Uma catástrofe humanitária
está acontecendo logo ali no nosso vizinho do norte. Um país inteiro está
ficando sem ter o que
comer.
A violência é tão
grande que faz o Brasil parecer
um lugar tranquilo. Os emigrados já passam
de dois milhões. A ínfima parcela que foi
para Roraima nos dá a dimensão do desastre.
Não foi, porém, um desastre natural, como pode
parecer a um desavisado que leia os jornais brasileiros. Foi um desastre
produzido por mãos humanas, com muito afinco.
Expropriações
e tabelamentos
Por anos a fio, o governo venezuelano impediu as pessoas de
alocarem seus recursos como lhes parecesse melhor. Por anos a fio, ele usou e
abusou do controle de
preços e do confisco.
Por anos a fio, ele transmitiu a seguinte mensagem a qualquer um que quisesse
investir na Venezuela: tudo o que é seu só é seu enquanto eu permitir.
Foi o que Chávez disse, por exemplo, ao dono da
Polar, uma empresa de alimentos e bebidas: "Vou lhe dizer uma coisa, Mendoza.
Eu, neste momento, não tenho nenhum plano para expropriar a Polar. Não me
interessa. Neste momento, não sei se mais adiante. Não sei. Agora, se você
acredita que vai me provocar como aqueles do canal 2... você se lembra, né?
Mendoza, você quer medir forças comigo? Vai sair perdendo, Mendoza". (veja o vídeo, marco
1:30).
Chávez estava bravo com Mendoza porque os
trabalhadores da Polar protestavam contra a expropriação
de outra empresa, a Owens-Illinois. Os trabalhadores, é claro, temiam por
seus empregos caso a Polar fosse a próxima da lista. Chávez acabou cumprindo
parcialmente sua ameaça. Expropriou
um pedaço da Polar, e o motivo foi ela ter feito um depósito de cerveja
onde o governo não queria um depósito de cerveja (veja o vídeo, marco
1:09).
Alguns anos depois, Maduro expropriou outro pedaço. Os trabalhadores protestaram
mais uma vez. Em vão.
Não é preciso ter qualquer apreço especial pelo
caráter dos empresários para entender que expropriações desencorajam o
investimento privado. Basta ver os empresários como pessoas que se preocupam
com o próprio patrimônio. Com efeito, quanto mais a preocupação deles for essa,
mais eles vão fugir de lugares onde o governo os expropria.
As expropriações eram uma das pernas de um projeto
de controle total da economia pelo estado. Outra perna, talvez até mais
importante, foi o tabelamento de preços.
O Brasil já teve experiências do tipo, como o Plano
Cruzado, no qual a tabela da Sunab, de triste lembrança, definia o preço de tudo.
Mas aquele congelamento teve ao menos a virtude de ser, desde a sua concepção,
uma medida temporária. Não foi assim na Venezuela, como o próprio Comandante
explica:
O
controle de preços é necessário e forma parte de uma estratégia de intervenção
do estado na economia, a qual é um dos elementos que conformam a transição do
capitalismo - simbolizado por empresas como esta e seus grupos de grandes
corporações — para o socialismo. (Veja o vídeo, aos 23s).
A política econômica de Chávez era um Plano Cruzado
permanente.
O tabelamento de preços nunca funciona porque um
sistema de preços livres é, entre outras coisas, um transmissor de
informações. Muitas informações. Preços livres resumem a enorme
complexidade das cadeias produtivas de um jeito que até o mais iletrado cidadão
consegue saber instantaneamente o que está sobrando e o que está faltando na
praça. Se o preço está alto, o cidadão entende que deve consumir aquilo com
parcimônia. Se o preço está baixo, o cidadão entende que pode consumir mais. Do
lado de quem produz acontece o movimento inverso: o preço alto atrai mais gente
para aquela atividade, enquanto o preço baixo induz a turma a fazer outra coisa.
Quando o governo bloqueia esse mecanismo, as
decisões de produção e consumo passam a ser feitas no escuro. As pessoas erram
a mão. O produto que estava sobrando continua sobrando, e o que estava faltando
continua faltando. Escassez aqui e desperdício ali. E isso não acontece só com
os produtos do supermercado. Afeta os insumos também. Afeta os serviços. Afeta
tudo. Se a escuridão se prolongar, a economia entra em colapso.
