quinta-feira, 9 0aio 2019
Nota do editor
O artigo abaixo foi originalmente publicado em julho de 2018. Com a recente escalada das tensões entre os governos de EUA e China, ele ficou ainda mais atual. Adicionalmente, ele explica por que as medidas protecionistas até então adotadas pelo governo americano não surtiram visíveis efeitos negativos sobre os consumidores americanos.
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Após anos de alertas de que ela viria, e após meses
de ameaças e retórica, a guerra comercial está oficialmente lançada. Nada mais
de prazos, propostas e negociações. Ela já está aqui, agora, e provavelmente
irá se intensificar.
As primeiras consequências não-premeditadas já estão
sendo sentidas, como o anúncio
da Harley-Davidson de que irá fechar uma fábrica nos EUA e abrir outra na
Tailândia.
No entanto, vale a pena refletir sobre todas as
maneiras como esta guerra comercial parece divergir do padrão histórico. No final, chega-se a uma
constatação importante: essa guerra comercial não nasceu de uma estratégia, mas
sim de uma mera ideologia.
1.
A economia americana está forte
Normalmente, políticos adotam o protecionismo em
épocas de economia em recessão. O objetivo, completamente insensato, é proteger
as empresas nacionais da concorrência estrangeira, garantindo uma reserva de
mercado para elas. No entanto, como nos mostram as trágicas consequências da
tarifa Smoot-Hawley, essa medida simplesmente piora tudo.
Atualmente, porém, a situação é bastante diferente.
Após uma longa e lenta recuperação desde a crise financeira de 2008, a economia
americana finalmente voltou a acelerar. Não apenas os principais indicadores
macroeconômicos — como o aumento da renda e dos salários — são
robustos, como a taxa
de desemprego está no menor patamar desde 1968.
Logo, qual realmente é o problema a ser resolvido?
Há quem diga que o emprego no setor industrial está em queda, o que é verdade,
porém a produção
industrial americana nunca esteve tão alta, assim como a renda destes
empregados. Ademais, o emprego no setor industrial alcançou seu último pico
no ano de 1980, passando a entrar em uma contínua queda desde então.
Logo, simplesmente não faz sentido adotar uma política econômica em 2018 para
solucionar um aparente "problema" cuja tendência já era clara há 40 anos. A
redução da mão-de-obra humana no setor industrial não apenas é um fenômeno inevitável, como
também é humanamente desejável.
Ademais, a economia americana já está plenamente adaptada à
globalização. Nenhum americano será capaz de citar um único produto
adquirido nos últimos 5 anos que não utilize algum processo de produção
"estrangeiro" em sua manufatura.
No final, a grande ironia deste ponto é que é
exatamente a economia robusta o que irá possibilitar que essa política do
governo Trump tenha longevidade. Estivesse o país em uma recessão, o
protecionismo rapidamente pioraria a situação de
todos, pois traria um imediato aumento no custo de vida em um momento de
desemprego alto e renda em queda; estando, porém, o país em crescimento
econômico, os efeitos deletérios do protecionismo podem ser bastante
amenizados. O rápido crescimento econômico e uma baixa taxa de desemprego
possibilitam o nacionalismo econômico sem que se sinta seus rápidos e óbvios
efeitos deletérios.
De uma forma um tanto perversa, o crescimento
econômico americano irá fornecer alguma blindagem contra os estragos.
Mas jamais nos esqueçamos da lição de Bastiat: para
avaliar as consequências de uma política econômica, temos de olhar tanto para
aquilo que vemos quanto para aquilo que não vemos. Uma grande quantidade de
riqueza não apenas será como já está
sendo destruída. Veja exemplos recentes de pequenas empresas americanas
negativamente afetadas por essas tarifas de importação aqui,
aqui,
aqui,
aqui,
aqui
e aqui.
2.
