terça-feira, 15 0aio 2018
"Neste campo da Política/
Onde a Guarda nos mantém,/ Falo, responde a Censura/ Olho, mas não vejo bem."
Esses versos compõem uma
quadra que se repete ao longo do poema "Fado da Censura", de 1927, assinado por
Fernando Pessoa, um dos grandes nomes da literatura de língua portuguesa.
Como diria o poeta, "um poema não é
mais que uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio"[1].
O objetivo desse breve
artigo é, pois, desvendar a anatomia do esqueleto por trás de suas obras de
cunho político, na tentativa de resolver um enigma complexo e, por vezes,
contraditório. Nas palavras de J. A. Seabra, "poética e política — mesmo sendo
opostas — coincidem".
O primeiro desafio: democracia e monarquia
O primeiro desafio desta tarefa
está no caráter multifacetado de sua literatura. Pessoa é famoso por ter criado
seus heterônimos, com formas de pensamento, princípios e valores próprios, além
de uma quantidade ainda hoje indeterminada de personas literárias. Apesar de
jogar com diferentes máscaras, sua obra ortônima é extensa, e seus escritos são
de fácil acesso.
Aqui destaco
especialmente a coletânea de textos Fernando Pessoa — Sobre o Fascismo, a Ditadura
Militar e Salazar, organizada pelo historiador econômico e
social José Barreto, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa. Além disso, existe um rico conteúdo a ser explorado,
também, na visão de seu semi-heterônimo, Bernardo Soares, que assina as inacabadas
semi-memórias do Livro do
Desassossego, onde encontramos grandes pistas, como esta:
"Se alguma coisa odeio, é um reformador. Um reformador é um homem que vê
os males superficiais do mundo e se propõe curá-los agravando os fundamentais
[…]." (F. Pessoa, O Livro do Desassossego)
Sua literatura é escrita durante um
período em que Portugal está vivendo seu próprio desassossego. Pessoa nasceu em
1888 e morreu em 1935. Assistiu de perto ao fim da monarquia liberal no ano de
1910, ao surgimento da república democrática que acaba em 1926 e, finalmente, à
instauração da nova ditadura militar e do Estado Novo em 1933. O desassossego
é, para Pessoa, um desassossego total: social e literário, político e moral (cf.Morodo, 1997).
Durante todo esse contexto, seus
ensaios políticos fazem críticas contundentes à democracia moderna,
demonstrando claro descontentamento já pela Primeira República. Na visão do
poeta, a democracia seria "a tentativa de aplicar um regime municipal a uma
nação inteira, e vale e tem valido na proporção, e só na proporção em que
promove ou promoveu o individualismo."[2].
Sua crítica evolui no
sentido de desqualificar o rito eleitoral, pois eleições "nunca trarão um
retrato fiel da opinião política de um país"[3].
Demonstra ainda mais ceticismo em
relação à disputa pelo poder, argumentando que "as qualidades mentais e morais
necessárias para a conquista do poder político, ou tendentes a essa conquista,
são inteiramente diferentes daquelas necessárias para governar o Estado".[4]
Já nessa época, desconfia
ainda dos fundos partidários, cujos financiadores eram mantidos em segredo,
afirmando que, mesmo onde haja sufrágio universal, quem domina são minorias
organizadas. O escritor diagnostica que a guerra política, como toda guerra,
assenta em duas bases — dinheiro e segredo.
Em contraste com o sistema de
governo democrático, Fernando Pessoa o ortônimo — e em que medida não
será, também ele, uma criação literária como os heterônimos é matéria para os
críticos literários até hoje — sustentava os modelos de república aristocrática
e monarquia absoluta
como sendo superiores, tendo a consciência de que esse último estaria fora de
época. Sua famosa "nota autobiográfica" de 30 de março de 1935, datilografada e
assinada por ele, complementa:
"Ideologia política: Considera que o sistema monárquico seria o mais
próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao
mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver
um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República.
Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservadorismo, e
absolutamente antireacionário." (F. Pessoa, Nota autobiográfica)
Do estatismo ao liberalismo
Antes de uma estruturação
ideológica clara e coerente, opiniões contraditórias foram apresentadas em seu
pensamento político, chegando a publicar uma defesa e justificação da ditadura
militar, intitulada O
Interregno. Nesse opúsculo, deixa claro que essa ditadura deveria ser
transitória, e reprova a ditadura do tirano Salazar. Assim como identificado
pelo historiador José Barreto, em 1933 e 1935, Pessoa privadamente repudia
algumas das ideias expostas e considera esse texto como "não escrito"[5] ou "não existente"[6].
O caso ressalta a necessidade de
enfatizar os escritos de uma fase mais madura, na qual Pessoa já pode ser
considerado tão poeta quanto filósofo. Nesta fase, sua formação política,
filosófica e cultural inglesa se sobrepõe à tendência autoritária. Floresce
cada vez mais seu individualismo e racionalismo, influenciado pelo contato com
a obra de John Mackinnon Robertson e, sobretudo, de Herbert Spencer, cuja obra O Indivíduo contra o Estado constava
na biblioteca do escritor. Nenhum outro pensador do século XIX parece ter
influenciado Pessoa de forma tão visível quanto Spencer (J. Barreto, 2007).
Desde muito cedo, apresenta ideias
que o fazem um expoente muito singular em criticar tanto o bolchevismo, quanto
o fascismo e o hitlerismo, afirmando que eram a "tripla prole do Anti-Cristo"[7]. Sobretudo, considera sua
posição social "anti-comunista" e "anti-socialista"[8]. Define o comunismo como
"um corporativismo no qual o Estado é a única corporação"[9].
