quinta-feira, 27 jun 2019
Já faz um bom tempo que a Polônia não frequenta os
noticiários internacionais, e isso é sinal de que as coisas estão calmas nesta
nação da Europa Central (eles não gostam de ser chamados de Leste Europeu).
No entanto, durante toda a década de 1980, a Polônia
foi uma fábrica contínua de notícias. Foi o país mais expressivo e agitado
por trás da Cortina de Ferro.
Hoje, a Polônia é uma vibrante economia de mercado,
cujas condições de vida não estão distantes daquelas da Europa Ocidental. Os
supermercados e as lojas de departamentos, que estão em todos os cantos, são
repletos de bens variados e oriundos de todos os cantos do mundo. As
cidades ostentam grandiosas e modernas edificações. Há até mesmo novas
igrejas sendo construídas — algo proibido sob o regime comunista.
Todas as fachadas antigas e decrépitas da era
comunista foram renovadas, e aquele antigo e lúgubre cinza foi substituído por
cores mais vibrantes. Os problemas de transporte estão praticamente
resolvidos. As rodovias são novas e modernas, e suplementam um excelente
sistema ferroviário.
Restaurantes sofisticados, cafés badalados, e
restaurantes para almoços prosaicos estão por todas as partes.
Se há 30 anos turistas estrangeiros eram algo raro
até mesmo na bela Cracóvia e seus locais tombados pela UNESCO como Patrimônio da
Humanidade, hoje você os vê rotineiramente nas principais cidades do país.
Os poloneses já se acostumaram a viver com todos os
luxos que o capitalismo pode oferecer, como apartamentos e imóveis prontamente
disponíveis. Bens como automóveis, televisores de plasma, smartphones, notebooks
etc. estão disponíveis para todas as classes sociais.
Porém, as coisas eram totalmente distintas na década
de 1980. Pronta disponibilidade de bens era algo
inimaginável. Fartura era algo fictício. Penúria era a regra.
No aniversário de 30 anos do fim do, vale a pena
fazermos uma breve viagem no tempo e voltarmos à Polônia da década de 80. A
história não deve ser esquecida.
O cenário de fundo
Ao final da década de 1970, a economia polonesa estava
em convulsão. O governo estava completamente endividado em decorrência
de vários empréstimos externos, e, tendo de arrecadar os fundos necessários
para pagar os encargos de sua dívida, ele optou por aumentar os preços de
vários produtos. Isso foi o estopim para uma série de greves de
trabalhadores.
Um pouco antes, em 1978, um papa polonês foi eleito
em Roma. Seria o primeiro papa não-italiano desde Adriano VI, que morreu
em 1523. Em junho de 1979, João Paulo II (Karol
Józef Wojtyla) fez sua primeira visita à Polônia já como sumo
pontífice. Celebrou uma missa na Praça da Vitória perante uma multidão
de 3 milhões de poloneses.
Ali estava um homem que havia sido criado sob um
regime nazista e que havia sobrevivido ao comunismo. Já não era segredo
para ninguém que aquele papa desprezava o comunismo e iria fazer de tudo para
solapar este regime na Polônia.
Esta viagem à sua Polônia natal — um franco desafio
ao regime comunista — elevou o espírito da nação, algo que culminaria, no ano
seguinte, na formação de um movimento abertamente anticomunista formado por
trabalhadores e operários.
Tudo começou com uma greve geral em Lublin,
em julho de 1980. Mas foi em meados de agosto que manifestações no
estaleiro de Gdansk deram origem a uma série de greves que praticamente paralisaram
toda a costa báltica. Pela primeira vez na história, quase todas as minas
de carvão da região da Silésia foram
fechadas.
Os representantes dos grevistas no estaleiro de
Gdansk, liderados por um eletricista chamado Lech Walesa,
assinaram o Acordo
de Gdansk, prometendo ao governo que acabariam com as greves se o governo socialista
garantisse o direito dos trabalhadores de formar sindicatos independentes e
também chancelasse o direito à greve.
