Nota do editor
Este artigo foi originalmente publicado no início de abril de 2018. Com as recentes reviravoltas eleitorais, políticas e judiciárias, será interessante conferir se haverá algum ataque ao Mecanismo e, principalmente, qual será a resistência que ele oferecerá.
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Em
fevereiro de 2017, o cineasta José Padilha escreveu um artigo
para O Globo explicando como funciona
aquilo que ele rotulou de "Mecanismo".
Alguns
pontos valem ser destacados:
* Na base do sistema político
brasileiro opera um mecanismo de exploração da sociedade por quadrilhas
formadas por fornecedores do estado e grandes partidos políticos.
* O mecanismo opera em todas as
esferas do setor público: no legislativo, no executivo, no governo federal, nos
estados e nos municípios.
* No executivo, ele opera via o
superfaturamento de obras e de serviços prestados ao estado e a empresas
estatais.
* No legislativo, ele opera via formulação
de legislações que dão vantagens indevidas a grupos empresariais dispostos a
pagar por elas.
* A administração pública
brasileira se constitui a partir de acordos relativos à repartição dos recursos
desviados pelo mecanismo. Um político que chega ao poder pode fazer
mudanças administrativas no país, mas somente quando estas mudanças não colocam
em cheque o funcionamento do mecanismo.
* A eficiência e a transparência
estão em contradição com o mecanismo.
* Resulta daí que, na vigência do
mecanismo, o estado brasileiro jamais poderá ser eficiente no controle dos
gastos públicos.
* As políticas econômicas e as
práticas administrativas que levam ao crescimento econômico sustentável são
incompatíveis com o mecanismo, o qual tende a gerar um estado cronicamente
deficitário.
* Embora o mecanismo não possa
conviver com um estado eficiente, ele também não pode deixar o estado falir. Se
o estado falir o mecanismo morre.
* A combinação destes dois fatores
faz com que a economia brasileira tenha períodos de crescimento baixo,
seguidos de crise fiscal, seguidos de ajustes que visam a conter os gastos públicos,
seguidos de novos períodos de crescimento baixo, seguidos de nova crise fiscal.
Tudo
isso está correto e o autor merece aplausos por saber identificar o problema.
No
entanto, Padilha, talvez por querer posar de isento, comete um erro básico e crucial.
Segundo ele:
* O mecanismo existe à revelia da
ideologia.
* O mecanismo viabilizou a eleição
de todos os governos brasileiros desde a retomada das eleições diretas, sejam
eles de esquerda ou de direita (PMDB, DEM, PSDB e PT).
* No sistema político brasileiro, a
ideologia está limitada pelo mecanismo: ela pode balizar políticas públicas,
mas somente quando estas políticas não interferem com o funcionamento do
mecanismo.
Eis
o erro de Padilha: o Mecanismo não existe à revelia da ideologia. Muito pelo
contrário: o que possibilita a existência e a robustez do Mecanismo é
exatamente a ideologia.
E
que ideologia é esta?
Foi
Nivaldo Cordeiro quem explicou
da maneira mais direta:
O Mecanismo é real e existe porque
o Brasil nas últimas décadas se permitiu os experimentos esquerdistas os mais
funestos. E sua característica fundamental é adotar o modus operandi fascista,
qual seja, de concentrar o poder político e econômico nas mãos de quem controla
o Estado.
A elevação avassaladora da carga
tributária é a expressão desse mecanismo e, para sobreviver, toda a gente
precisa ter um "negócio" com o Estado, seja um emprego, uma aposentadoria, um
contrato de serviços ou fornecimento, um depósito bancário.
Tudo depende do Estado e é por ele
intermediado. Nada existe fora do Estado. [...]
A grande massa de tributos
arrecadados garante que a subsistência de cada um dependa da boa vontade da
burocracia e da "vontade política". Só é possível enriquecer e manter-se rico
quem tem acesso ao grande 'excedente' retido nas mãos do Estado.[...]
E
continua:
O Mecanismo existe e é
retroalimentado pela ideologia "inclusiva". Todo o discurso de esquerda é uma
promessa para que toda a gente seja incluída como sócia do Tesouro, um absurdo
lógico, pois aí não existiria pagador em última instância, uma mentira
econômica. O Estado é apenas o instrumento repartidor da renda, não gerador.
Para alguém receber algo, alguém tem que pagar.
Nada fora do Estado, é essa a
lógica do sistema.
Perfeita
a constatação.
O
Mecanismo só existe porque há uma ideologia explícita que o sustenta: a defesa
de um estado grande, onipresente, intervencionista, ultra-regulador, que em tudo
intervém e de todos cuida.
Estado
corporativista, protecionista, que tudo abrange e a tudo controla é exatamente
a ideologia por trás do Mecanismo.
A
lógica é direta: enquanto houver, de um lado, um governo grande, com um farto
orçamento público repleto de emendas e brechas, sempre haverá, do outro lado,
grupos de interesse poderosos e bem organizados, que irão se beneficiar deste
orçamento público.
Mais:
esses grupos terão todo o interesse em fazer com que este orçamento cresça cada
vez mais, pois são os beneficiários diretos deste aumento dos gastos.
E
quem realmente bancará todos esses gastos do governo que irão privilegiar os
grupos de interesse são os pagadores de impostos.