"Sovietes, comunismo, fascismo, nacional-socialismo — tudo isso é o
mesmo fato, o predomínio da espécie, isto é, dos baixos instintos, que são de
todos, contra a inteligência, que é do indivíduo só."[10]
A defesa pessoana do capitalismo
livre e seu anti-estatismo se tornam constantes. Essas posições econômicas são bem
mostradas em A
Economia em Pessoa (2007), livro
organizado por Gustavo Franco, que não disfarça seu prazer pelas posturas
anti-regulatória e favorável ao livre mercado. O livro reúne textos do escritor
publicados na Revista de
Contabilidade e Comércio, nos quais ele aborda temas como
privatização, globalização, marketing,
governança corporativa, entre outros.
Dois acontecimentos políticos
importantes em sua última etapa (a intensificação da Censura e a criação da lei
de extinção da Maçonaria) permitirão ver as atitudes ideológicas e, assim, o
enigma, politicamente, tende a clarificar-se. Nesse contexto, a impetuosidade
com a qual repudia o autoritarismo acompanha a publicação de uma série de
poesias satíricas contra Salazar e seu regime, sendo a primeira obra o poema
"Liberdade"[11],
cujos versos finais foram censurados pela alusão a Salazar, ex ministro das
Finanças. "O mais do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/
Nem consta que tivesse biblioteca…".
Brunello de Cusatis, pesquisador
italiano e profundo conhecedor da obra de Pessoa, chega à conclusão de que
Pessoa de fato não mantinha qualquer afinidade pela ditadura salazarista,
advogando a não intervenção estatal na vida do indivíduo.
O poeta e filósofo chega
a afirmar que "Todo governo é, inevitavelmente, contra a nação, e será tanto
mais contra a nação quanto mais energético e forte for o homem de governo"[12].
Nessa mesma linha,
Barreto aproxima os escritos de Pessoa das ideias apresentadas posteriormente
na década de 1940 por Friedrich Hayek, pelos seus seguidores liberais do
chamado movimento libertário.
"A sociedade governar-se-ia espontaneamente e
a si própria, se não contivesse gente de sensibilidade e de inteligência.
Acreditem que é a única coisa que a prejudica. […] Pena é que a expulsão dos
superiores da sociedade resultaria em eles morrerem, porque não sabem
trabalhar. […] Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único dever dos
superiores é reduzirem ao mínimo a sua participação na vida da tribo." (F.
Pessoa, O Livro do Desassossego)
Citado por muitos, a definição mais
precisa para categorizar esse pensamento político é a de Raúl Morodo. No fundo,
Fernando Pessoa era "um anarquista utópico de direita".
"O que quer o anarquista? Liberdade — a liberdade para si e para os
outros, para a humanidade inteira. Quer estar livre das influências ou da
pressão das ficções sociais; quer ser livre tal qual nasceu e pareceu no mundo,
que é como em justiça deve ser; e quer essa liberdade para si e para todos os
mais.
Nem todos podem ser iguais perante a Natureza: uns nascem
altos, outros baixos; uns fortes, outros fracos; uns mais inteligentes, outros
menos… Mas todos podem ser iguais de aí em diante; só as ficções sociais o evitam. Essas
ficções sociais é que era preciso destruir." (F. Pessoa, O Banqueiro Anarquista).
Artigo originalmente
publicado no jornal O Estado de S. Paulo
[1]
F. Pessoa, Textos de Crítica e de Intervenção. Publicado pela
primeira vez em "Fama", no 1, em novembro de 1932.
[2] Trecho
de manuscrito à tinta no rosto e verso de um pedaço de papel. Datável de 1923
ou anos seguintes. Publicado pela primeira vez em "Fernando Pessoa – Sobre o
Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, de José Barreto (2015).
[3] Trecho
de um texto de quatro páginas em francês. Datável 1933, como identificado por
José Barreto. Publicado pela primeira vez em "Fernando Pessoa – Sobre o
Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, de José Barreto (2015).
[4] Trecho
de dactiloscrito de quatro páginas numeradas sem título. Escrito entre 1933 e
1934. Publicado pela primeira vez em 1979.
[5] Trecho
de texto inacabado. Escrito em 1933. Publicado pela primeira vez em 1979.
[6] Trecho
de dactiloscrito de 1935. Publicado parcialmente em 1940 e integralmente em
1985.
[7] Trecho
de carta de 1934 que não teria sido publicada pelo jornal A Voz. Revelada por
Lobes, em 1993.
[8] Termos
usados pelo escritor em sua nota autobiográfica. Escrita em 1935, foi publicada
parcialmente em 1940 e, integralmente, por Lourenço et al. em 1985.
[9] Trecho
de uma folha de bloco picotado dactilografada na frente e verso. Datável dos
anos 1920. Publicado pela primeira vez em "Fernando Pessoa – Sobre o Fascismo,
a Ditadura Militar e Salazar, de José Barreto (2015).
[10] Trecho
de uma página dactilografada entre 1932 e 1935. Publicado pela primeira vez em
"Fernando Pessoa – Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, de José
Barreto (2015).
[11] Cópia
original datada de 16 de março de 1935. Nesse ano, foi censurado e publicado
apenas em 11 de setembro de 1937 na revista Seara Nova no 526.
[12] Trecho
de uma página dactilografada nos anos 1930. Publicado pela primeira vez em
"Fernando Pessoa – Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, de José
Barreto (2015).