Após um bem-sucedido acordo — nesta que havia sido
a maior confrontação trabalhista da história da Polônia —, movimentos
sindicais organizados começaram a ser formar ao longo de todo o país.
No dia 17 de setembro de 1980, todos os sindicatos
se reuniram em Gdansk e decidiram formar uma única organização sindical
nacional chamada de Solidariedade.

Tal liberdade, obviamente, desagradou Moscou, que,
em fevereiro de 1981, elevou o general Wojciech Jaruzelski, então Ministro da Defesa, ao
cargo de primeiro-ministro. Veterano da Segunda Guerra, sua prioridade era
recorrer à força bruta para arrefecer as manifestações que irrompiam por todos
os cantos do país.
Já em março de 1981, na cidade de Bydgoszcz, três ativistas
foram espancados pela polícia secreta. Como consequência, uma "greve
de advertência" comandada pelo Solidariedade — que a esta altura já era
formado por 9,5 milhões de poloneses — voltou a paralisar todo o país, e com o
apoio maciço da população. Os soviéticos já estavam perdendo a paciência.
Em setembro de 1981, em Gdansk, o Solidariedade fez
o seu primeiro congresso nacional, e Walesa foi eleito líder nacional do
movimento e imediatamente fez um apelo a todos os outros países do Leste
Europeu para que seguissem os mesmos passos do Solidariedade.
Para Moscou, o congresso havia sido uma "uma
orgia anti-socialista e anti-soviética". Os líderes comunistas da
Polônia, comandados por Jaruzelski, estavam prontos para utilizar de violência
para conter o movimento.

Em outubro, Jaruzelski foi nomeado
Primeiro-Secretário do Partido Comunista, uma ascensão atípica para um militar
no mundo comunista. Jaruzelski exigiu que o parlamento proibisse as greves
e o concedesse poderes extraordinários.
Em dezembro, o regime declarou lei marcial, e as
tropas paramilitares ZOMO foram
utilizadas para esmagar o Solidariedade. Praticamente todos os líderes
locais e vários intelectuais afiliados ao movimento foram detidos e
encarcerados. Nove foram assassinados na mina
de Wujek. Após este ataque do governo, os agitos no país diminuíram. Embora
reduzido a apenas alguns poucos milhares, o Solidariedade continuou na ativa,
só que agora clandestinamente.
A rotina dos poloneses
O controle do Partido Comunista parecia inquebrantável. Tudo
indicava que a Polônia ainda teria de viver sob este regime por vários anos
vindouros.
Mas como era a vida sob este regime? Quais eram
as características desta rotina que fizeram com que a população polonesa
ansiasse tanto por uma mudança?
O padrão de vida geral da população era desolador,
assim como nos outros países sob a esfera soviética. A combinação entre
escassez geral de produtos e métodos de distribuição totalmente ineficientes
fazia com que o simples ato de ir às compras em busca de produtos básicos fosse
uma experiência agonizante — mesmo quando havia produtos nas prateleiras.

Açougue em Varsóvia, 1982
Os bens de consumo se limitavam quase que
exclusivamente a produtos de baixa qualidade fabricados no Leste Europeu. Simplesmente
não havia produtos ocidentais, exceto nas lojas especiais da Pewex, que aceitavam apenas dólar
ou marco alemão, e a preços muito acima das posses de um polonês médio.
Com a imposição da Lei Marcial, as coisas pioraram
bastante. Longas filas se formavam quando produtos essenciais — como
papel higiênico, xampu, lâmpadas, chá, café, utensílios domésticos, queijo,
guardanapos, sapatos e roupas íntimas — apareciam nas lojas. O simples
ato de fazer compras era um exercício diário que envolvia perambular pela
cidade à procura de alguma loja que tivesse estoques e, caso a procura fosse
bem-sucedida, entrar em uma longa fila de espera.
