), então o Banco Central poderá controlar a inflação de preços fixando as taxas de juros nominais, porém de uma maneira distinta do que normalmente ensinam os manuais de macroeconomia: se, para uma dada taxa de juros reais, as taxas de juros nominais forem reduzidas, então a taxa de inflação de preços cairá. Se, para uma dada taxa de juros reais, as taxas de juros nominais forem aumentadas, então a taxa de inflação de preços subirá.

Ou seja, para reduzir a inflação de preços, o BC teria de reduzir os juros nominais. E se o BC elevar os juros nominais, os preços subirão.

Trata-se, obviamente, de uma conclusão radicalmente oposta à ortodoxia econômica, mas uma que vem ganhando adeptos ao redor do mundo. 

[No Brasil, a turma de Teoria Monetária Moderna, capitaneada pelo récem-convertido André Lara Resende, pensa exatamente assim. Ciro Gomes é outro que vai na mesma toada. O fato de a Selic a 2% ter gerado um IPCA de quase 11% talvez coloque algum freio neles].

Tal receita monetária é o exato oposto do Princípio de Taylor, segundo o qual a maneira de se combater a inflação de preços necessariamente passa por aumentos substantivos na taxa de juros nominais de modo que estas fiquem acima da taxa de inflação de preços, de modo que os juros reais aumentem e, consequentemente, a demanda por crédito e a expansão monetária se contraiam.

É deste neofisherismo que Erdogan se tornou discípulo. Não por acaso, seu assessor econômico Cemil Ertem já defendeu explicitamente, e em várias ocasiões, a teoria neofisheriana: para controlar a inflação de preços é necessário reduzir, e não aumentar, os juros nominais.

Nenhum cenário se sustenta

Há sim um cenário em que a tese neofisheriana aparenta ter algum sentido. 

Por exemplo, se partimos de uma situação de equilíbrio e ocorre uma elevação da taxa nominal de juros, então esse juro nominal mais elevado irá aumentar o custo de oportunidade de se portar dinheiro vivo, o que irá reduzir a demanda por moeda. 

Esta redução da demanda por moeda tenderá a elevar a inflação de preços — até que os juros reais voltem ao mesmo nível em que estavam no início da situação de equilíbrio.

Ou seja, na situação inicial de r = i - p, um aumento de i (juros nominais) gerará uma queda na demanda por moeda, o que tende também a elevar p, até o ponto em que r volta a ser o mesmo. 

Esta lógica funciona sempre que pressupusermos que a inflação de preços é passivamente determinada pela diferença entre juros nominais e reais. No entanto, tão logo reconhecemos que a inflação de preços também pode influenciar tanto as taxas de juros nominais quanto as reais, então a questão se torna bem mais complicada.

No fim, as taxas de juros nominais influenciam não apenas a demanda por moeda, como também a demanda por crédito. E a demanda por moeda e por crédito influencia a inflação de preços, a qual, por sua vez, pode influenciar as taxas de juros reais.

Por exemplo, uma redução das taxas de juros nominais tende a estimular a demanda por crédito e, consequentemente, alimenta a inflação de preços (e as próprias expectativas de inflação: maiores expectativas contribuem para reduzir a demanda por moeda, estimulando as pessoas a gastarem mais no presente, se antecipando à maior inflação de preços futura. Tudo isso gera mais inflação de preços no presente).

Já uma elevação das taxas de juros nominais tende a restringir a demanda por crédito e, como resultado, arrefece a inflação de preços (bem como as próprias expectativas de inflação: menores expectativas contribuem para elevar a demanda por moeda, o que restringe ainda mais a inflação de preços).

Por sua vez, uma maior inflação de preços pode contribuir tanto para elevar as taxas de juros reais (se ela dificultar ou impossibilitar a poupança) quanto, alternativamente, para reduzir os juros reais (se terminar por provocar um colapso econômico que acabe com a demanda por crédito; neste caso, o 'p' permanece alto, mas o 'i' cai a zero, o que faz com que 'r' desabe).

Para concluir

A equação de Fisher apenas nos indica qual será a relação entre taxa de inflação de preços, taxa de juros nominais e taxas de juros reais em equilíbrio. Ela não nos indica quais variáveis serão ajustadas até chegarem ao novo equilíbrio (se é que chegarão). 

Daí que, hoje, acreditar que inflação de preços na Turquia irá ceder no curto prazo por meio de reduções forçadas nas taxas nominais de juros é apenas uma maneira de convidar especuladores e demais agentes econômicos (inclusive os turcos) a continuarem se desfazendo da lira, de modo que ela continuará se esfacelando interna e externamente.

Ao fim, veremos quem sairá vencedor deste choque de trens: se a equipe heterodoxa de Erdogan, despreocupada com a inflação de com o câmbio, ou a invectiva dos mercados.

Em todo caso, é garantido que os cidadãos da Turquia serão as vítimas.

Sobre o autor

Juan Ramón Rallo

É diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.

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