quarta-feira, 14 mar 2018
Além da "segurança nacional", uma
das razões fornecidas por Donald Trump para impor novas tarifas de importação
ao aço e ao alumínio é que esse protecionismo, ao garantir uma reserva de
mercado, irá criar empregos industriais e, consequentemente, gerar um aumento
da renda e o padrão de vida da população americana.
Essa falácia já foi devidamente refutada aqui, mas vamos voltar
a ela pelo bem do debate.
Trump está se apoiando em um mito que, por algum
motivo misterioso, se recusa a morrer: a ideia de que uma redução na quantidade
de mão-de-obra empregada na indústria resulta em queda no padrão de vida como
um todo.
Para começar, o que sempre é ignorado nesta ideia é
que o emprego industrial, em relação à população geral, caiu significativamente
desde o fim da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1960. E, ainda
assim, durante este período, a
renda média real dos americanos aumentou.
O gráfico abaixo mostra a evolução da renda média
real das famílias americanas (linha azul, coluna da direita) versus a
quantidade de pessoas empregadas na indústria em relação à população geral
(barras azuis, coluna da esquerda).

Gráfico
1: Evolução da renda média real das famílias americanas (linha azul, coluna da
direita) versus a quantidade de pessoas empregada na indústria em relação à
população geral (barras azuis, coluna da esquerda)
A renda permaneceu relativamente estagnada durante a
década de 1970, mas voltou a crescer substantivamente nas décadas de 1980 e
1990. E, obviamente, durante as décadas de 80 e 90, os empregos industriais mantiveram seu acentuado declínio.
Em outras palavras, simplesmente não está nada claro
que uma redução no emprego industrial gera uma redução na renda real média ou
mesmo uma redução no padrão de vida.
Por outro lado, é verdade que apenas apontar algumas
correlações — ou, no caso, a ausência delas — nos dados não necessariamente
prova que empregos industriais não possuem absolutamente nenhuma conexão com a
renda e com a riqueza. Para entender isso, é necessária uma sólida teoria
econômica. E a sólida teoria econômica é cristalina: impostos maiores — isto
é, tarifas de importação mais altas — representam custos de produção maiores
para as indústrias que utilizam aço e alumino como insumos (a esmagadora maioria
das indústrias americanas), e isso, por definição, não tem como ser a solução
para o crescimento econômico.
Mas tudo isso ainda é o de menos.
Empregos
ou produção?
Quando se fala sobre empregos na indústria, é
importante observar que quase nunca se menciona o que realmente interessa, que
é a produção industrial.
É a produção industrial o que realmente determina a
renda real e o padrão de vida das pessoas. Maior produção significa maior
oferta de produtos, o que pressiona os preços para baixo — ou, no caso, impede
que eles subam.
Logo, maior oferta de produtos a preços contidos
significa aumento da renda real da
população consumidora ao longo do tempo.
Adicionalmente, maior produtividade necessariamente
implica maiores salários para os trabalhadores dessa indústria. É exatamente a
produtividade o que permite aumentos salariais.
Portanto, maior produtividade beneficia tanto os
trabalhadores da indústria quanto toda a população consumidora.
Dito isso, é inteiramente possível que a produção industrial aumente ao mesmo tempo
em que os empregos industriais estão em queda.
Isso, aliás, deveria ser óbvio para qualquer um que
conheça a história da evolução da agricultura. No século XVIII, praticamente
toda a população estava envolvida na produção de produtos agrícolas.
Atualmente, apenas uma ínfima quantidade da população trabalha no campo. Ao
mesmo tempo, a produção agrícola é hoje várias vezes maior
do que era nos séculos XVIII, XIX e até mesmo em meados do século XX.
Similarmente, se olharmos para a produção
industrial, as indústrias americanas produzem muito mais hoje do que produziam
em meados do século XX, o qual sempre é relembrado como "os bons velhos tempos"
do emprego industrial nos EUA.
O gráfico a seguir mostra a evolução da produção
industrial americana (barras marrons, coluna da esquerda) versus a quantidade
de pessoas empregadas na indústria em relação à população geral (linha preta,
coluna da direita).

Gráfico
2: Evolução da produção industrial (barras marrons, coluna da esquerda) versus
a quantidade de pessoas empregadas na indústria em relação à população geral
(linha preta, coluna da direita)
Em 1953, 10% da população americana trabalhava na
indústria. Atualmente, 4%. Isso representa uma queda de 60%. (Já em termos de números absolutos,
em 1979, que foi o pico do emprego industrial, havia 19,5 milhões de pessoas
trabalhando na indústria americana; atualmente, há 12,5 milhões — queda de 36%
no emprego industrial)
Neste mesmo período, o índice da produção subiu de
20 para 103. Aumento de 415%.
Em outras palavras, graças aos ganhos em
produtividade, são necessários muito menos trabalhadores para fabricar muito
mais produtos.
Da perspectiva econômica, dificilmente pode haver uma
relação melhor. A indústria americana quintuplicou sua produção utilizando 60%
menos mão-de-obra no universo da população. Criar mais valor utilizando menos
mão-de-obra significa que a indústria é hoje muito mais eficiente ou —
utilizando outras palavras — bem mais produtiva do que jamais foi.