E, dado que a maioria das mulheres polonesas tinha
um emprego, o fardo extra de ter de fazer compras em tais condições era enorme,
gerando uma grande taxa de absenteísmo e significativas dificuldades em cuidar
dos filhos e em dar conta das tarefas domiciliares.
Um polonês jamais saía de casa sem estar carregando
uma sacola de compras. Vai que inesperadamente ele encontrasse uma lojinha
com produtos à venda e ele tivesse a rara oportunidade de poder comprar alguma
coisa...
Em Varsóvia, a situação era menos
desesperadora. Como o Partido Comunista tinha suas bases na capital, ele
conseguia manipular as coisas de modo a garantir um suprimento mais generoso
para a cidade. No entanto, em uma cidade mais afastada — como Breslávia (ou Wroclaw),
que é grande e está localizada no sudoeste da Polônia —, a situação era igual
à do resto do país. Uma ida ao Centrum,
que então era a maior loja de departamentos da cidade, era algo que hoje parece
um pesadelo.
Havia pouquíssimos produtos disponíveis e, mesmo
assim, uma multidão de pessoas se aglomerava nos corredores. Filas de
centenas de pessoas se formavam em frente aos poucos balcões que ainda tinham
produtos disponíveis. Aquilo que em outras épocas foi a seção de tecidos
da loja havia se transformado em um mar de vazias e inúteis mesas de
medidas. Seis ou sete ternos amarfanhados estavam disponíveis na seção
masculina em meio a filas de cabides vazios. A seção de esportes tinha
apenas dois itens: pneus de bicicleta e botas de ski.
Cartazes escritos à mão ao longo dos corredores da
loja ilustravam a triste situação. Na seção de sapatos masculinos, onde em
outras épocas havia centenas de diferentes pares e agora estava sempre vazia,
um cartaz dizia que "149 pares serão vendidos hoje". Outro
cartaz anunciava que "Nenhum tapete será vendido hoje".
Em frente aos poucos aspiradores de pó ainda
disponíveis na seção de eletrodomésticos, um cartaz dizia "Somente para
Agricultores". O governo vinha tentando motivar os agricultores a
produzir mais comida, e imaginou que poderia criar tal estímulo reservando
somente para eles os bens de consumo mais desejáveis.
Em determinadas ocasiões, as pessoas eram obrigadas
a efetuar grandes façanhas para obter itens totalmente simples. Quando
alguma loja anunciava que estava vendendo máquinas de costura, pessoas de todos
os cantos da Breslávia corriam para lá. De início, era necessário ficar um
dia e meio em pé na fila apenas para colocar seu nome em uma lista de
compradores interessados. Depois, durante três ou quatro dias
consecutivos, você tinha de ir à loja três vezes por dia apenas para estar
presente à chamada que os burocratas faziam para verificar os nomes da
lista. Cumprida esta tarefa, todos eram instruídos a voltar dali a duas
semanas, que seria quando as máquinas estariam disponíveis — e ainda assim não
havia nenhuma garantia de que as pessoas na lista realmente conseguiriam uma
máquina de costurar.
Era comum alguns produtos irem parar nas mãos de
amigos do burocrata encarregado de administrar a loja. Ou nas mãos de alguns
membros do Partido.
Porém, dentre todos os martírios e provações que o
consumidor polonês tinha de enfrentar, a busca por comida certamente era o mais
humilhante e deprimente de todos. Um popular supermercado da Breslávia,
que gozava a reputação de estar sempre bem suprido, tinha em suas prateleiras
pão, biscoito-de-água-e-sal, dois tipos de pimenta, sal, farinha, macarrão,
picles, açúcar, latas de ervilha, e água mineral. A seção de hortifruti tinha
batatas, cebolas, beterrabas, cenouras, alho e alface estragada. A seção de
laticínios tinha queijo branco e ovos. Carne era disponibilizada apenas
para quem apresentasse todos os devidos cartões de racionamento. Este era
todo o estoque do supermercado.