Os incentivos do Mecanismo
O
óbvio sempre deve ser repetido: o principal motivo para se fazer lobby junto a
um estado inchado é a elevada recompensa que isto traz. Quanto maior for o
governo, quanto maiores forem seus gastos, maior será o bolo a ser repartido. (No
Brasil, como mostra este
gráfico, o gasto público nas três esferas de governo chegou a estar em 10%
do PIB na década de 1920, e fechou em 43%
do PIB em 2016.)
Esta é a prática conhecida como rent seeking
(ou "busca pela renda"): é a atividade de conquistar privilégios e
benefícios não pelo mercado, mas pela influência política. Na prática, é a
captura das instituições regulatórias, de políticos e de burocratas com o
objetivo de obter privilégios em prol de grupos interesses.
Os
privilégios variam. As mais prosaicas e corriqueiras são crédito subsidiado,
patrocínios estatais, tarifas de importação que as protegem contra concorrentes
estrangeiros, agências
reguladoras que cartelizam o mercado e dificultam a entrada de novos
concorrentes, e regulamentações
profissionais que aumentam a barreira de entrada de novos concorrentes.
No
entanto, a modalidade de rent-seeking
que atingiu o estado da arte no Brasil é a dos contratos superfaturados.
Neste
arranjo, empreiteiras pagam propina a políticos e burocratas que estão no
comando de estatais e ministérios para que elas sejam as escolhidas em licitações
de obras. Ato contínuo, esses políticos e burocratas subornados escolhem essa
empreiteira. No final, em troca da propina, a empreiteira faz uma obra
superfaturada, a qual será pago pelos impostos da população trabalhadora.
Empresa, burocratas e políticos ganharam, e a população trabalhadora perdeu.
Em
todos os casos de rent-seeking, ocorre
o mesmo padrão: um estado grande sempre acaba se convertendo em um instrumento
de redistribuição de riqueza. A riqueza é confiscada dos grupos sociais
desorganizados (os pagadores de impostos) e direcionada para os grupos sociais
organizados (lobbies, grupos de interesse e grandes empresários com conexões
políticas).
A
crescente concentração de poder nas mãos do estado faz com que este se converta
em um instrumento muito apetitoso para todos aqueles que saibam como manuseá-lo
para seu benefício privado.
Lobistas
e grupos de interesse são a consequência natural de um estado agigantado e com
gastos crescentes. E são também a essência do Mecanismo.
Mas
não só.
Os
cinco elementos do Mecanismo
No
Brasil, o Mecanismo é composto majoritariamente por cinco classes principais:
os grandes empresários que querem reserva de mercado, subsídios e nenhuma
concorrência; as empreiteiras que querem se fartar em dinheiro de impostos por
meio de obras públicas; os sindicatos que se opõem à produtividade; os
reguladores e burocratas que impingem as legislações; e os políticos que visam
apenas ao curto prazo.
Estes
são os cinco grupos de poder que formam o Mecanismo.
Sempre
que se cria um ambiente de relações estreitas entre, de um lado, os membros do
governo (políticos, burocratas e reguladores) e, de outro, grupos de interesse
política e economicamente favorecidos pelo governo (empresários
anti-concorrência, empreiteiras de olho em obras públicas, e sindicatos),
ocorre um fenômeno inevitável: todas as relações políticas passam a ser
pautadas pelo famoso lema do "quem quer rir tem de fazer rir".
Para
que políticos, burocratas e reguladores favoreçam grupos de interesse, estes
têm de dar agrados em troca. Ao exigir agrados, os agentes do governo estão apenas
exigindo sua fatia do bolo: já que o governo está utilizando dinheiro de
impostos para beneficiar grupos de interesse, então os agentes do governo que
supervisionam esse processo também querem se dar bem nesse arranjo. E aí cobram
seus "agrados".
Estes
agrados normalmente se dão na forma de malas de dinheiro, dinheiro em
offshores, doação de imóveis, reformas de apartamentos e sítios, doações de
campanha etc.
E
assim o Mecanismo se mantém.
A
Lava-Jato nada mais foi do que a revelação dessa associação entre, de um lado,
as grandes empreiteiras e os grandes grupos empresariais e,
de outro, os integrantes de toda a esfera regulatória do estado: o que envolve
desde burocratas de secretarias até membros do governo executivo (inclusive a presidência
da república), passando pelos integrantes do parlamento, legisladores,
integrantes da magistratura, partidos políticos, e órgãos de fiscalização e
polícia.
Para acabar com o Mecanismo
O
Mecanismo, no final, é simplesmente uma atitude lógica adotado por grupos de
interesse bem organizados e com grande poder de lobby: tentar cooptar os
governantes para que implantem políticas públicas em seu benefício.
Enquanto
a mentalidade dominante no Brasil for a da defesa de um estado agigantado e
onipresente, que em tudo intervém e de todos cuida, o Mecanismo permanecerá robusto.
Só
há uma única maneira de abolir, em definitivo, o Mecanismo e toda a corrupção,
os grupos de interesse e os lobbies empresariais que ele fomenta: reduzir ao
máximo o tamanho do estado, limitando enormemente (ou até mesmo eliminando) a
autoridade política que socialmente concedemos e reconhecemos ao estado. Se o estado
perde seu poder de conceder privilégios àqueles grupos que o capturam, estes
não irão adquirir autoridade política para obter privilégios à custa da
sociedade. Nenhum empresário ou sindicato pode comprar favores de um
burocrata que não tenha favores para vender.
A
defesa de um estado grande, intervencionista e ultra-regulador é a ideologia
que sustenta o Mecanismo.