Não há um ponto final
Os produtores e consumidores de todos os países
afetados (Canadá, México, toda a Europa e China) perguntam qual realmente é o
objetivo de tudo isso. Cabe ao país que deu o primeiro tiro fazer a distensão e
restaurar a ordem comercial global. Mas você não encontra nenhuma declaração
oficial do governo Trump indicando o que faria o governo americano recuar.
Ao contrário: todas as declarações e postagens no
Twitter indicam mais, mais e mais agravamento. Hoje, Trump já está ameaçando
impor tarifas contra a China em
um valor total que chega a US$ 550 bilhões. O número é tão pitoresco que chega
a ser engraçado: dado que o total de importações oriundas da China foi de
apenas US$
500 bilhões em 2017, tudo indica que Trump simplesmente pegou esse valor e
acrescentou mais US$ 50 bilhões. Inacreditável.
E veja só: o principal conselheiro de Trump para
comércio exterior disse, em uma entrevista
à Fox News (minuto 3:20) que "Eu não creio que algum país no mundo irá
retaliar ...". Adivinha só? Ele estava completamente errado. Mas, ainda assim,
não há nem sinal de recuo. Logo, qual é o real objetivo aqui? Se não há
objetivo, não há uma vitória de verdade.
3.
As tarifas atingiram os insumos e os bens de capital, e não os bens de consumo
Esse é o ponto mais curioso e estranho de todos. Até
o momento, segundo uma pesquisa
do Centre for Economic Policy Research,
o protecionismo está praticamente todo voltado para máquinas, insumos e demais
bens de produção, e não para bens de consumo.
A esmagadora maioria dos casos de protecionismo é
voltada para bens de consumo. Este atual não é. Incríveis 95% das tarifas
aplicadas até o momento incidem sobre bens de capital
e bens
intermediários. São os materiais que as empresas e indústrias americanas
utilizam para fabricar produtos. Agora, elas terão de pagar mais caro, o que
acarreta um encarecimento artificial do seu custo de produção (por isso as
pequenas e médias empresas estão sendo negativamente afetadas, como demonstram
as notícias listadas ao final do item 1).
Este primeiro gráfico mostra a incidência de todas
as tarifas.

O
total de bens atingidos pelas tarifas de Trump
Já este segundo gráfico mostra apenas as tarifas
para a China.

Produtos
da China atingidos pelas tarifas de Trump
São números notáveis. A pergunta, de novo, é: há
alguma estratégia nisso tudo? É realmente difícil ver alguma. Não há nenhuma
indicação de que as tarifas foram criadas para pressionar a China a aceitar
exigências do governo americano, uma vez que ninguém consegue imaginar o que
exatamente Trump quer da China.
A única explicação plausível é que Trump quer que
tudo seja fabricado nos EUA. Ele está tentando inspirar uma readaptação e uma
reorganização de toda a base industrial da economia americana, fazendo com que
ela volte a ter a mesma cara da década de 1970, com indústrias pesadas
utilizando mão-de-obra humana para fazer serviços maçantes, exaustivos e
agravadores da saúde.
Esse tipo de nostalgia esconde um profundo
desconhecimento: no mundo atual, economias baseadas em trabalho industrial
pesado são atrasadas; as economias desenvolvidas são aquelas que se concentram no setor
tecnológico e de serviços. Empregos industriais pesados sempre foram
insalubres e, por isso mesmo, indesejáveis. Quem já esteve lá sabe bem: trabalhar
na indústria é algo totalmente punitivo do ponto de vista da saúde. É um
ambiente maçante e monótono. O trabalhador industrial passa oito horas do dia
fazendo trabalhados repetitivos e extenuantes. É a perfeita caricatura do homem
robotizado. País rico é aquele que já passou desta fase e já a terceirizou
para países mais pobres, os quais, exatamente por ainda não terem o mesmo nível
de riqueza, ainda se submetem a isso.