Quando chegava algum carregamento de coisas mais
saborosas, como geléia, iogurte ou pudim, tudo se esgotava em menos de uma
hora. Em determinadas ocasiões, se você madrugasse em frente à porta do
supermercado e estivesse com sorte, conseguiria comprar um pouco de leite.

Mercado em Grójek, 1982
Quem tinha mais tempo disponível podia perambular
pela cidade à procura de lojas menores que porventura vendessem alguns itens
adicionais. Havia pequenas feiras ao ar livre que vendiam alguns
vegetais. O difícil era conseguir criar uma dieta mais apetitosa e variada
tendo pouquíssimas opções. Frutas, em especial, eram um problema. As
únicas que estavam sempre à venda eram as maçãs. De vez em quando, surgiam
alguns limões. Laranjas e bananas eram importadas somente em feriados.
Comprar gasolina era outra dor de cabeça. Os
consumidores iam ao posto, passavam o dia todo dentro do carro esperando na
fila, deixavam o carro lá durante a noite, voltavam no dia seguinte e
continuavam na fila, até o momento em que conseguissem um pouco de
gasolina. E isso se o posto de gasolina ainda estivesse operante no dia
seguinte — era comum eles simplesmente fecharem da noite para o dia e não mais
abrirem.
A opressão diária não terminava aí. A escassez
de apartamentos levava os jovens à beira do desespero, pois tinham de esperar
10 anos ou mais até o governo disponibilizar um mísero espaço em um apartamento
apertado. Casais de meia idade e com filhos ainda moravam com os pais
enquanto aguardavam seus nomes serem chamados na lista de espera dos apartamentos. Por
outro lado, quem se filiava ao Partido rapidamente conseguia um alojamento.
As construções eram uniformemente funcionais,
cinzas, sombrias, monótonas e repulsivas. Vários prédios começavam a se
esfacelar tão logo ficavam prontos. O uso do carvão como fonte de energia
jogava uma película escura sobre as cidades, tornando-as ainda
mais melancólicas.
O transporte público era apenas utilizável, e isso
já bastava para que ônibus, bondes e trens estivessem sempre entupidos de
gente. A lista de espera para comprar um carro demorava anos e o automóvel
quase sempre era um exíguo e fraco Fiat
polonês. Os limpadores de pára-brisa tinham de ser trancados dentro do
carro, pois eram o alvo preferencial dos ladrões. Acessórios automotivos,
por serem muito raros, eram muito valiosos na Polônia.
Uma coisa, no entanto, era verdade: os países do
bloco soviético usufruíam pleno
emprego. Bom, "usufruíam" é um termo incorreto. Quando você
trabalha muito e não pode comprar nada, ou não tem a liberdade de usar os
proventos do seu trabalho, você vive sob um regime de semi-escravidão. Na
Polônia, o pleno emprego produzia apenas um crônico excesso de mão-de-obra mal paga
e pessimamente utilizada. Praticamente todos os empregos eram enfadonhos e
frustrantes.
Os gerentes das lojas e as pessoas que trabalhavam
em restaurantes e no sistema de transporte simplesmente não tinham nenhum
incentivo para serem solícitos ou mesmo gentis com os clientes. O cliente
era apenas um estorvo, e eles não ganhavam nada nesta interação. O serviço
prestado era ou ríspido ou apático.
Profissionais de todas as áreas tinham de lidar com
a escassez de equipamentos. Professores da prestigiosa universidade
técnica da Breslávia zombavam da ideia de que conseguiriam fazer alguma
pesquisa séria na Polônia. Eles passavam todo o seu tempo livre escrevendo
propostas para serem aceitos em universidades ocidentais, onde havia ampla
disponibilidade de materiais e equipamentos sofisticados.
A burocracia paralisava todas as transações, e
impossibilitava até os mais simples pedidos. Viajar para o exterior era algo
extremamente restringido. Televisão, rádio e mídia impressa eram,
obviamente, atividades efetuadas exclusivamente por pessoas sob o controle do
Partido, dentro da Polônia ou em algum outro lugar dentro da esfera soviética.