Este impressionante ganho de produtividade possui
várias fontes, as quais se manifestam principalmente na forma de avanços
tecnológicas em áreas como software, robótica e comunicação. Graças à automação
e a outras melhorias na produtividade, hoje são necessárias bem menos pessoas
para fabricar mais produtos.
A globalização e a transferência de processos
produtivos mais primários para outros países também tiveram grande importância,
uma vez que elas permitem aos trabalhadores americanos um maior grau de
especialização naqueles setores em que sua vantagem produtiva é maior.
Com efeito, o contínuo crescimento da produção industrial —
a qual inclui também mineração
e energia — mostra que a ideia de que "os EUA não mais fabricam coisas" é
simplesmente mentira. As indústrias americanas estão produzindo mais bens, e
bens de maior valor agregado, do que faziam no passado. A diferença é que cada
vez menos humanos são necessários para fabricar esses bens.
Logo, dizer que há "uma crise na indústria americana"
ou até mesmo uma "nefasta desindustrialização" é algo não comprovado pelos
dados.
E
a renda real?
Maior produção por pessoa significa, como já dito,
mais produtividade e produtos menos caros. Isso, por sua vez, gera aumentos
salariais reais.
No entanto, como mostra a linha do Gráfico 1, houve
um problema com a renda real dos americanos após 2001. De 2001 a 2015, a renda
real parece ter ficado estagnada. Foi só nos últimos dois ou três anos que ela
finalmente voltou a subir e ultrapassar o valor que havia alcançado em 2007,
antes da crise
financeira mundial. Foram necessários mais de oito anos para que a renda se
recuperasse e voltasse ao nível pré-crise.
De um lado, seria extremamente simplista olhar para
esse dado e concluir que a solução está em estimular artificialmente o emprego
no setor industrial. Mesmo porque impor tarifas de importação sobre o aço e o
alumínio irá resultar em um aumento no custo de se empreender nos EUA, ao mesmo
tempo em que elevará o custo de vida e, consequentemente, reduzir a renda média.
Ao elevar artificialmente os preços do aço e do
alumínio, o governo americano está encarecendo o custo de uma matéria-prima
utilizada pela maior parte das indústrias americanas, afetando a produtividade
delas. Já a quantidade de indústrias que se beneficiam desta tarifa é ínfima.
Como explicado aqui:
A
esmagadora maioria dos trabalhadores está empregada em indústrias que se
beneficiam de aço e alumínio baratos: há aproximadamente 200.000
de trabalhadores nas indústrias de aço e alumínio. E há nada menos
que 6,5
milhões de trabalhadores nas indústrias que utilizam aço e alumínio como
matéria-prima para seus produtos — empresas que fabricam de tudo, desde
caminhões, automóveis e maquinários pesados até latas de cerveja e aramados
para galinheiro.
Essas
empresas terão de arcar com preços maiores para suas matérias-primas, o que
obviamente afetará sua lucratividade e, consequentemente, o próprio emprego de
seus trabalhadores.
Por isso, as tarifas irão muito mais prejudicar do
que ajudar no aumento da renda real.
Mas agora vem o principal: é fácil comprovar que, na
prática, houve um aumento nos salários reais dos americanos.
Nas últimas décadas, por exemplo, os benefícios não-salariais dos americanos explodiram.
Hoje, eles recebem vários tipos de auxílios para deslocamento e para
realocação, recebem planos de saúde pagos pelo empregador, recebem cobertura
odontológica e oftalmológica, recebem cuidados médicos que também se estendem a
seus filhos, possuem participação em generosos fundos de pensão, e recebem do
empregador seguro de vida corporativo (há empregadores que pagam as creches dos
funcionários). Há também férias pagas e o direito de se faltar ao trabalho 6
vezes ao ano sem ser descontado. Há lojas que dão desconto a funcionários de
determinadas empresas. Tudo isso chega, no mínimo, a 40% do salário do indivíduo
(fonte aqui).
Adicionalmente, no geral, os preços de vários bens
de consumo importantes desabaram. Coisas como fogão, geladeira, televisão e
todos os tipos de sistemas de entretenimento doméstico, lava-louças,
churrasqueiras, microondas, forno elétrico, panelas especiais, torradeiras,
esteiras de ginástica, aspiradores de pó etc. ficaram 76%
mais baratos, em média.
Já os preços de vários utensílios domésticos caíram
81% entre 1960 e 2013 em termos de horas de trabalho necessárias para
comprar esses itens.
Ou seja, os benefícios não-salariais (não computados
nas estatísticas) dos trabalhadores aumentaram 40% e os preços nominais caíram entre
76% e 81%.
Para completar, adicione a tudo isso a recente
explosão na oferta de comodidades
gratuitas ou a preços irrisórios (e que também não entram nas estatísticas),
e não haverá como negar que tudo isso representou um substantivo aumento real dos salários, maior do que o
capturado nas estatísticas. Graças não só ao estrondoso aumento na
produção industrial, mas também à globalização e ao empreendedorismo.
Conclusão
Argumentar que "os EUA não produzem mais nada" e que
o país "só perde na questão do comércio exterior" representa uma grave
distorção da realidade.
Ainda pior é querer "corrigir" um problema
inexistente com a imposição de tarifas de importação, as quais irão apenas
debilitar a própria
indústria e, aí sim, reduzir a renda real das pessoas.
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