Mas a burocracia chavista nunca acreditou nessas
coisas. Nunca acreditou em decisões descentralizadas. Sempre quis calcular ela
própria o custo de cada item. E utilizou métodos bastante peculiares. Nunca
aceitou, por exemplo, que o imposto de renda e o imposto sobre valor agregado
(IVA) fossem incluídos no preço de venda, e isso é tão bizarro que é possível
ouvir isso pela voz do próprio Comandante (a partir do minuto
3:36).
Os comerciantes, é claro, também fazem suas contas,
e elas frequentemente dão um resultado diferente. Para resolver esse problema,
a Venezuela tem uma instituição da mesma estirpe que produziu a Sunab de
Sarney: a Sundde.
O superintendente da Sundde sai pelas ruas e decreta: "Baixem os preços
imediatamente! Não se ponha a fazer cálculos! Prendam-no!" (Veja o vídeo).
Proibidas de fazer cálculos, proibidas de vender
seus produtos a um preço que dê lucro, as pessoas param de produzir. Mas nem
assim ficam livres da Sundde. Ela vem, confisca a matéria prima
parada e prende quem se atreve a desafiá-la.
A brincadeira não ficou só nas expropriações e no
controle de preços. Chávez também quis definir o que os agricultores deveriam
plantar. Isso foi feito no artigo 110 da Lei de Terras, que Chávez criou em
2001 sem precisar do aval do parlamento, pois tinha recebido permissão para
governar por decreto durante um ano. Pelo artigo 110 da Lei de Terras (disponível aqui como arquivo de word),
qualquer plantio que não estivesse na lista de produtos considerados
prioritários pelo governo ficava fora do cômputo de rendimento da terra para
fins de reforma agrária.
Agora apenas imagine: o sujeito planta, digamos,
aspargos. Produtividade altíssima. Os aspargos são um sucesso, vendem feito pão
quente, mas deram o azar de não estar na tal lista. Pronto: fazenda
improdutiva, passível de desapropriação.
"Mas as pessoas querem os meus aspargos!" - diria,
talvez, o nosso fazendeiro. "Estão dispostas a pagar por eles!".
"Pouco importa o que as pessoas querem", responderia
o governo. "Importa o que está na minha lista".
Aconteceu, então, o que sempre acontece quando o
governo faz essas coisas: desabastecimento,
prateleiras vazias, filas. Eventualmente, o caudilho de plantão resolve
culpar as vítimas. Na Venezuela, ele chama a Sundde e deixa bem claro o que
deve ser feito: "Presos têm que ir todos os donos de estabelecimentos que
ponham as pessoas para fazer filas! Presos!" (veja o vídeo, aos 37s).
Da
tentativa ao golpe efetivo: uma nova constituinte
Os chavistas realmente sabem falar grosso. E falaram
grosso desde o começo.
Chávez estreou na vida pública com uma tentativa de
golpe, no
dia 4 de fevereiro de 1992. Golpe raiz, do tipo que é feito com farda,
coturno e fuzil. A quartelada nunca mereceu uma autocrítica. Ao contrário,
aliás. Nas eleições de 1998, os principais golpistas de 1992 estavam no
palanque do coronel paraquedista (Andres Schafer, jornalista que filmou a
propaganda eleitoral, conta os detalhes disso num texto saboroso publicado
na Piauí).
Depois da vitória, o dia 4 de fevereiro se tornou o
Dia da Dignidade Nacional. O chavismo celebrava o seu putsch. Reconhecia a baioneta como instrumento válido na disputa
política. Quando Maduro disse
que "o que não se pôde com os votos nós faríamos com as armas", estava
apenas dando continuidade a uma concepção política que vinha de longa data.
Mas Chávez, bem ou mal, ganhou eleições (com
56% dos votos). Durante um bom tempo, aliás, foi extraordinariamente
popular. Não quis, porém, governar com as instituições existentes.
Já na posse, em 1999, recusou-se a jurar a
constituição. Declarou-a
moribunda. Convocou um plebiscito
para fazer uma nova. O homem realmente queria uma revolução. Venceu o
plebiscito com
folga.