A lei marcial impôs restrições ainda maiores. Os
passaportes foram universalmente cancelados, de modo que nenhum polonês podia
viajar ao exterior. Durante os primeiros meses da lei marcial, os
poloneses não podiam nem sequer viajar entre cidades da Polônia sem a devida
autorização do governo. Cartas sempre eram entregues abertas, amassadas
dentro de sacos plásticos e com um carimbo escrito "Censurado". Quando
você discava um número no telefone, a primeira coisa que você ouvia era uma
gravação repetindo "conversa monitorada, conversa monitorada".
O exército assumiu o controle de toda a
radiodifusão, e a programação da TV se resumia majoritariamente a filmes russos
sobre a Segunda Guerra Mundial. Âncoras de jornais foram substituídos por
soldados uniformizados que mecanicamente liam as notícias diárias. E as
notícias eram sempre as mesmas: o Solidariedade havia destruído a economia; o
exército estava se esforçando para recolocar o país no lugar; as coisas estavam
visivelmente melhorando.
Obviamente, e ao contrário dos ocidentais de hoje,
ninguém acreditava em nada do que dizia a mídia.

A
sucessão de eventos
Após a imposição da lei marcial em dezembro de 1981
e a maciça utilização do exército e das tropas paramilitares ZOMO para esmagar o
Solidariedade, o número de afiliados ao movimento caiu de 9,5 milhões para apenas
alguns poucos milhares. Os agitos no país diminuíram sobremaneira, mas
continuaram. O Solidariedade continuou na ativa, só que agora
clandestinamente.
Após ter conseguido impor ao menos uma aparência de
estabilidade, o regime polonês começou a relaxar a lei marcial. Ao longo
do tempo, a lei foi sendo revogada em várias etapas.
Em dezembro de 1982, a lei marcial foi suspensa e um
pequeno número de prisioneiros políticos, dentre eles Walesa, foi
libertado. Embora a lei marcial só tenha sido formalmente abolida em julho
de 1983, e uma anistia parcial tenha sido promulgada, várias centenas de
prisioneiros políticos continuaram
encarcerados.
Tornou-se mundialmente famoso o caso de Jerzy Popieluszko,
um popular padre defensor do Solidariedade, que foi sequestrado e assassinado
pelo serviço de segurança do governo — o Sluzba Bezpieczenstwa — em outubro de
1984.
A partir daí, os fenômenos de resistência na Polônia
começaram a ser influenciados pela postura reformista de Mikhail Gorbachev na
União Soviética. Em setembro de 1986, uma anistia geral foi declarada e o
governo libertou quase todos os prisioneiros políticos.
No entanto, as autoridades continuaram perseguindo
os dissidentes e todos os ativistas do Solidariedade.
Já estava mais do que óbvio que os esforços do
regime para organizar a sociedade de cima para baixo haviam fracassado
completamente. Com a crise econômica agravada e todas as instituições sem
funcionar, a clandestina resistência anti-comunista foi ganhando um número
crescente de adeptos.
A
Resistência
Testemunhei ao vivo estes acontecimentos. Em
novembro de 1986, passei 10 dias vivendo entre os clandestinos do Solidariedade
e do Liberdade
e Paz, um grupo formado por jovens.
Durante esta minha visita, aprendi que, cinco anos
após o início dos violentos ataques desfechados pelo governo contra os
movimentos de resistência, os poloneses haviam aprendido fabulosos truques para
ludibriar e se esquivar do regime de Jaruzelski, tudo de uma maneira que chega
a desafiar a imaginação. A escassez total dos mais básicos produtos
alimentares, a inflação de preços em dois dígitos, e uma poderosa polícia
secreta não os impediram de criar formidáveis mercados negros e vigorosas
instituições privadas, desde rádios e editoras de livros a até mesmo teatros e
escolas. Tudo clandestinamente.
