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O populismo radical foi rechaçado na Argentina. O grande risco atual é o conformismo e a inércia

Para Mauricio Macri realmente vencer, ele tem de liberar a economia

23/10/2017

O populismo radical foi rechaçado na Argentina. O grande risco atual é o conformismo e a inércia

Para Mauricio Macri realmente vencer, ele tem de liberar a economia

O presidente Mauricio Macri foi o grande vencedor das eleições legislativas que ocorreram neste domingo, na Argentina. A vitória foi acima das expectativas: Macri ganhou em 15 das 23 províncias do país, incluindo Buenos Aires, Córdoba, Mendoza, Santa Fe e o distrito federal da capital.

Com o resultado, sua coalizão, a Cambiemos (Mudemos), se tornou o centro do poder no país, podendo até mesmo vir a substituir o peronismo como eixo central da política argentina.

As vitórias nestes cinco grandes distritos colocam Macri em uma posição de poder inédita desde 1985, a última vez que um não-peronista, Raúl Alfonsín, conseguiu resultado arrasador nas eleições legislativas de meio mandato. A vitória do Cambiemos em Buenos Aires foi especialmente significativa, pois foi ali que a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner se apresentou como candidata ao Senado. Embora ela tenha conseguido uma vaga para o Senado, perdeu a disputa para o candidato apoiado por Macri.

O grande risco desta vitória acachapante é que ela seja interpretada por Macri como uma aprovação ao seu gradualismo. O grande risco é que o presidente interprete sua aprovação popular como um sinal de que ele deve simplesmente manter tudo como está, ou seja, continuar com suas medidas extremamente tímidas e gradualistas em vez de aprofundar e acelerar as tão necessárias reformas econômicas.

Sua vitória já havia sido antecipada pelos mercados financeiros. Após as primárias de 13 de agosto (quando os eleitores votaram para definir as candidaturas das eleições de ontem), a bolsa de valores da Argentina (Índice Merval, linha preta, coluna da direita) apresentou um furioso "rali" ao mesmo tempo em que o Risco País (linha amarela, coluna da esquerda) caía ao menor valor em uma década. O fim do populismo radical kirchnerista foi motivo de alegria para os investidores.

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Portanto, dado que o governo alcançou este grau de aprovação política e esta euforia econômica com sua estratégia "gradualista", cabe perguntar: passadas as eleições, haverá maiores reformas econômicas, ou tudo seguirá igual?

A herança maldita

Durante a segunda metade do período kirchnerista, as contas do governo argentino ficaram no vermelho. O déficit orçamentário foi crescendo aceleradamente até chegar ao insustentável valor de 7% do PIB em 2015.

Tendo decretado moratória no início da década de 2000 (e reincidido em 2014), o governo não conseguia se financiar facilmente via empréstimos no mercado financeiro.  Consequentemente, teve de recorrer à inflação monetária -- isto é, colocar o Banco Central para imprimir dinheiro -- para financiar seus déficits. 

A criação de dinheiro -- principalmente a partir de 2009 -- ocorreu a uma velocidade espantosa.

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Como consequência, os preços se descontrolaram, com a carestia chegando a alcançar os níveis mais altos do ranking mundial. No entanto, dado que, em 2012, o governo decretou que era crime divulgar as taxas reais de inflação, ninguém realmente sabia qual era a verdadeira taxa de inflação de preços no país.

Para culminar, o governo Kirchner fechou a economia ao comércio internacional e adotou um discurso mais alinhado ao governo venezuelano do que ao dos países desenvolvidos.

Os resultados foram lamentáveis: 2,3 milhões pessoas caíram na pobreza durante o último mandato de Cristina Fernández de Kirchner, com a pobreza geral alcançando 30% da população. Já segundo a Unicef, havia quatro milhões de crianças na pobreza, sendo que 1,1 milhão estava na pobreza extrema. Já nos últimos seis anos do kirchnerismo, o número de pobres aumentou 5 milhões.

E, segundo um estudo feito conjuntamente pela Universidade de Buenos Aires com a Universidade de Harvard, os argentinos estavam mais pobres em 2014 do que eram em 1998, graças à desvalorização do peso e a um crescimento econômico muito inferior às estatísticas oficiais divulgadas pelo governo.

Uma das grandes causas do desarranjo da economia argentina durante o período Kirchner foi a política de congelamento dos preços dos setores de energia, de transporte e de água -- que são popularmente chamadas de "tarifas de serviços públicos".

O sistema de tarifas congeladas predominou durante os últimos 14 anos e, como não poderia deixar de ser, exigiu que o governo transferisse uma enorme quantidade de recursos para as empresas produtoras para cobrir a diferença entre receitas (congeladas) e custos (em acelerado crescimento por causa da inflação monetária).

Em 2015, somente em subsídios com energia, foram gastos 170,3 bilhões de pesos, um aumento de 4.123% em relação ao ano de 2006. Em termos do PIB, os subsídios à energia, à água e ao transporte chegaram a 5% em 2014.

