terça-feira, 16 0aio 2017
Nota do Editor
O artigo a seguir foi o
vencedor do concurso de
artigos feito pelo IMB por ocasião de sua V Conferência de Escola Austríaca.
As opiniões do autor não necessariamente refletem as opiniões do Instituto Mises
Brasil.
_______________________________
Muitos pensam existir uma correlação direta e obrigatória
entre ser uma pessoa boa e ser de esquerda. Segundo esse entendimento, se você
é uma pessoa justa e solidária, que se preocupa com o próximo — e em especial
com as minorias e os mais pobres —, você precisa pertencer à esquerda, que
seria o único campo político que se fundamentaria sobre essa preocupação.
Tal correspondência entre ser "do bem" e ser de
esquerda significa, ainda, a vilificação de qualquer outra posição política:
quem se vê em outro campo político é porque é, no mínimo, indiferente às
agruras por que passam os seus semelhantes.
Este artigo critica essa visão a partir da perspectiva
do liberalismo[1].
Como se demonstrará, o liberalismo também visa ao bem dos demais, porém o faz
por mecanismos distintos. Os exemplos demonstrarão, ainda, que mesmo algumas das
bandeiras ditas da esquerda tornam-se, em verdade, mais bem defensáveis quando
fundamentadas sobre princípios do ideário liberal.
Argumenta-se, portanto, que quem se preocupa com o bem
real do próximo verá, no liberalismo, ideário mais fundamentado e mais
eficiente para a consecução desse fim.
Espera-se que, com esse artigo, dirimam-se
desentendimentos sobre a relação entre liberalismo e bem-estar geral; e
espera-se, ainda, que pessoas que se identificam automaticamente com a esquerda
possam reconhecer, no ideário liberal, maior compatibilidade com a sua visão do
mundo.
Liberalismo e
bem-estar
Assim como outros ideários, o liberalismo visa ao
bem-estar geral; no dizer de Mises, "historicamente, o liberalismo foi o
primeiro movimento político que almejou a promoção e o bem-estar de todos, e
não o de grupos especiais"[2].
Não se trata de dizer, no entanto, que o liberalismo proponha
um plano central para a implantação do bem-estar de todos. Em realidade, reside
aqui uma das maiores distinções entre o liberalismo e o ideário de esquerda.
Duas formas de
organização
As organizações e ordens que se verificam no mundo
podem-se dividir, segundo Friedrich Hayek, em dois tipos[3]. De um lado, existem as
organizações artificiais, aquelas que criamos deliberadamente, racionalmente,
para a consecução de determinado fim. Um exemplo desse tipo de organização é
uma escola, por exemplo, criada racionalmente com funções e processos para o
provimento de educação a crianças.
De outro lado, existem estruturas que, muito embora
sejam bem ordenadas, não são produto de um planejamento deliberado. Um exemplo
disso é a linguagem. Sem dúvida, a linguagem é fruto da ação humana, sendo
resultado das infinitas interações e transformações que sofreu em sua
utilização diária ao longo de séculos; mas ela não deve sua ordenação ao fato
de que pessoas a desenharam deliberadamente. A linguagem é um fenômeno
espontâneo, que, embora seja ordenado, não conta com planejamento central.
Em sua busca pela promoção do bem-estar geral, a
esquerda tende a privilegiar organizações do primeiro tipo, em que entes
centrais planejam e executam planos de forma deliberada e racional. O
liberalismo, por sua vez, argumenta que as
ordens espontâneas são mais eficientes e trazem menos riscos aos indivíduos.
Dos princípios
do liberalismo à ordem espontânea do mercado
O liberalismo inicia-se com o princípio básico da
liberdade individual[4], o que inclui a liberdade
de expressão, a de contratar e de se relacionar com quem bem entender (desde
que com mútuo consentimento), e a de possuir propriedade privada.