Foi feita então uma nova eleição, desta vez para a escolha
dos deputados constituintes. Outra vitória do chavismo, por ampla
margem.
A nova assembleia cobriu-se de grandes poderes.
Podia demitir juízes, dissolver a Assembleia Nacional (o parlamento ordinário,
não constituinte) e também a suprema corte, que acabou sendo inteiramente
substituída. Em menos de dois anos os chavistas controlavam o executivo, o
legislativo e o judiciário. O sistema de freios e contrapesos, que existe justamente
para impedir maiorias momentâneas de irem longe demais, estava sendo
desativado.
O coronel recorria ao procedimento clássico de usar
os mecanismos da democracia para solapá-la.
Vieram as cadeias nacionais de rádio e TV. A
qualquer momento, Chávez interrompia a novela, o noticiário ou o programa de
variedades para apresentar
uma nova lei, andar
de helicóptero, cumprimentar
atletas olímpicos, discorrer
sobre Simon Bolívar, falar por mais de duas horas em um supermercado popular,
ou discursar por mais de
três a uma plateia de estudantes.
O importante era mostrar exaustivamente o rosto e a
voz do Comandante. Culto à personalidade, sem o menor pudor. De 1999 a 2013, houve
2.569 cadeias nacionais (uma a cada dois dias), com duração média de 43 minutos.
Frequentemente, elas eram acionadas para impedir a transmissão ao vivo de
protestos contra o governo.
Sob Maduro, a coisa ganhou uma vinheta que,
orwellianamente, fala no "seu direito a receber
informação veraz".
As redes de TV passaram a não gostar muito de
Chávez. Estimularam protestos contra ele já em 2002. E protestos houve. Muitos,
e grandes. Chávez balançou. Deram
um golpe. Chávez caiu. O golpe, porém, foi tão mal planejado que em 24
horas o novo presidente já tinha brigado com metade da coalizão que o pusera
lá. No dia seguinte, Chávez
voltou.
O
recrudescimento do regime
Dali para frente, o cenário de mídia hostil mudaria
completamente. Em 2003, o governo criou o canal de TV Visión de Venezuela. Em
2007, criou a Televisora Venezolana Social. No mesmo ano, deixou de renovar a
licença do canal privado RCTV,
que apoiara o golpe de 2002. Em 2009, fechou
34 rádios. Em 2013, a Globovisión, outra que tinha apoiado o golpe, mudou
de dono e ficou
mais mansa. Em 2014, a colombiana NTN24
foi tirada do ar por noticiar protestos contra Maduro. Em 2017, foi
a vez da CNN. Às vozes dissidentes, só restou a internet.
Durante boa parte desses anos, os chavistas seguiram
vencendo nas urnas. Sua
primeira derrota veio em 2007, em um referendo para, entre outras coisas,
permitir reeleição ilimitada.
A segunda derrota veio no ano seguinte, quando a oposição
conquistou a prefeitura de Caracas. Desta vez, porém, os chavistas
prepararam uma surpresinha: criaram, em 2009, um novo ente federativo: o Distrito
Capital.
O Distrito Capital, cuja chefe foi nomeada
diretamente por Chávez, absorveu a maior parte do orçamento da prefeitura.
Questionada sobre isso, a nomeada, Jaqueline Faría, explicou (ver aos 45s)
que tudo foi feito com base nos artigos 16 e 18 da constituição de 1999. Este
articulista se deu ao trabalho de ler os artigos 16 e 18 da constituição (disponível
aqui). O artigo 16 não se aplica, pois fala da criação de territórios
federais, o que não era o caso, uma vez que o Distrito Capital já estava
formalmente criado, embora não regulamentado. É o artigo 18 que rege o caso em
questão. Ele de fato prevê a criação, por lei, de uma autoridade como a que
Jaqueline veio a ocupar, mas diz que a tal lei deve garantir "o caráter
democrático e participativo" dessa autoridade.
Existe um mecanismo bem conhecido para dar caráter
democrático e participativo às coisas. Chama-se eleição. Mas Jaqueline tem uma
resposta para isso também. Segundo ela, o lugar onde fica a sede do governo
nacional não pode ser governado por quem faça oposição ao governo nacional.