Wiktor
Kulerski, um dos lideres do Solidariedade, já havia esboçado, alguns anos antes,
um esquema sobre como seria a resistência polonesa. Escreveu ele:
Este movimento irá criar uma situação em
que as autoridades irão controlar as lojas estatais, mas não o mercado; o
emprego de trabalhadores, mas não seu meio de vida; a imprensa oficial, mas não
a circulação de informações; as editoras, mas não as publicações; os correios e
os telefones, mas não as comunicações; e o sistema escolar, mas não a educação.
Trinta e oito milhões de poloneses estavam
menosprezando e ridicularizando o estado. Eles já haviam aprendido por
experiência própria e dolorosa que, como bem havia dito o escritor e compositor
dissidente Stefan
Kisielewski (que havia sido preso e espancado por causa disso),
"Socialismo é estupidez".
Eles já estavam fartos daquilo tudo.
Em um jantar organizado secretamente, em minha
homenagem, por uma organização clandestina de editores em Cracóvia, fiquei
mesmerizado com a amplitude daquilo que meus anfitriões chamavam de
"empreendimentos editoriais independentes". Eles haviam
traduzido, imprimido e editado várias obras "subversivas" de
Alexander Solzhenitsyn, George Orwell, e até mesmo de Murray Rothbard e Ayn
Rand.
"Onde vocês conseguem os papeis para imprimir
tudo isso?", perguntei. Um jovem polonês chamado Pawel respondeu:
"De dois lugares: contrabandeamos do Ocidente e roubamos dos
comunistas".
Pawel explicou que havia vários empregados das casas
editoriais do governo que eram simpáticos ao movimento de resistência. Eles
frequentemente forneciam papeis para os movimentos clandestinos. E quando
a barra estava realmente limpa — ou seja, sem nenhum agente estatal nas
redondezas —, eles chegavam até mesmo a imprimir o material ilegal nas
próprias impressoras do governo.
Todo este material era distribuído e circulava
amplamente nos subterrâneos de Varsóvia.
Quando o governo soube, decidiu contra-atacar
criando uma operação para confiscar os carros dos distribuidores deste material
proibido. Para se proteger, os editores clandestinos criaram sua própria
companhia de seguros (a qual eles chamaram de "Lloyd's de
Varsóvia") para cobrir os custos do confisco de seus carros, papeis e
materiais.
Perguntei àqueles editores como eu poderia
ajudar. Curiosamente, eles já haviam planejado um pedido específico para
mim. Eles me perguntaram se eu conseguiria arrecadar US$5.000 e enviar esse
dinheiro para seus aliados exilados em Paris, os quais iriam utilizar esse
dinheiro para financiar a tradução para o polonês e a impressão de várias
cópias do clássico Liberdade
para Escolher, de Milton Friedman. Dentre as minhas mais estimadas
possessões está uma edição deste livro com uma dedicatória do ativista Wojciech
Modelski com estas palavras: "Obrigado, Larry! Sem sua ajuda,
não seria possível publicarmos este livro."
Mas a minha história favorita desta minha visita à
Polônia envolve um casal muito corajoso e intrépido, Zbigniew e Sofia Romaszewski. Eles
haviam sido soltos da prisão fazia muito pouco tempo. O crime? Comandar
uma popular estação de rádio clandestina.
Não aguentei e tive de perguntar: "Quando
vocês estavam transmitindo, como sabiam se as pessoas estavam
ouvindo?"
Sofia respondeu: "Tínhamos de estar constantemente
mudando de lugar para que a polícia não nos capturasse. Por isso, só
conseguíamos transmitir de oito a dez minutos de cada vez. Uma certa
noite, fiz o seguinte pedido: se há alguém nos ouvindo, pisquem suas luzes para
mostrar que acreditam na liberdade. E então fomos para a janela. Durante
horas, toda Varsóvia ficou piscando".
Poucos dias depois, fui preso, revistado nu e
deportado.
