quarta-feira, 23 0aio 2018
Nota: Artigo originalmente publicado no dia 21 de fevereiro de 2018
Uma preocupação do governo federal recentemente anunciada gerou reações sarcásticas em
profusão nos cidadãos que receberam a notícia:

Os comentários irônicos seguiram todos na mesma
linha: "Não me diga!"; "Só indícios?"; "Descobriu a América!" — tudo no
sentido de fazer galhofa com a epifania dos órgãos públicos diante de algo que
não seria novidade para ninguém.
De fato, é notório que o preço dos derivados do
petróleo em nosso país varia muito pouco dentro da mesma unidade geográfica.
Mais: os reajustes costumam ser aplicados de forma síncrona.
Tudo isso, inevitavelmente, induz o brasileiro médio
a apressadamente concluir que tais fenômenos — ínfima diferença de preços e
reajustes simultâneos — só ocorrem porque os proprietários dos postos burlam o
sistema de concorrência e fazem um cartel entre eles, tabelando os valores a serem
cobrados. Tal arranjo ímprobo entre eles ocorre, obviamente, em prejuízo aos
consumidores.
O que nos leva à seguinte elucubração: ora, se esses
comerciantes conseguem garantir maiores faturamentos por meio deste expediente
(combinando preços), é de se imaginar que assim procedam também, por exemplo,
os donos de padarias, mercados, armazéns e restaurantes — enfim, todos aqueles
que comercializam produtos similares dentro do ramo alimentício. Correto?
Discordar desta hipótese equivaleria a afirmar que,
por uma inexplicável coincidência, os empresários daquela atividade econômica
em especial costumam ser menos honestos que todos os demais. Será que o odor de
benzeno nos estabelecimentos onde abastecemos o carro perturba a moral dos
indivíduos?
O que impediria quaisquer empreendedores de um mesmo
setor da economia de adotar o mesmo suposto estratagema dos donos de postos de
combustíveis — quem sabe até mesmo formando um grupo no Whatsapp e
combinando que, a partir de amanhã, elevarão o preço de um determinado rol de
produtos ou serviços em 10%?
Não é este o cenário que observamos, por certo.
As
reais causas
Há duas explicações para esse comportamento dos preços
praticados pelos postos de combustível.
A primeira — e mais importante — explicação para
este fenômeno não está na ponta final do processo produtivo — a
comercialização, a interação final com o cliente —, mas sim nas demais etapas
do caminho que o petróleo percorre até chegar no seu tanque.
A cadeia produtiva dos combustíveis consiste
basicamente de quatro estágios: exploração, refino, distribuição e, aí, sim,
comercialização.
O problema que irá gerar, lá na frente, aquele
aparente "comportamento desonesto" dos preços, encontra-se especialmente no
segundo: a Petrobrás
é dona de 13 das 17 refinarias do Brasil, respondendo por 98% do petróleo
refinado (isto é, transformado em gasolina, diesel, etc.) no país.
O próprio presidente da Petrobras já veio a público
confessar: "Não
é bom para o País a Petrobras ter 100% de monopólio no refino".
E
por que não há refinarias nacionais ou estrangeiras no país para concorrer com
a Petrobras? Simples. Porque para abrir uma refinaria no país você tem de:
1) submeter-se a uma cornucópia de regulamentações impostas pela ANP, que regula tudo
que diz respeito ao setor;
2) A
ANP é uma burocracia enorme que possui, além de sua diretoria, uma secretaria
executiva, 15 superintendências, 5 coordenadorias, 3 núcleos (Segurança
Operacional, Fiscalização da Produção de Petróleo e Gás Natural, e Núcleo de
Informática) e 3 centros (Relações com o Consumidor, Centro de Documentação e
Informação, e Centro de Pesquisas e Análises Tecnológicas).
Montar
uma refinaria significa ter de submeter a calhamaços regulatórios impostos por
cada um desses departamentos, o que, por si só, já torna todo o processo
financeiramente inviável.
