quinta-feira, 21 jun 2018
Quem viveu o início da década de 1970 no estado de
São Paulo deve se lembrar: ao viajar de carro, você se deparava com imensas
faixas de terra ocupadas por culturas de feijão, café, milho, soja, frutas
cítricas etc. em fazendas a perder de vista. Eram de uma variedade e pujança
incríveis.
E aí, em 1975, surgiu um maciço programa estatal
rotulado "Programa Nacional do Álcool"
ou simplesmente Pró-Álcool.
E tudo mudou.
O programa foi uma iniciativa do governo brasileiro
de intensificar a produção de álcool combustível para substituir a gasolina. A
crise mundial do petróleo, iniciada em 1973, fez com que o preço
do produto ficasse extremamente elevado e passasse a ter grande peso nas
importações do país. Consequentemente, o governo decidiu "impulsionar" a
produção de álcool com o intuito de substituir o uso da gasolina.
Começando em novembro de 1975, o governo passou a oferecer
vários incentivos fiscais e, principalmente, empréstimos bancários — por meio
de seus bancos estatais — a juros abaixo das taxas praticadas pelo mercado
para os produtores de cana de açúcar e para as indústrias automobilísticas que
desenvolvessem carros movidos a álcool.
Na primeira década, o objetivo parecia estar sendo
alcançado: os consumidores passaram a priorizar os automóveis a álcool,
especialmente por poderem abastecer nos fins de semana, o que era vedado para a
gasolina (sim, era
proibido por lei postos abrirem aos fins de semana para vender gasolina).
Adicionalmente, a diferença de preço do litro era
fixa em todo o país, com o álcool
custando 65% da gasolina, o que fazia com que o carro a álcool fosse
artificialmente vantajoso em termos de custo por quilômetro (o álcool rende, em
média, 70% da gasolina; logo, qualquer relação de preço abaixo de 70% é
vantajosa ao uso do álcool).
Como consequência desse incentivo artificial, a
produção de álcool no Brasil disparou:
no período de 1975-76 foi de 600 milhões de litros; no período de 1979-80 foi
de 3,4 bilhões, e chegou ao auge em 1986-87, com 12,3 bilhões de litros.
Quem é do ramo pode confirmar: na década de 1980, as
vendas de carros a álcool dominavam o mercado automobilístico brasileiro. Dos 6.524.014 veículos de
passeio produzidos entre 1980 e 1990, nada menos de 4.614.402 (equivalentes a
70,7%) eram a álcool.
Por causa destes incentivos artificiais concedidos
pelo governo, aconteceu o óbvio: todas aquelas plantações de feijão, café,
milho, soja, frutas cítricas etc. desapareceram e se transformaram em uma
monocultura de cana de açúcar, da qual se extrai o álcool etílico.
Ou seja, houve uma profunda alteração não só na
engenharia dos motores dos carros, como também na paisagem agrícola do país.
Pior: este programa governamental promoveu aquela
inevitável série de problemas: elevação da dívida pública em consequência dos
benefícios concedidos (além das isenções, o governo tinha de pegar emprestado
para poder emprestar, em uma política idêntica à
utilizada pelo BNDES nos governos Lula e Dilma), o aumento dos latifúndios
monocultores, e a consequente elevação
dos preços de alguns gêneros alimentícios, cuja oferta agora era menor, pois
privilegiou-se o plantio da cana de açúcar.
O
fim do Pró-Álcool
Como todo programa dependente de incentivos e
financiamentos estatais, o Pró-Álcool não conseguiu se manter.
Tudo começou a ruir quando o preço internacional do
petróleo começou a cair forte a partir de meados da década de 1980, desabando
nada menos que 66%. Este barateamento do petróleo tornou o álcool combustível
pouco ou nada vantajoso — até pior em alguns casos — tanto para o consumidor
quanto para o produtor.
Para agravar o problema, o preço do açúcar começou a
subir forte no mercado internacional, quadruplicando
de preço entre 1985 e 1990, o que tornou muito mais vantajoso para os
usineiros produzir açúcar em vez do álcool.
Essa combinação de fatores gerou uma consequência
inevitável: houve uma enorme escassez do
produto no segundo semestre de 1989. Simplesmente começou a faltar álcool
nos postos, deixando os donos dos carros literalmente na mão e sem opções.