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Isso gerou um ciclo vicioso. Quanto mais o governo imprimia dinheiro, mais os custos operacionais das empresas aumentavam. E como os preços estavam congelados, suas receitas não subiam. Consequentemente, mais subsídios o governo tinha de dar às empresas. Só que os subsídios aumentavam os déficits orçamentários do governo, os quais eram então financiados com mais impressão de dinheiro. 

Essa ciranda resultou em uma das maiores carestias do planeta.

E, como sempre ocorre com os controles de preços, o congelamento tarifário gerou um enorme incremento do consumo (aumentou a demanda), o qual não foi acompanhado por um aumento da produção (pois as receitas estavam congeladas). Como consequência, a oferta desses serviços se deteriorou, não conseguindo suprir a demanda. 

Em um informe publicado em dezembro de 2015, foi relatado que, de 2003 a 2015, o consumo de gás natural aumentou 41%, o de energia elétrica, 58%, e o de gasolina, 153%. No entanto, com preços congelados, a oferta não acompanhou a demanda. Consequentemente, perdeu-se um estoque de reservas equivalente a quase dois anos de produção de petróleo e a mais de nove anos de produção de gás. 

Isso gerou uma deterioração dos serviços: os cortes na oferta de gás para as indústrias, que apresentaram uma taxa de 3% em julho de 2003, subiram para 17% em julho de 2015.

Na região metropolitana de Buenos Aires, as residências ficaram, em média, 32,5 horas sem luz apenas em 2015. Em 2003, a média de horas de apagão era de 8,3. Ou seja, os blecautes quadruplicaram em 12 anos.

Por fim, também segundo os dados oficiais, de 2001 a 2012, o congelamento das tarifas fez com que o gasto total com eletricidade caísse 80% em termos reais (quando se considera toda a inflação de preços). Ou seja, na prática, o kirchnerismo praticamente obrigou as empresas a distribuir luz de brinde para os usuários.

As medidas de Macri

O governo Macri, acertadamente, decidiu abolir essa política de controle de preços, a qual estava afetando severamente os investimentos nesses setores. Além da abolição do congelamento, foi anunciada também a intenção de se acabar com os subsídios.

Consequentemente, houve um reajuste tarifário que doeu no bolso dos argentinos: após a liberação das tarifas, a inflação de preços disparou e, no início de 2016, chegou a 40% no acumulado de 12 meses.

Vale ressaltar que não foram a desvalorização cambial e o aumento das tarifas dos serviços públicos o que causou essa disparada na inflação de preços, mas sim exatamente o contrário: foi o aumento de preços gerado pelo aumento excessivo da oferta monetária, que triplicou em pouco mais de 3 anos (aumento esse feito pelo governo Kirchner para cobrir os déficits orçamentários do governo), o que desarranjou toda a economia, levando à necessidade de um realinhamento do câmbio e das tarifas dos serviços públicos.

Por algum tempo, o governo Kirchner conseguiu recorrer a medidas populistas e evitar que esse efeito chegasse a todas as áreas da economia impondo controles ad hoc. Foi isso o que o governo Kirchner fez ao criar uma taxa oficial artificial para o câmbio (o "cepo" cambial), ao congelar as tarifas dos serviços públicos, e ao determinar -- por meio do programa Precios Cuidados -- que os supermercados não aumentassem os preços.

No entanto, o que tais programas intervencionistas realmente conseguiram lograr foi reduzir drasticamente as exportações, desestimular investimentos e acabar com os incentivos para que as empresas produzissem cada vez mais e melhores bens e serviços.

Também no front fiscal, o governo argentino eliminou as "retenções" (taxação média de 30% das exportações) para a indústria e para os produtos agropecuários, exceto a soja, cuja tarifa de exportação foi reduzida de 35 para 30%.

Tais medidas foram feitas com o intuito de recuperar as economias regionais melhorando os incentivos à produção, tanto pela redução da carga tributária que incidia sobre o setor quanto pela abolição do "cepo cambiário".[1]

Ambas as medidas -- eliminação das retenções e fim do cepo cambiário -- incentivaram os produtores a desestocar seus produtos e a vendê-los maciçamente para o mercado externo, trazendo dólares para o país e, com isso, trazendo alívio para as então debilitadas reservas internacionais do Banco Central argentino, que estavam em contínuo declínio desde 2011 e que voltaram a subir, pela primeira vez desde então, em 2016. Hoje, já estão no maior nível desde 2008.

Gradualismo, nadismo ou profundismo?

Por causa destas medidas de liberação de algumas tarifas de serviços públicos, eliminação das retenções, e fim do cepo cambiário, Macri foi acusado de "neoliberal selvagem", "ajustador brutal e insensível", "inimigo do povo" e outros epítetos. Só que os críticos se esquecem de que só há ajuste porque antes houve um desajuste.

Só que tudo o que foi feito ainda é muito pouco. Todas essas medidas tomadas ainda são muito pequenas quando se considera todo o fenomenal desequilíbrio feito na economia pelos Kirchner.

