Nota
do Editor
O
artigo a seguir — apresentado em uma versão condensada — foi o vencedor do concurso de artigos na categoria "Direito" feito pelo
IMB por ocasião de sua V Conferência de Escola Austríaca. As opiniões do autor
não necessariamente refletem as opiniões do Instituto Mises Brasil.
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Embora seja negligenciado pelo debate público, o
intervencionismo no setor de saúde privada tem causado perversos reflexos
econômicos e sociais.
Na década de 1990, o mercado privado de saúde vinha se
desenvolvendo rapidamente. A crescente demanda, o colapso do serviço público de
saúde e a parca regulamentação[1][2] —
isto é, a relativa ausência de barreiras de entrada no mercado[3], o
que estimulava a livre concorrência — permitiram uma forte expansão do setor.
Contudo, isso mudou com a ascensão do intervencionismo no
setor ao final da década de 1990, que se deu por diferentes formas. Após quase
duas décadas de crescente regulação estatal, temos atualmente (a) um sistema
oligopolizado, (b) uma jurisprudência que, ao relativizar contratos, incentiva a
judicialização de ações, (c) uma grande escassez na oferta de planos de saúde
individuais, e (d) o cerceamento da livre concorrência, sendo esta a causa última do
encarecimento dos planos de saúde.
Por tudo isso, o diagnóstico das consequências do
intervencionismo no setor é essencial para a proposição de mudanças nos
arranjos institucionais.
O intervencionismo
na Lei dos Planos de Saúde
A intervenção do estado na saúde privada passou a se dar de
forma mais intensa a partir da promulgação da Lei nº. 9.656/1998, conhecida
como Lei dos Planos e Seguros de Saúde. Ela impôs uma nova forma de dirigismo contratual aos Planos
de Saúde. Seu art. 10, por exemplo, instituiu o "plano-referência", que estipula
os serviços mínimos a serem ofertados compulsoriamente pelas operadoras de
planos de saúde.
Já à época, a legislação foi bastante criticada por se arvorar
como completa, detalhando até mesmo os procedimentos. Apontava-se que ela faria
o setor se tornar obsoleto, pois enrijeceria as relações de consumo, aprisionando
o consumidor[4].
O dirigismo estatal começava ali a limitar a liberdade de estipular produtos
diferenciados e personalizados para a necessidade de cada consumidor, cerceando
a livre concorrência e, com isso, fazendo o setor tender naturalmente à
oligopolização.
Evidência disso é que, no ano 2000, havia 3.577 operadoras de
plano de saúde atuando no Brasil. Uma década depois, o número caiu para menos da metade: 1.628, sendo que apenas 12% delas concentram mais de 80% dos
usuários. E, em março de 2017, o número já era de apenas 1.076 operadoras.
Boa parte desta queda na oferta e aumento da concentração foi
causada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada em 2000.
O intervencionismo
da Agência Reguladora
A despeito das críticas à época, o intervencionismo no plano
da saúde privada se intensificou com a criação da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS) pela Lei 9.961/2000[5].
Entre suas competências está autorizar o registro e o funcionamento das
operadoras de plano de saúde, exercendo ampla normatização e fiscalização sobre
suas atividades. A ANS estabelece, inclusive, as condições gerais para o
exercício de cargos de direção dessas empresas.
Naturalmente, a soberania do consumidor passou para segundo
plano, pois as operadoras passaram a se preocupar apenas em cumprir as normas
da agência reguladora para poderem continuar no mercado.
Todos os contratos individuais passaram a ser regulados e hoje
têm seus preços reajustados pela ANS. Ignorando uma vasta literatura econômica que
explica que controle de preços causa escassez[6], os
índices de reajuste autorizados muitas vezes são desatrelados de critérios
técnicos[7] e
menores que a inflação de serviços médicos. Consequentemente, a maioria das
operadoras parou de oferecer a modalidade de contrato individual, concentrando-se
nos contratos empresariais, que hoje correspondem a mais de 80% do mercado.
Ademais,
atualmente a
ANS estabelece um rol obrigatório de 3.216 procedimentos e eventos
em saúde para que uma operadora de saúde possa funcionar, o que faz com que
os clientes sejam obrigados a arcar — diretamente ou não — com custos de
serviços que não tenham sequer interesse em utilizar.
Pior:
tal imposição impede planos de saúde de terem modelos de negócios
especializados em determinadas áreas médicas.