3) Além
da ANP, você tem de se submeter a calhamaços de regulamentações ambientais,
trabalhistas e de segurança. O arranjo sempre foi montado exatamente para
coibir a concorrência à Petrobras. Pode até ser que mude no futuro, mas não há
qualquer indicação disso.
4) Além
de tudo isso, estamos no Brasil, o que significa que você terá de "molhar
a mão" de vários políticos e burocratas caso realmente queira conseguir
alguma licença.
5) Finalmente,
ainda que um empreendedor estivesse disposto a encarar tudo isso e realmente
conseguisse abrir refinarias no país para concorrer com a Petrobras, o governo
poderia simplesmente praticar política de controle de preços e reduzir artificialmente os
preços cobrados pela Petrobras, o que garantiria a reserva de mercado da
estatal e inviabilizaria todo o seu empreendimento, trazendo enormes prejuízos.
Essas
são as consequências de se ter todo um setor controlado diretamente pelo
estado: total insegurança jurídica.
Sendo
assim, é simplesmente inviável surgirem novas refinarias.
Ou seja, como diria Carlos Drummond de Andrade,
há uma pedra (o estado) no meio do caminho. Este monopólio estatal elimina a
competição exatamente na fase de processamento, onde uma melhor produtividade
(corte de custos e adoção de métodos mais eficazes) seria capaz de reduzir
consideravelmente o preço final na bomba.
(Quanto à exploração, vale lembrar que o mercado nacional
de petróleo ficou completamente fechado de 1953 a 1997, período em que a
Petrobras deteve, por lei, o total monopólio do setor. A consequência inevitável
é que, com a abertura do mercado após mais de 40 anos de monopólio, a Petrobras
já havia se apossado das melhores reservas do país, não havendo espaço para a concorrência
privada. Hoje, é quase que impossível alguém concorrer com a estatal. Embora o
monopólio de jure não exista mais, o monopólio de fato continua praticamente
intacto.)
Para se ter uma ideia mais clara do efeito nefasto
deste obstáculo no meio da jornada, observe os aumentos registrados de julho
de 2017 até o início de 2018 no preço da gasolina em cada um dos elos da cadeia econômica: nas
refinarias, 30,03%[1];
nas distribuidoras, 19,24%; e nos postos, 16,78% (Fonte).
Ou seja, quanto mais a gasolina se afasta do governo
e se aproxima do mercado, mais a concorrência vai fazendo seu "milagre": os
postos repassaram, no período considerado, aproximadamente metade do aumento
aplicado pela Petrobrás, o que reduziu
de 22% para 14% a margem bruta média, percentual ainda pendente da quitação
de custos como aluguel, água, luz e mão de obra.
E, considerando que, neste período, o governo mais que dobrou as alíquotas do PIS/COFINS sobre a gasolina, o repasse ocorrido nas bombas foi até baixo.
Os postos, obviamente, tiveram de segurar os
repasses para espantar a clientela o mínimo possível (coisa que não tira o sono
de gestores governamentais nem por um segundo). No entanto, os consumidores,
naturalmente, direcionam sua indignação para aqueles com quem negociam
diretamente.
Percebam que aí reside o porquê do reajuste
simultâneo: as refinarias estatais, por dominarem quase 100% do refino,
controlam uma espécie de "gatilho" do sistema de preços, que é repassado a
partir de seu disparo — o que não ocorreria se diversos fornecedores
diferentes atuassem concomitantemente, como é a regra na maioria dos setores da
economia. Mas como vem tudo da mesma fonte, é de se esperar que o efeito se
alastre de maneira uniforme.
E a interferência estatal na composição final do
preço dos combustíveis não acaba por aí: além da forte participação da
Petrobrás na exploração e, principalmente, no refino do petróleo, há pesadas regulamentações
estatais tanto na distribuição quanto na comercialização, onerando os
investimentos necessários para empreender na área e, consequentemente, formando
oligopólios nestas atividades (leia-se: nicho concentrado nas mãos de poucos).