Quando essas liberdades são garantidas, as pessoas
começam a produzir, a inovar, a aprimorar suas propriedades, a contratar e a
trocar com outros indivíduos. Logo se verifica, assim, uma dinâmica de trocas
que envolve milhões de pessoas, em cidades e países diversos; e essa dinâmica é
tão ordenada que pode parecer que alguém a coordena — que há burocratas, ou um
computador central, que orientam todas as ações dos indivíduos na economia.
Como se sabe, no entanto, cada indivíduo está agindo
conforme suas próprias preferências (sejam egoístas, sejam altruístas); a ordem
que verificamos nessa dinâmica de trocas não é, portanto, resultado de criação
deliberada, mas sim uma ordem espontânea, que emerge como efeito colateral das
inúmeras ações dos indivíduos e de suas relações no dia a dia.
A essa dinâmica de trocas em constante movimento o
liberalismo chama de mercado.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a distinção entre
o liberalismo e os ideários de esquerda refere-se, sobretudo, aos meios pelos quais o bem-estar de todos
possa, e deva, ser alcançado. A esquerda costuma privilegiar ações
centralizadas e planificadas, normalmente pelo uso do estado; e o liberalismo
costuma preferir a ordem espontânea que emerge com a livre-interação e a livre-contratação
pelos indivíduos no mercado.
Direitos
naturais e o papel do estado
A esquerda costuma ver o estado como o principal promotor
do bem; qualquer problema social deve ser objeto de solução pelo estado,
comumente por meio de novos programas sociais e novas leis, que devem ou
permitir, ou proibir, toda e qualquer ação. Essa visão implica, ainda, que os
direitos dos cidadãos — como à vida, à segurança, ou à propriedade — somente
existem porque são conferidos pelo estado. A esquerda faz parecer que os
indivíduos devem agradecer ao estado, ou à constituição, por terem direitos.
Na perspectiva do liberalismo clássico, essa visão representa
erro lógico — uma inversão entre precedente e consequente. O estado nada mais
é do que uma organização social construída por cidadãos, para os propósitos
definidos por estes mesmos cidadãos. As
pessoas têm direitos naturais, independentemente do estado; e, se
constituem o estado, é porque acreditam que essa seja uma via para a garantia
desses direitos. O estado existe para as pessoas, e não as pessoas para o
estado.
As ineficiências
da intervenção do estado
É comum que seres humanos se revoltem com determinados
problemas sociais. Veja-se, por exemplo, o caso de alguém que esteja doente,
mas não tenha recursos para contratar o tratamento. Essa situação é
indesejável, e indignar-se com isso não é reação exclusiva de nenhum campo
político. A diferença de visão no espectro político inicia-se, no entanto, no
debate sobre a maneira pela qual o problema deva ser resolvido.
A esquerda costuma justificar intervenções estatais
com base nas chamadas falhas de mercado;
o que raramente faz, no entanto, é cotejá-las com as falhas de estado. Note-se que o liberalismo não diz que o
livre-mercado é perfeito; diz apenas que é melhor do que a ação centralizada do
estado.
Em seu clássico Economia em uma Única Lição,
Henry Hazlitt alerta para a consideração central de qualquer análise econômica:
toda intervenção na economia provoca
efeitos não-intencionais, em especial em outros grupos e ao longo do tempo.
Veja-se o seguinte exemplo. O estado brasileiro
decidiu que o setor automotivo nacional fosse protegido por meio de barreias à
importação. Com isso, reduzem-se as importações de automóveis; com essa
redução, as empresas nacionais sofrem menos competição; com a competição
reduzida, os automóveis disponíveis no mercado tenderão a ser mais caros e de
menor qualidade. A política de proteção a um setor termina, assim, por
prejudicar um número muito maior de pessoas, que são consumidoras no mercado, e
que ganhariam com os preços baixos e a qualidade proporcionados por maior competição
no setor.