Logo de início, o próprio Macri anunciou que, para evitar custos sociais e políticos, as mudanças ocorreriam de maneira gradual. E assim está sendo. Há vários desajustes que nem sequer foram atacados.

Por exemplo, apesar de ter havido um recente reajuste, a tarifa de ônibus na cidade de Buenos Aires (a mais rica do país) custa apenas 34 centavos de dólar. Isso graças aos 40 bilhões de pesos (R$ 7,2 bilhões) que todos os argentinos pagam de subsídios. Qual a necessidade de manter esse esquema?

Mas o problema não se restringiu apenas às tarifas dos serviços públicos. A companhia aérea estatal Aerolíneas Argentinas dá um prejuízo ao Tesouro de 2 milhões de dólares por dia.  Os grupos de interesse e os sindicatos não aceitam sua privatização. Igualmente, a estatal petrolífera YPF registra prejuízos trimestrais milionários, e nada de o governo se desfazer dela.

O governo, com efeito, tomou nota dessas reclamações e, para ficar politicamente de bem com todos, anunciou aumentos para os aposentados e para os salários dos professores. E nenhuma reforma do setor público.

E foi exatamente no setor púbico que o gradualismo do governo consistiu em simplesmente não fazer nada ou até mesmo em aprofundar os problemas. O déficit fiscal hoje é maior que o deixado por Cristina Kirchner; a quantidade de funcionários públicos também (há 4 milhões de funcionários públicos na Argentina, sendo que aproximadamente 280 mil são fantasmas); os gastos do governo não caem; a dívida pública não dá sinais de estabilização; a inflação monetária segue alta; a economia segue fechada; a rigidez trabalhista segue intocada; e as dificuldades para empreender seguem as mesmas (o país está na 116ª posição no ranking de facilidade empreendedorial).

Que tipo de mudança Cambiemos propõe?

Se tudo se mantiver assim, rapidamente a acabará o combustível para o otimismo econômico e para a recuperação da atividade. Pior: poderá haver brechas para um novo estancamento ou para uma eventual crise por excesso de gasto e endividamento, como o país já viveu no passado.

É por isso que é de crucial importância ver como o governo irá interpretar a mensagem das eleições. Interpretará como um apoio para avançar as reformas estruturais ou verá como um pedido de mais gradualismo e nadismo?

A Argentina tem hoje cerca de 30% da população na pobreza, 34% na informalidade e apenas 25% do PIB per capita dos países ricos. É evidente que ainda há muito a ser feito. Para começar, a economia tem de crescer de maneira sólida e fundamentada.

E uma maneira de fazer isso é melhorando a competitividade do país.

De acordo com o Foro Econômico Mundial, os pontos fracos da Argentina no que tange à sua competitividade são o ambiente macroeconômico, o desenvolvimento financeiro, a eficiência do mercado de trabalho e a eficiência do mercado de bens.

Quando o país é comparado ao Chile e à Austrália, estes são os pontos em que o país tem de melhorar com mais urgência.

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Evidentemente, isso exige reformas estruturais, o que tem de ser feito agora, após essas eleições.

Para melhorar a "macro", é crucial colocar a inflação sob controle (uma verdadeira chaga na Argentina) e começar a reduzir o déficit fiscal por meio do corte de gastos, reformando o inchado setor público. Uma inflação menor e uma carga tributária mais baixa (possibilitada pela reforma do setor público) darão a estabilidade necessária para que o mercado interno e o mercado financeiro se desenvolvam.

Para melhorar a eficiência do mercado de trabalho e de bens, a reforma trabalhista é crucial. É imprescindível liberar o mercado de trabalho para facilitar a contratação e aumentar a demanda por mão-de-obra. Apenas assim os salários podem subir sem mágicas e artificialismos. Igualmente importante, como já dito, é reduzir os impostos, pois com uma carga tributária que é a mais alta da América Latina e que está entre as mais altas do mundo, poucos terão estímulos para investir e produzir com qualidade.

Conclusão

O governo argentino saiu fortalecido politicamente das eleições deste domingo. A dúvida é se aproveitará esta maior força para encarar as reformas liberalizantes ou se acreditará que o resultado eleitoral foi uma sinalização de que o que foi feito até aqui já é o suficiente.

Que não durmam sobre os louros.


[1] O cepo cambiário implantado pelos Kirchner consistia no controle do mercado de dólares pelo governo, que dificultava a compra de dólares para importações e obrigava os exportadores a converter os dólares de suas exportações em pesos a uma taxa artificialmente valorizada, o que diminuía as receitas em peso; o Banco Central pagava aos exportadores somente 63% do valor de seus produtos vendidos para o exterior. A inevitável consequência dessa medida foi estimular os produtores a estocar sua produção e vendê-la no mercado paralelo.

Sobre o autor

Iván Carrino

É analista econômico da Fundación Libertad y Progreso na Argentina e possui mestrado em Economia Austriaca pela Universidad Rey Juan Carlos, de Madri

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