O intervencionismo nos
contratos de plano de saúde no Judiciário
Outra forma de intervencionismo, desta vez indireto, ocorreu
por meio da legislação[8]
que permite ao Poder Judiciário relativizar contratos, mitigando o dogma da autonomia da vontade, princípio
clássico da teoria contratual.
Os planos de saúde, como qualquer organização empresária,
visam ao lucro, o qual é imprescindível para a viabilidade econômica da
atividade. No entanto, parcela da doutrina jurídica tem considerado a existência
de cláusulas restritivas de cobertura como abusivas, entendendo que o
Judiciário deve obrigar as seguradoras a incluir procedimentos médicos não-previstos
contratualmente. O impacto disso na operação dos planos de saúde é que essa
despesa não-prevista afeta a operação econômica de custeamento de toda a cadeia
de contratantes.
Por conseguinte, caso não sejam observadas as restrições às
coberturas acordadas em contrato, a operação pode se tornar inviável
economicamente — ou então os custos serão repassados a todos os outros
clientes.
Assim, amparada pela doutrina, sedimentou-se uma
jurisprudência tendente a impor serviços médicos além daqueles contratados. A
consequência lógica foi a criação de um perverso incentivo: consumidores passaram
a ingressar com demandas judiciais para pleitear prestações não cobertas
contratualmente.
Como evidência, os custos com processos judiciais nos planos de saúde
dobraram entre 2013 e 2015,
superando a marca de R$ 1 bilhão.
Tudo isso gera aumento na insegurança jurídica e nos custos de
transação, uma vez que os contratos não mais estão sendo corretamente obedecidos.
Inevitavelmente, todos estes custos são repassados ao restante da carteira de
clientes.
Ao intervir desta forma, o Judiciário afeta todo o ambiente
econômico, impactando empresas, agentes e o próprio mercado, criando incertezas
e custos desnecessários[9].
Os dados mostram que há uma tendência, entre os magistrados,
de deferir pedidos liminares mesmo sem pedido de
informações complementares. Ou seja,
nestes casos de judicialização dos planos de saúde, o Judiciário decide
favoravelmente ao consumidor, mesmo em segunda instância, em 3/4 das ações, com
decisões que desconsideram seu reflexo econômico[10].
Por conseguinte, o Poder Judiciário tem amparado suas decisões
não na abusividade, mas sim em razões humanitárias, com o intuito de proteger o
consumidor supostamente desamparado, formando-se assim uma "jurisprudência
sentimental"[11].
Além disso, destoando do entendimento majoritário de que meros descumprimentos contratuais não ensejam danos
morais, é comum magistrados
ainda condenarem as operadoras a pagarem danos morais a seus clientes por terem
negado a cobertura de um evento médico não-contratado inicialmente, estimulando
ainda mais essas judicializações.
O intervencionismo é tamanho que, até mesmo quando operadoras
dos planos de saúde cumprem as normatizações definidas pela ANS, elas ainda
assim são condenadas pelo poder Judiciário. Exemplo disso foi entendimento do
STJ de que seria abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no
tempo a internação hospitalar do segurado[12],
conflitando com uma resolução da agência reguladora[13] que
estabelece a regularidade de limitações acima de 30 dias.
Assim, enquanto o ideal é que os contratos ofereçam "garantias
de que os direitos poderão ser plenamente exercidos, reduzindo riscos futuros e
gerando cooperação entre os contratantes"[14],
o intervencionismo estatal logrou produzir incentivos negativos ao ambiente
econômico em relação aos contratos de planos de saúde, o que resulta em uma
maior ineficiência alocativa dos recursos.
Conclusão
A intenção de todo e qualquer intervencionismo é modificar a
ação humana com o intuito de supostamente alcançar resultados melhores do que
aqueles que seriam obtidos pelo livre mercado. No entanto, as consequências não-previstas
do dirigismo estatal sempre se manifestam. E de forma a piorar o arranjo.
No final, os agentes empreendedores sempre se adaptam a
mudanças institucionais, especialmente em meio a um ambiente institucional
desfavorável. O melhor exemplo disso foi, como demonstrado, o abandono pelas
operadoras de plano de saúde do oferecimento dos planos individuais, uma vez
que estes se tornaram pouco viáveis economicamente diante das regulamentações,
e a priorização do oferecimento de planos corporativos, que possuem arranjo
institucional mais adequado à livre iniciativa.
