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Filosofia

Para uma sociedade evoluir é necessário que ela seja homogênea?

A liberdade não é consequência da homogeneidade; é a solução para o "problema" da heterogeneidade

19/10/2017

Para uma sociedade evoluir é necessário que ela seja homogênea?

A liberdade não é consequência da homogeneidade; é a solução para o "problema" da heterogeneidade

É estranho escrever sobre este assunto 25 anos após eu já tê-lo dado por completamente resolvido em minha mente.

Mas, pelo visto, nada realmente pode ser dado como "completamente resolvido".

A questão que eu havia analisado há muito tempo diz respeito a uma falácia histórica e econômica básica que recentemente voltou com força total: a alegação de que a sociedade precisa de homogeneidade para que possa haver ordem, progresso e liberdade.

Essa é uma das principais reivindicações da direita nacionalista e de seus simpatizantes (e, de uma maneira diferente, também da esquerda progressista e da extrema-esquerda).

É essa crença o que os leva a rejeitar a liberdade como um meio de progresso e a abraçar o controle estatal sobre a demografia.

E ela é completamente errada. Caso já tenha se deparado com ela, esse artigo é para você.

Começo com um caso que ocorreu comigo no passado. Antes de sua morte, o famoso escritor e teórico "nacional-socialista" Samuel Francis, autoproclamado fascista, conversava comigo durante um almoço. Eu estava tagarelando sobre a liberdade, como de costume. E então ele me interrompeu e disse, parafraseando: "Os direitos humanos e a liberdade são slogans que usamos. Muito mais fundamental é a demografia. Você precisa ter homogeneidade para que a sociedade seja ordenada e funcione adequadamente. Sem isso, não há qualquer chance de haver direitos e liberdades".

Francis estava certo?

Não respondi nada porque eu realmente ainda não havia pensado muito sobre aquilo. Será que ele estava certo? Você não ouve esse tipo de asserção na universidade. As pessoas que falam assim são politicamente incorretas, e não dizem algo do tipo em companhias mais chiques e elitizadas. Esse posicionamento leva a pensamentos proibidos e tende à celebração de pecados cívicos como o racismo, o sexismo e a xenofobia. Então, eu nunca tinha pensado com muita ênfase nisso. Isso significa que eu fui pego de surpresa. Fiquei um pouco confuso.

Demorou alguns dias, mas cheguei a uma conclusão A liberdade não é a consequência da homogeneidade. Ela é a solução para o aparente problema da heterogeneidade. A liberdade cria instituições como arranjos comerciais que geram oportunidades para transações e livre comércio. Tais arranjos criados pela liberdade permitem que as transações comerciais e os aprendizados sejam mutuamente benéficos. A maneira como a liberdade reconcilia as diferenças entre as pessoas -- e cria riqueza a despeito das divergências -- é exatamente a fonte de sua grande magia.

Retroceda no tempo e pense no fim das guerras religiosas. Os pensadores do Iluminismo propuseram que a solução para as diferenças religiosas não era a queima de hereges e a imposição de um credo oficial, mas sim permitir que as pessoas acreditassem no que quisessem desde que não agredissem as outras. E o sistema funcionou. De quantas maneiras diferentes essa ideia de liberdade funcionaria? Gradualmente, esse conceito de liberdade passou a influenciar os discursos, a imprensa e o comércio. No fim, levou à ampla emancipação dos escravos e das mulheres. Criou um mundo novo, no qual o poder do estado foi restrito e contido, e desmantelou o antigo mundo baseado em uma hierarquia compulsória.

Você não precisa ser um profundo conhecedor de história. Visite um agitado bairro comercial de qualquer grande metrópole e observe o fervilhante mosaico de etnias, idiomas, religiões, raças e culturas. Ali, todas as pessoas estão comprando, vendendo e interagindo de acordo com seus próprios termos. Por que não há o caos? Por que há a coexistência? Porque a presença de uma liberdade comercial permite que todos busquem seu interesse próprio de uma maneira que também beneficia aos outros. Eis aí a beleza da mão invisível em ação.

