quarta-feira, 27 0aio 2020
Nota do Editor:
este artigo foi originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em novembro de 2019
Segundo
muitos juristas, o Supremo Tribunal Federal está há mais de seis meses descumprindo
a lei e a própria Constituição Federal no caso
do inquérito sobre as fake news.
Indignados
com as críticas à corte, o STF, sem ouvir o Ministério Público, tem:
a)
censurado a imprensa, caso de O
Antagonista e da Crusoé, que noticiaram a ligação entre o presidente do STF
e a Odebrecht (o "amigo
do amigo do meu pai");
b)
ordenado apreensões de computadores e proibições de uso de redes sociais ao
redor do país, inclusive contra
um general da reserva;
c)
demitido fiscais da Receita Federal que investigavam
familiares de ministros do STF;
d)
ordenado busca e apreensão no escritório de advocacia do ex-procurador-geral
Rodrigo Janot com base em um não-crime
ocorrido vários anos antes; e
e)
investigado em sigilo um número
desconhecido de cidadãos.
Para
o ex-ministro do STF Ayres Britto, o Judiciário
não pode ser nascente, corrente e foz de um mesmo rio, ou seja, não pode
simultaneamente investigar, acusar e julgar, atos que, segundo qualquer
ordenamento sério, são competência de órgãos distintos.
O
sigilo da investigação agrava o descumprimento do devido processo legal.
Realidade kafkiana e juvenalina
Em
"O Processo", de Franz
Kafka, o protagonista é detido, acusado e processado por suposto crime de
natureza desconhecida, por uma autoridade inacessível e remota.
No
Brasil de hoje, quem houver criticado por redes sociais o STF ou seus ministros
pode
estar sendo investigado em sigilo.
O
STF deveria ser o guardião máximo dos direitos do cidadão e do devido processo
legal. No entanto, detém poder monopolista e a última palavra em temas legais. Ademais,
não sofre controle externo nem pode ter suas determinações revogadas. Como o
nome diz, é supremo.
Que
recurso tem então a sociedade quando o STF se torna arbitrário e autoritário?
Afinal, quem vigia os vigilantes?
Em
poema satírico
do século 2º, Juvenal
formulou essa exata pergunta em contexto distinto.
Um
marido não sabia como lidar com sua esposa adúltera. Amigos sugeriram uma
medida extrema: trancá-la em casa sob vigilância. O marido pressupõe que seria
inútil, pois ela escaparia da reclusão cometendo adultério com os vigias. E pergunta
"quis
custodiet ipsos custodes"?
No
caso dos vigias, ao menos o marido pode demiti-los e extinguir a função; no
entanto, o STF não pode ser extinto nem demitido em bloco.
Não há a quem recorrer
Os
expedientes limitadores ao poder do STF são escassos. A nomeação dos ministros
é feita pelo Poder Executivo e aprovada pelo Senado. A previsão de impeachment de um determinado ministro
pelo Senado jamais ocorreu.
Essa
é uma falha do sistema republicano fundado nos três poderes de Montesquieu, que na teoria
serviriam de freio e contrapeso mútuos. Na prática, a enaltecida harmonia entre
os Poderes em geral se volta contra o cidadão.
Como
indica a teoria dos jogos, um equilíbrio
de Nash é formado com acordo simbiótico entre os Poderes, que repassam a
conta para o cidadão, cujo único poder formal é um "confirma" a cada quatro
anos.
Até
o julgamento do mensalão em 2012, o brasileiro em geral não se ocupava em
acompanhar ou fiscalizar as decisões do STF. A guinada abrupta nas ideias a
partir de então derivou de uma alforria mental que dinamitou a inércia e
apatia.
Ao
que tudo indica — e com o perdão de uma generalização —, o brasileiro não mais
aceita delegar seu destino cegamente aos políticos: é menos cordeiro, mais cão
vigilante.
Com
ajuda das redes sociais, o achincalhado "direito de espernear" passou a ter
efeito. O STF contra-ataca o esperneio por meio da censura e intimidação.
Faria
melhor se criasse juízo e extinguisse imediatamente esse inquérito
kafkiano.
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existência do estado é, acima de tudo, uma contradição jurídica