Adicionalmente, a imposição do serviço referencial mínimo
impediu a personalização dos serviços de acordo com a necessidade dos
consumidores, aumentando os valores dos planos e assim prejudicando
principalmente a camada mais pobre da população, que fica refém do SUS (atualmente, 2/3 dos brasileiros).
Diante da mitigação da autonomia da vontade, houve a
consolidação de uma jurisprudência sentimental nos tribunais pátrios, no sentido
de que praticamente toda cláusula de exclusão de cobertura é tida como abusiva.
Este primado do sentimentalismo ignora os reflexos econômicos a serem suportados
pelas operadoras de saúde — as quais, como era inevitável, reduziram a oferta
e aumentaram os preços.
Os defensores do intervencionismo buscam por meio dele a
satisfação de sua ânsia por 'justiça social'; no entanto, quanto maior o grau
de dirigismo, maiores suas consequências não-premeditadas: as quais vão desde um
eventual desequilíbrio contratual até o completo solapamento do sistema de
saúde suplementar, prejudicando toda a coletividade de usuários do sistema.
Diante de tamanho intervencionismo, é compreensível que o
mercado de saúde brasileiro enfrente tão grave crise. Parafraseando Aldous
Huxley, os fatos não deixam de gerar consequências somente porque são ignorados
pelo debate público.
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Leia também:
Como Mises explicaria a realidade do SUS?
Um retrato da saúde brasileira - um desabafo de dois médicos
Um breve manual sobre os sistemas de saúde - e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera
[1] GREGORI, Maria Stella. A normatização
dos planos privados de assistência à saúde no Brasil, sob a ótica da proteção
do consumidor.
[2] As primeiras intervenções foram o
decreto-legislativo nº 4.682/1923, que criou um sistema de Caixas de
Aposentadorias e Pensões (CAPs), financiadas por empregados, empresas e
governo. Já os decretos-leis nº 72 e 73, ambos de 1966, ocasionaram a extinção
dos IAPs e a reestruturação das antigas estruturas, como o Instituto Nacional
de Previdência Social (INPS), vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência
Social, e a criação do Sistema Nacional de Seguros Privados. Já a lei n°
6.839/80 obrigou as empresas do setor de saúde suplementar a se registrarem
perante os Conselhos Regionais e o Conselho Federal de Medicina.
[3] CALAZANS, Rodrigo. Reflexos
Econômicos Da Intervenção Judicial nos Contratos de Plano de Saúde. 2008.
[4] SARRUBBO, Mariângela. A saúde na CF e
o contexto para a recepção da Lei 9.656/98. In: Saúde e responsabilidade:
seguros e planos de assistência privada à saúde. Revista dos Tribunais
[5] A agência reguladora é regulamentada
pelo Decreto n.º 3.327/2000 e pela Resolução RDC (ANS) n.º 593/2000.
[6] SHUETTINGER, Robert L., BUTIER,
Eamonn F., Quarenta Séculos de Controles de Preços e Salários, Visão, 1988.
[7]VENDRAMINI,
Luiz Fernando. Dimensionando os Riscos
dos Planos de Saúde.
[8] Mais notadamente Código de Defesa do
Consumidor e da Lei dos Planos de Saúde, legislação já mencionada.
[9] TIMM, Luciano Benetti (Org.). A
função social dos contratos em um sistema econômico de mercado. Porto Alegre,
2005.
[10] Mesmo se considerarmos a literatura
neoclássica, há firmado o entendimento de que os contratos entre privados não
são o meio mais apropriado à redistribuição de renda, e que a execução de
políticas orçamentárias a fim de diminuir à desigualdade de renda deveria se
restringir à área do direito público. ZANITELLI, Leandro Martins. Efeitos
distributivos da regulação dos planos de saúde. Revista de Direito GV. São
Paulo, 2007.
[11] DRUCK, Tatiana Oliveira. Op.cit.
2005.
[12] Súmula 302 do STJ, entendimento de
2004. <http://www.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=SUMU&livre=@docn=%27000000302%27> Acesso 22.abr.2017.
[13]<http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=PDFAtualizado&format=raw&id=MzAx> Acesso 22.abr.2017.
[14] TIMM, Luciano Benetti (Org.). Op.cit.
2005.