A alegação de que a liberdade é pré-condicionada à semelhança da população ignora o próprio problema que a liberdade resolve com grande eficiência. Afinal, qual é o problema que a ordem social está tentando resolver? Ela busca fornecer um arranjo em que as pessoas prosperem como indivíduos. Com efeito, um arranjo em que todo o grupo tenha uma oportunidade de uma vida melhor. As diferenças entre as pessoas são resolvidas pela liberdade. Esta foi uma visão que mudou o mundo para melhor.

Com efeito, concluí que quando há uma pequena tribo da mesma raça, língua, religião e normas culturais, a questão da liberdade não precisa nem ser levantada. A coordenação do grupo ocorre devido ao conhecimento pessoal, à comunicação verbal e às expectativas iguais em relação às necessidades, que são semelhantes para todos. E, geralmente, há um único líder.

O problema é que uma unidade tribal homogênea e isolada, gerenciada desde cima, sempre será pobre -- praticamente vivendo de subsistência, como as pequenas tribos da Amazônia hoje --, pois o modelo não permite a expansão da divisão do trabalho. Pode funcionar em algumas condições raras. Mas, na ampla maioria das vezes, a vida sob uma homogeneidade imposta tende a se degenerar naquilo que Thomas Hobbes disse sobre o estado da natureza: sórdida, brutal e curta.

O impulso para se integrar

A liberdade, por outro lado, recompensa uma crescente integração voluntária entre pessoas de todos os tipos. Ela faz com que seja lucrativo para todos praticá-la. Você é perfeitamente livre para ser fanático, racista e avesso a todas as outras visões religiosas e diferentes estilos de vida. Porém, quando se trata de melhorar sua vida, você prefere lidar com um médico judeu a ter um ataque cardíaco, almoçar em um restaurante de comidas árabes, contratar um imigrante mexicano para reformar seu banheiro, ouvir sua banda pop favorita integrada por negros, e assim por diante.

E sabe o que acontece? Gradualmente, sob estas condições, o modo de agir primitivo e tribalista começa a diminuir.

É exatamente por isso que qualquer regime que busque impor a homogeneidade deve necessariamente se voltar contra o mercado e a favor da coerção. Vale lembrar que o Partido Nazista, no início, incentivava apenas apenas boicotes pacíficos a estabelecimentos comerciais judaicos, protestos com cartazes na frente das lojas, e outras ações similares, e deu instruções explícitas para que ninguém fosse agredido. Isso não funcionou. As Leis de Nurenberg foram uma medida desesperada para resolver o "problema" de o mercado não ter excluído as pessoas.

Ou então pense na experiência americana. Havia um pânico generalizado sobre a imigração no final do século XIX. E não pelo fato de os imigrantes estarem "roubando empregos", mas pelo fato de que a presença de judeus, italianos, eslavos e irlandeses diluiria a raça americana. Políticas e teorias malucas foram apresentadas e acabaram levando a medidas totalitárias, como a eugenia forçada, as licenças para casamentos, conspirações para executar negros etc -- tudo justificado em prol de se manter a homogeneidade.

Porém, dado que o anseio por pureza racial e cultural sempre é e sempre será frustrado pela existência da liberdade, o passo seguinte sempre acaba sendo o mesmo: a violência em massa.

Há outro fato que torna todo o clamor por homogeneidade uma tolice: a realidade de que ninguém é igual a ninguém. No fundo, todos sabemos disso. Pense em um amigo que possui a mesma religião, raça, linguagem e sexo que você. Agora, pense nos valores seus que diferem dos dele. Sempre existira a possibilidade de conflito porque não há duas pessoas iguais. Suas amizades sobrevivem apesar disso, pois você valoriza sua amizade mais do que as diferenças. Vale mais ser amigo do que se tornar inimigo.

Expanda esse modelo para toda a ordem social e você começará a entender como e por que as diferenças não levam ao conflito, à desordem e ao ressentimento, mas sim à amizade, à prosperidade e ao engrandecimento.

Toda essa conversa sobre acabar com a diversidade é uma obsolescência. Não existe uma raça pura, nenhuma religião verdadeiramente ortodoxa, nenhuma linguagem sem variação ou incorporação de estrangeirismos, nenhuma unidade suprema entre duas pessoas em termos de pensamento, palavra ou ação. Ninguém age ou pensa como um grupo ou um coletivo. O mundo social sempre será uma constelação de diferenças.