O fim da tirania
Em fevereiro de 1988, já desesperado com a situação
de suas finanças, o governo implementou um aumento generalizado de 110% nos
preços de todos os bens da economia. Os protestos estudantis
retornaram. O colapso econômico gerou uma série de greves ao redor do país em
abril, maio e agosto. O governo se sentiu obrigado a negociar.
Com a indispensável mediação da Igreja Católica,
contatos preliminares foram feitos entre o governo e membros do
Solidariedade. Em setembro, o governo recorre a Lech Walesa para tentar
negociar o fim das greves. No dia 18 de dezembro de 1988, o Solidariedade
sai da ilegalidade.
No início de 1989, o general Wojciech Jaruzelski
chegou a um acordo com Lech Walesa: os grupos políticos suprimidos seriam
legalizados e eleições gerais seriam marcadas para o dia 4 de junho. O general
não tinha alternativas. A Polônia, declarou ele, havia se tornado
"ingovernável".
E foi exatamente no dia 4 de junho de 1989 que a
Polônia eletrizou o mundo ao fazer as primeiras eleições livres na Europa
comunista. Ativistas anticomunistas (e, em vários casos, também
anti-socialistas) surpreenderam seus conterrâneos: eles conquistaram 99 das 100
cadeiras no Senado e absolutamente todas as 161 cadeiras do Parlamento que o
regime permitiu serem disputadas na eleição.
Tais resultados asseguraram que a guinada para a
liberdade em todo o império soviético era definitiva e iria se intensificar até
derrubar todos os ditadores e partidos comunistas, desde Berlim Oriental
até Ulan Bator.
Em 1989, alguns dias após a queda do Muro de Berlim,
a Revolução
de Veludo estava em andamento na vizinha Tchecoslováquia. A
Hungria havia aberto suas fronteiras para o Ocidente algumas semanas
antes. O megalomaníaco Nicolai Ceausescu, da Romênia, seria fuzilado no Natal.
Mas foi a Polônia quem havia aberto o caminho.
Conclusão
A história da Polônia desde a imposição da lei
marcial e do esmagamento do Solidariedade em dezembro de 1981 até as gloriosas
eleições de 1989 não é a saga de um povo pessimista,
derrotista ou submisso. Ao contrário: trata-se de uma notável evidência do
desejo humano de ser livre.
Embora os três poderosos líderes do Reino Unido, dos
EUA e do Vaticano (Thatcher, Reagan e João Paulo II) tenham ajudado imensamente
no processo da desintegração comunista, estes mesmos líderes correta e
repetidamente aplaudiram e elogiaram o espírito desafiador dos poloneses. "O
povo da Polônia", declarou Reagan, "está nos dando um imperecível
exemplo de coragem e devoção aos valores da liberdade contra uma violenta e
implacável oposição. . . . A tocha da liberdade é quente. Ela aquece
aqueles que a mantêm lá no alto e queima aqueles que tentam apagá-la."
Um dos gigantes intelectuais da liberdade polonesa,
o filósofo e historiador Leszek Kolakowski,
que morreu em julho de 2009 aos 81 anos de idade, rotulou o marxismo de "a
maior fantasia do nosso século". Segundo ele, a brutalidade
totalitária é uma inevitável consequência de uma concentração de poder.
Em uma entrevista concedida
ao The New York Times em 2004, ele disse que
"Supostamente, essa ideologia deveria moldar o pensamento das pessoas; no
entanto, a partir de certo momento, ela se tornou tão fraca e tão ridícula, que
ninguém mais acreditava nela. Nem os governados, nem os governantes."
A todos aqueles milhões de poloneses que bravamente
lutaram pela liberdade e que atiraram o socialismo na lata de lixo da história
há 30 anos, muito obrigado por sua coragem, sua perseverança, sua visão e
seu exemplo.

Cracóvia hoje
Mateusz Machaj e Jakub Bozydar Wisniewski colaboraram com este artigo