O que nos leva à segunda causa para o comportamento
dos preços: sim, o setor de postos de combustível funciona, na prática, como
uma reserva de mercado.
As pesadas regulamentações da ANP, além de tornarem proibitivo o
surgimento de qualquer empresa que queira prospectar petróleo aqui no
Brasil e nos vender, também garantem esse oligopólio do setor de postos de
combustível. Como explicado neste artigo:
Não
há nenhuma liberdade de entrada para qualquer concorrência neste ramo [postos
de combustível].
Tente
você abrir um posto de gasolina. Além de todas as imposições da ANP e de todos
os papeis, taxas, cobranças, cartórios, filas, carimbos, licenças e encargos, há
ainda toda uma cornucópia de regulamentações ambientais, trabalhistas e de
segurança que fazem com que abrir um posto de combustíveis seja uma atividade
quase que restrita aos ricos (ou a pessoas que possuem contatos junto ao
governo).
Livre
concorrência nesta área nunca existiu. Você só consegue se tornar dono de um
posto de gasolina se o seu atual dono lhe passar o ponto. Apenas veja na sua
própria cidade. Qual foi a última vez que você viu um posto de gasolina ser
aberto em uma nova localidade? Praticamente nenhum posto quebra e nenhum posto
novo surge.
E piora. Desde o ano 2000, há uma lei
federal que proíbe a instalação de sistemas de autoatendimento nos
postos de gasolina, como já ocorre em praticamente todos os países de primeiro
mundo. Tanto na Europa quanto nos EUA não existem frentistas. No Brasil, o
governo tornou essa profissão obrigatória (assim como trocador de ônibus), o
que só encarece os custos de se ter um posto de combustível.
E, antes de lamentar pelo emprego dos frentistas,
lembre-se da lição de Frédéric
Bastiat: mais dinheiro sobrando no bolso de quem compra gasolina (quase
todo mundo) significa mais consumo em outros segmentos, nos quais estas
oportunidades de trabalho serão recuperadas (e este remanejo ocorrerá de forma
tão menos traumática quanto mais flexível for a legislação trabalhista).
Conclusão
A Petrobras detém o monopólio do refino de petróleo, o que a permite estipular preços sem concorrência interna. Adicionalmente, os postos de combustível atuam em um setor fortemente
regulado pelo governo: de um lado, as regulamentações restringem o surgimento
da concorrência, o que é bom para os postos já estabelecidos; de outro, elas
geram vários custos operacionais extremamente altos, o que é ruim para os
postos.
Ambos os fatores empurram os preços para cima e, no
final, quem é o real prejudicado é o consumidor.
Por isso, apontemos o dedo para os verdadeiros
culpados pelo "cartel" do combustível: os governantes contrários à total
abertura ao livre mercado desta atividade econômica, o que inclui a desregulamentação
do setor de postos e a desestatização
da Petrobrás (mas aí acabariam o aparelhamento e o loteamento de cargos
para apadrinhados políticos).
Por fim, é o paroxismo da ironia o governo, o real protetor
dos carteis, dizer que irá "combater os cartéis".
Retomando a manchete lá do início, é possível fazer
uma releitura do enunciado levando em consideração o exposto aqui, propondo uma
versão mais condizente com os fatos:
"Governo diz haver fortes indícios de
manipulação de preços no setor, problema causado e mantido
por ele mesmo"….
[1] A
política do governo Dilma de congelar o preço dos combustíveis — obrigando a
Petrobras a vender para as distribuidoras gasolina
e diesel abaixo do preço pelo qual foram importados — destruiu o
capital da estatal, causando um
prejuízo de aproximadamente R$ 60 bilhões. (Valor este que é muito maior do
que o desviado pela corrupção na
estatal).
Para compensar este estrago e recompor o caixa da
estatal, a atual diretoria da Petrobras teve de elevar os preços dos
combustíveis, fazendo com que eles batessem
recordes quase que diários. Esta é a causa dos seguidos aumentos observados
nas refinarias.
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