Por isso, precisamos do melhor sistema social possível para lidar com esse fato e fazer algo bonito emergir dele.

A nova percepção

Fiquei extremamente satisfeito ao dar por resolvido esse problema em minha mente. Tal como acontece com a maioria dos conflitos intelectuais, você se torna melhor como resultado. No fim, passei a ter uma ainda maior apreciação e compreensão do que a liberdade significa para o mundo. Outros estudos posteriores apenas reforçaram a minha convicção de que todo o propósito da liberdade é fazer com que a heterogeneidade radical funcione para todos.

É por isso que fiquei tão extasiado com La Convivencia, o período de 700 anos (731-1492) antes da Alta Idade Média, quando o islamismo, o judaísmo e o cristianismo coexistiram visando ao seu melhoramento mútuo (que todos os grupos foram beneficiados por essa associação é algo que ninguém questiona, apesar do debate em curso sobre quanta tolerância realmente existia).

Compreender o incrível poder da heterogeneidade significa adotar uma visão diferente em relação à própria sociedade. Significa abraçar a principal reivindicação liberal: a sociedade não precisa de dirigentes atuando de cima para baixo, pois contém em si a capacidade de sua própria administração. Igualmente arrebatadora é a ênfase de Frédéric Bastiat na harmonia como sendo o meio pelo qual vivemos vidas melhores.

Em contraste, a postura mental de que a homogeneidade é uma condição necessária leva a uma série de estranhas obsessões sobre conflitos intermináveis na sociedade. Você começa a exagerá-los em sua mente. Parece que você está cercado por uma infinidade de guerras insolúveis. Há uma guerra entre negros e brancos, homens e mulheres, gays e heteros, cristianismo e islamismo, pessoas com e sem deficiência, "nosso país" versus "o país deles", e assim por diante. Esta é a mentalidade típica que une a extrema-esquerda e a direita nacionalista.

E, adivinhe só? Se você constrói um estado grande, que a tudo deve regular, esses conflitos realmente parecem ser mais reais do que são, simplesmente porque o estado joga as pessoas umas contra as outras. Você começa a odiar um grupo porque seus membros não votaram em seu candidato, porque eles recebem mais dinheiro de impostos, ou porque eles defendem várias formas de restrição à sua liberdade. Graças a esse estado intervencionista, você sente como se estivesse cercado por inimigos e mal enxerga a possibilidade de compreensão humana.

Liberdade e diferença

Voltemos à afirmação original de Samuel Francis, hoje amplamente compartilhada e promovida por nacionalistas coletivistas e seus simpatizantes. Não há nada de novo nela. Os oponentes da liberdade têm insistido neste caminho errado por cerca de 200 anos, como eu explico em meu mais recente livro.

"Você precisa ter homogeneidade para que a sociedade seja ordenada e funcione adequadamente", dizia Francis. Esta afirmação equivale a uma rejeição do próprio liberalismo. Portanto, vamos corrigi-la. Você tem que ter liberdade para lidar com a realidade inescapável da heterogeneidade. É o anseio por semelhança que leva ao conflito, ao despotismo e a vidas humanas empobrecidas.

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P.S.: para os leitores interessados na origem e no desenvolvimento da teoria liberal da sociedade, recomendo efusivamente o primeiro terço do livro Socialism, de Ludwig von Mises. Ali, ele formula uma teoria sobre a cooperação e uma outra que ele rotulou de Lei da Associação. Ambas são elaborações poderosas sobre a teoria da divisão do trabalho. O resultado é uma teoria social séria e robusta -- a qual Mises nunca mais voltou a explicar com o mesmo grau de profundidade em suas outras obras. Particularmente, considero essa a melhor explicação sobre sociedade, propriedade e progresso que já li.

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Sobre o autor

Jeffrey Tucker

É Diretor-Editorial do American Institute for Economic Research. Ele tambÉm gerencia a Vellum Capital, é Pesquisador Sênior do Austrian Economic Center in Viena, Áustria.

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