Essa crise de desabastecimento, em conjunto com o
maior consumo do carro a álcool (que, como dito, rende apenas, em média, 70% da
gasolina) e a menor diferença de preço para a gasolina, gerou uma enorme
descrença generalizada entre os consumidores e as fábricas de automóveis. A
produção de carros a álcool entrou em forte declínio já no início da década de
1990, quando as fabricantes passaram a não mais oferecer modelos novos movidos
a álcool.
No final da década de 1990, o álcool combustível —
também conhecido como álcool hidratado — estava praticamente morto no Brasil.
Havia apenas o álcool anidro, que é o álcool misturado à gasolina, por força de
lei, com o intuito de aumentar sua octanagem, coisa tipicamente
brasileira, tão ruim sempre foi a qualidade da gasolina comum da Petrobras.
Surgem
os "flex"
No entanto, um fenômeno tornou possível a
ressurreição do álcool combustível: o surgimento dos automóveis "flexíveis em
combustíveis", uma criação americana.
A tecnologia foi criada em decorrência tanto da
crescente pressão do estado americano da Califórnia por carros "mais verdes", que
passou a oferecer
vantajosos descontos tributários para os carros que poluíssem menos o
ambiente, quanto por uma questão de segurança nacional, dado que os EUA àquela
altura dependiam em mais de 50% do petróleo do Oriente Médio. As fabricantes de
automóveis nos EUA pensaram primeiro no álcool metílico (metanol), mas os
produtores de milho do Meio-Oeste americano, sob a égide da Coalition For Ethanol (Coalizão pelo
Etanol), fizeram um poderoso lobby e convenceram
governo e indústria a adotarem o etanol em vez do metanol.
Porém, naquele vasto mercado de veículos, as fabricantes
não poderiam simplesmente passar a vender modelos a álcool, pois os
consumidores não teriam como abastecê-los com a mesma facilidade dos carros a
gasolina, cuja oferta era ubíqua no país. Foi então que, em 1993, surgiram os
primeiros carros "flex" por lá, aptos para rodar tanto com álcool quanto com
gasolina ou com sua mistura em qualquer proporção.
A tecnologia chegou ao Brasil apenas em 2003.
E, desde então, os carros flex só fizeram aumentar sua participação no mercado,
chegando
hoje a 80% da frota nacional.
Mas há problemas.
Além
do mercado cativo, há um desperdício inacreditável
Como já dito, no Brasil, um decreto do governo impõe
a mistura de álcool anidro na gasolina. Até antes de 2015, cada litro de
gasolina continha 25% de álcool. Mas a partir de 2015, por determinação do
governo, esse percentual foi elevado
para 27%.
Ou seja, hoje, em um litro, 730 ml são de fato
gasolina e 270 ml são álcool anidro. O Brasil é
o único país do mundo que faz uma mistura nesta proporção de 27%. Nos EUA,
o máximo permitido é de 15%. Na vizinha Argentina, 12%. México, 5,8%. Chile e Canadá, 5%.
Como explicado neste artigo, "no
Brasil, todo proprietário de veículo de passeio, de um simples Corsa até o
Fusion, é obrigado a colocar álcool no seu carro. Trata-se de um dos maiores mercados cativos para um produto do mundo".
Porém, muito além de ser uma reserva de mercado que
garante a farra dos usineiros, as consequências sobre nosso bolso e sobre toda
a economia são ainda piores.
Para isso, façamos um pequeno exercício
demonstrativo. Aqui, irei me basear neste
exemplo fornecido por um dos maiores especialistas brasileiros em
automóveis, Arnaldo Keller, do site Autoentusiastas.
Imagine que há três carros à disposição. Os três são
exatamente iguais e com motores de mesma cilindrada e arquitetura. A única
diferença é o combustível: em um, o motor foi projetado para usar só gasolina;
em outro, só álcool; e no terceiro há o nosso convencional motor "flex", que,
como dito, já representa 80% da nossa frota.
O motor flex aceita qualquer combustível em qualquer
proporção. Porém, não há mágica: o preço desta versatilidade está no desempenho
e na eficiência. Como disse
o engenheiro Sérgio Habib, maior revendedor do país e sócio na implantação da
chinesa JAC, "Motor Flex é igual ao pato: anda, voa e nada — mal".
Voltemos ao exemplo. Suponha que estejamos em um
país livre, de modo que você e eu possamos ir a um posto de combustíveis em que
há total liberdade para comprar gasolina pura (atualmente, isso é proibido pelo
governo, e o dono do posto que o fizer será preso), álcool e "gasolina
brasileira", que é a nossa tupiniquim mistura de 73% de gasolina e 27% de
álcool.