"Imagine", diz Jaqueline, no mesmo vídeo, a partir
de 7:06, "um presidente de turno que tenha então em seu espaço, em sua
sede, um governador ou um chefe eleito e que lhe seja contrário".
O entrevistador insiste: "isso é o que os
franceses chamam 'coabitação'". Resposta: "coabitação existe em nível
nacional, mas não na sede dos poderes públicos e da presidência da
república".
Outra
constituinte
Maduro gostou desse método de neutralizar as
eleições quando o chavismo perde. Usou um truque parecido em 2017. Um ano e
meio antes, a oposição tinha conquistado maioria no parlamento. Maduro, então,
simplesmente inventou uma assembleia
constituinte, que, como legislador originário, viria a anular completamente
o parlamento eleito.
Mas havia, é claro, o risco de a oposição conquistar
maioria na assembleia constituinte também.
O que Maduro fez? Desenhou um colégio eleitoral
mandraque. Eis como funciona: o Distrito Capital, que tem mais de 3 milhões de
habitantes, elegeu 7 constituintes, enquanto o estado de Apure, com menos de
600 mil habitantes, elegeu 8, e Cojedes, com 348 mil, elegeu 10 (Fonte).
Mas observe: o Distrito Capital é fortemente
oposicionista: em 2015, elegeu 16 deputados de oposição e só 2 governistas (Fonte).
Já em Apure, Maduro ganhou de 8 a 2, também em 2015 (Fonte).
Em Cojedes, de 5 a 3 (Fonte).
Exatos 364 constituintes foram eleitos assim, por base geográfica, com os
lugares onde Maduro era mais popular tendo uma representação bem maior. Para os
outros 181 assentos, Maduro providenciou cotas, a maioria em segmentos que o
apoiavam. Por exemplo, a cota dos assim chamados 'trabalhadores' foi de 79
constituintes. A dos aposentados, 28. A dos conselhos comunales, 24. A dos
estudantes, outros 24.
Mas a coisa não parou por aí. Mesmo com um sistema
de votação totalmente viciado, Maduro ainda achou necessário ameaçar
funcionários públicos e portadores do "carnê
da pátria" (documento que dá acesso a benefícios do governo): "E no
final do dia revisem a folha de pagamento. Se temos 15 mil trabalhadores, devem
votar os 15 mil trabalhadores, sem nenhuma desculpa!" (veja o vídeo, no marco
2:52).
Assim, para grande espanto de quem acredita na magia
das democracias populares, a truculência de Chávez e Maduro na economia se
estendeu a todo o resto. A liberdade de expressão foi sufocada. A alternância
de poder pela via eleitoral foi bloqueada. As energias criativas de um país
inteiro foram sabotadas por mais de uma década. E esse país agora passa
fome.
Alguns ainda tentam dizer que a crise se deve à queda no preço do
petróleo. Ignorância pura. O preço do petróleo esteve nas alturas até
meados de 2014, e naquele ano a economia venezuelana já respirava por
aparelhos. Com efeito, em
2007 já havia escassez no país. Mais recentemente, o barril voltou a
superar 60 dólares, uma cotação historicamente bastante razoável, e nem por
isso os problemas deram sinais de melhora. Vários outros países são igualmente
dependentes do petróleo. Eles atravessaram esses três ou quatro anos de
cotações baixas sem sofrer nada muito além das mazelas que sempre tiveram.
Então não, não foi o
preço do petróleo.
A Venezuela está se desintegrando por outro motivo: o
socialismo econômico em
conjunto com uma tirania que há muitos anos pisa na cabeça de milhões de
pessoas.
Memórias
e desejo
Estive na Venezuela no final de 2003. Entrei pela
hoje triste Pacaraima.
Do lado de lá, fui recebido com um carinho que nunca vou esquecer. Pessoas
queridas me conheceram nas cachoeiras da Gran Sabana
e me ofereceram uma carona que chegou até Coro, no Caribe. Essas pessoas sofrem
agora. Assistem, impotentes, à destruição do seu país. De onde estou, não
consigo ver luz no fim desse túnel. Espero que elas consigam. Espero que alguém
consiga.
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