Colocar tarifas de importação para regredir a economia a este arranjo não é uma
forma de negociação. É simplesmente uma atroz forma de planejamento industrial
baseada no modelo de autarquia — um delírio impossível que, caso concretizado,
levaria a uma profunda queda no padrão de vida dos americanos (atualmente, o maior do mundo).
4.
As desculpas são várias
Uma maneira de diferenciar uma desculpa de uma
justificativa racional está na ladainha.
Você pergunta a uma pessoa: "Por que você não pode
ir à festa?". E aí ela responde: "Ah, eu tenho que fazer minha monografia, meu
cachorro está doente, estou esperando uma ligação da minha mãe, meu carro está
estragado, e parece que vai chover."
Se você começa a ouvir esse tipo de desculpa, você
sabe com certeza que há algo mais por trás de tudo.
O mesmo ocorre com as políticas comerciais de Trump.
As desculpas nunca acabam, e estão sempre mudando: déficit comercial,
desrespeito à propriedade intelectual, perigo à segurança nacional, subsídios
excessivos dados pelos outros países às suas indústrias, manipulação cambial da
China, ou qualquer combinação de todos esses.
Assim como a desculpa para não ir à festa, chega-se
a um ponto em que nada disso é realmente crível. E há também o fato de que
Trump vem defendendo o nacionalismo econômico desde a década de 1980, de modo
que é implausível que estas ações sejam realmente uma resposta a eventos
econômicos atuais. Ao contrário: elas são produto da ideologia.
5.
No final, são os próprios americanos que irão pagar
O governo americano diz que essas tarifas são
impostas aos países estrangeiros. Falso. Por mais poderosos que sejam os EUA,
seu governo não tem como fazer com que China, Canadá, Europa ou México paguem por
alguma coisa.
Tarifas de importação são uma taxa extra que a alfândega
do país em que a mercadoria desembarca acrescenta ao valor final do produto já comprado.
Ou seja, tarifas são pagas por produtores e consumidores do país importador. É um imposto. Pura e simplesmente.
No final, todas essas cinco estranhas características
desta guerra comercial apontam para aquilo que talvez seja a mais assustadora dimensão
de todo este fiasco: é a ideologia quem está alimentando tudo isso. Trump é um
crente no planejamento econômico nacional, o que significa autarquia. Isso permite
que ele seja o CEO do país, administre cada empresa, puna seus inimigos e
premie seus amigos, e faça com que vários de seus admiradores o saúdem como um
grande líder.
Ironicamente, trata-se da clássica tática do "grande
homem" seguidor da velha presunção de Hegel: a de que ele está guiando a
história para a direção correta.
Uma
nota de otimismo
No entanto, para não terminarmos em uma nota muito
depressiva, vamos enfatizar algumas boas notícias.
Por ora, a esmagadora maioria do comércio ainda não foi
afetada, ao menos se tomarmos por base estes
interessantes dados compilados pelo Washington
Post.

Para resumir, os EUA importaram um total de US$ 2,4
trilhões de bens em 2017. Até o momento, na prática, Trump impôs tarifas em
apenas US$ 85 bilhões, o que dá 3,6% do total. No entanto, e aí jaz o perigo,
ele está ameaçando nada menos que US$ 700 bilhões em tarifas adicionais, o que
chegaria a 30% do total de importações.
Ou seja, isso dá uma dimensão do grande estrago que
ainda pode ser feito à economia global.
O cenário de pesadelo é aquele em que Trump impõe tarifas
adicionais, as quais levam os outros países a reagir impondo também mais
tarifas de importação. Trump então se ofende por essa reação e impõe novas
tarifas (a aumenta ainda mais as já existentes), o que desencadeia novas retaliações
de todos os lados. E por aí vai. Se a história nos serve de guia, os prognósticos não são alvissareiros.
Conclusão
No final, tudo isso é a política em sua mais explícita
manifestação: tudo se resume a poder e controle, a centralização e obediência,
e não a prosperidade e grandeza. É a velha glória de mandar.