O carro a gasolina pura faz, digamos, 10 quilômetros
por litro. Ato contínuo, você coloca 7,3 litros de gasolina pura no tanque do
seu carro e consegue rodar 73 quilômetros.
Já eu, que sou mais ignorante, opto por abastecer meu
carro de motor flex com 10 litros da
nossa "gasolina brasileira". E saio para rodar. Após trafegar exatos 80
quilômetros, meu carro pára, pois o tanque secou.
Um carro flex com a "gasolina brasileira" — com 27%
de álcool — roda
20% menos (ver também aqui) que outro carro exatamente igual equipado com um motor calibrado
para usar apenas gasolina pura.
Então, recapitulando: você colocou em seu carro de
motor a gasolina 7,3 litros de gasolina pura e rodou 73 quilômetros. Eu
coloquei em meu carro flex 10 litros de "gasolina brasileira" e rodei 80
quilômetros.
Coloquei 2,7 litros a mais que você e rodei apenas 7
quilômetros a mais que você.
Assim, você tem de rodar apenas mais 7 quilômetros
para me alcançar. Ato contínuo, para que você percorra mais 7 quilômetros e me
alcance, você decide usar um carro a álcool que você encontrou ali parado (sim,
me ajude nessa).
Para isso, basta você colocar um litro de álcool,
pois o álcool, tendo um poder calorífico que é 70% do poder da gasolina,
produzirá energia suficiente para rodar 70% do que um a gasolina pura roda.
Portanto, se o carro a gasolina pura faz 10 km/l, o a álcool faz 7 km/l.
E aí você me alcançou.
Resultado final: você gastou ao todo 7,3 litros de
gasolina pura e mais 1 litro de álcool para rodar 80 quilômetros. Já eu gastei
10 litros de "gasolina brasileira" para rodar estes mesmos 80 quilômetros.
Só que, considerando que em 10 litros de "gasolina
brasileira" há 7,3 litros de gasolina pura e mais 2,7 litros de álcool, isso
significa que eu gastei tanta gasolina pura quanto você (7,3 litros). Porém,
você gastou apenas 1 litro de álcool. Já eu gastei 2,7 litros de álcool, o que
significa que eu gastei 1,7 litro de
álcool a mais que você.
Ou seja: nós dois rodamos a mesma distância, mas eu,
com meu carro flex e minha "gasolina brasileira", gastei 1,7 litro de álcool a
mais que você.
Apenas para rodar este módico percurso de 80
quilômetros, 1,7 litro de álcool foi
literalmente jogado fora. E isso não é pouco.
Se, de cada 2,7 litros, 1,7 litro é desperdiçado,
temos que 63% do álcool contido em nossa "gasolina brasileira" usada em um
carro flex é jogado fora. O volume desperdiçado
simplesmente supera o volume aproveitado.
E daí? E daí que, como bem observou o articulista, desperdiçar
63% de álcool é desperdiçar 63% das terras em que a cana foi plantada para produzir álcool; é jogar
fora 63% de todo o trabalho envolvido na produção do álcool (de 1 tonelada da
cana só saem 100 litros de álcool); é jogar fora investimentos e mão-de-obra.
Acima de tudo: há um enorme custo de oportunidade. Em vez de terras plantando café, feijão,
milho, soja e frutas cítricas, há o plantio de um produto (cana de açúcar) cuja
produção será desperdiçada em 63%. Pense nos alimentos que deixaram de ser
produzidos. Pense em quão mais baratos seriam os alimentos caso houvesse essa
maior oferta.
Por causa de um intervencionismo estatal, há um
excesso de produção de um produto que será ineficientemente usado, e uma
subprodução de vários outros produtos cruciais.
Ganham os usineiros beneficiados por essa lei; perde
toda a população.
Conclusão
Frédéric Bastiat já alertava: em economia,
mais importante do que aquilo que se vê é aquilo que não se vê. Você vê toda a
cadeia da produção de álcool sendo estimulada. Mas você não vê o desperdício. Você
não vê a ineficiência. E muito menos vê os alimentos que deixaram de ser
produzidos para dar lugar à plantação da cana de açúcar, plantio este que só ocorre
em seu atual volume por causa de um intervencionismo estatal, que torna a
atividade mais lucrativa do que seria normalmente.
Como concluiu Arnaldo Keller: se o Brasil fosse um
país livre, se o governo e a Petrobrás nos respeitassem, eles teriam muitas explicações
a nos dar. A pergunta que fica é: quem é que vai tirar o dedo desses caras da
descarga para onde mandam o nosso combustível e o nosso dinheiro?