Veja-se outro exemplo. Imagine-se que o estado imponha
regulação obrigando empresas de telecomunicações a oferecer acesso gratuito à
internet em regiões remotas do país. As antenas que as empresas deverão
instalar aumentarão seu custo de operação; como elas não desejam reduzir seu lucro,
farão o máximo para repassar o custo ao preço dos consumidores que pagam pelo
serviço. Os consumidores — inclusive os mais pobres —, passarão a pagar mais
pelo mesmo serviço, para poder bancar a cortesia oferecida pela regulação. E
ainda que o estado ofereça algum tipo de subsídio para a compra das antenas,
deve-se lembrar que o estado não produz riqueza; tudo o que tem é retirado dos
entes privados via cobrança de impostos[5]. O estado está, assim,
retirando de uns (inclusive dos pobres) para dar para outros. Acaso isso é justo?
A esquerda raramente faz análises que levem em
consideração os custos e os trade-offs
envolvidos; se visa a ajudar determinado setor — para, por exemplo, preservar
empregos —, parece não querer acreditar ser possível que a medida possa
prejudicar outro setor. A esquerda contenta-se com a pureza de suas intenções.
Afora o problema apontado, intervenções econômicas
exigem que façamos considerações de ordem ética. É justo, por exemplo, que os
consumidores (inclusive os mais pobres) tenham de arcar com automóveis mais
caros para a proteção dessa indústria? E, principalmente: quem, no estado, deve
deter o poder de fazer esse tipo de escolha entre beneficiados e prejudicados,
entre vencedores e perdedores? Acaso alguém deveria deter esse poder?
A intervenção do estado na economia, quando logra
amenizar um problema, o faz à custa da criação de outro problema; se melhora a
situação de um, termina por prejudicar a de outro.
O liberalismo costuma ser, portanto, receoso das consequências não-intencionais de toda
intervenção econômica.
A ação estatal e
o risco da tirania
A esquerda aponta que indivíduos agindo no
livre-mercado — como empresários — têm vícios; esses mesmos indivíduos, caso
virem funcionários públicos, no entanto, sofrem metamorfose: tornam-se
perfeitos. A esquerda costuma assumir que os burocratas que agem em nome do
estado têm os pré-requisitos para planejar e implantar o bem-estar geral.
No dizer de Vito Tanzi, muitos assumem que "a
intervenção do estado para corrigir as falhas de mercado é intrinsecamente
benevolente e que o estado é capaz de corrigir essas falhas
administrativamente. Os policy makers
que agem pelo estado são confiáveis, sábios e competentes agentes dos
eleitores. Eles têm a sabedoria de Salomão, o conhecimento do Google e a
honestidade dos santos"[6].
O liberal, no entanto, é cético quanto à ação estatal,
porque a implantação do bem-estar geral demandará concentração de poder e de riqueza
no estado. Essa concentração reduz o poder da sociedade, e pode torná-la refém
das elites que controlam o estado. E se os políticos e os burocratas
voltarem-se contra nós? E se aumentarem os impostos demasiadamente? E se
retirarem dinheiro das áreas prioritárias para aumentar os seus próprios privilégios?
E se começarem a fechar o regime, e limitarem a nossa ação? E se implantarem
censura? E se assassinarem opositores?
Por conta dos princípios de liberdade mencionados
anteriormente, os liberais são cautelosos e desconfiados do poder; e, em
especial, desconfiados de pessoas que querem deter poder. O liberalismo não é
indiferente à pobreza e à necessidade de bem-estar; apenas entende que o estado
traz riscos demasiados à liberdade individual, e por isso prefere soluções
menos arriscadas, menos centralizadas, com menos regulações, ainda que pareçam sub-ótimas
quando comparadas a um modelo hipotético e perfeito da realidade.
Atuação indireta
pelo estado
Não há consenso entre liberais sobre o tamanho ideal
do estado. Alguns defendem a sua extinção, ou ao menos a não-participação
voluntária; outros entendem que o estado deva prover serviços mínimos, como
segurança pública e justiça; e ainda outros defendem que o estado deva
financiar alguns outros setores básicos, como saúde e educação, àqueles que não
podem pagar.
Por conta das ineficiências e dos riscos trazidos pelo
estado, no entanto, liberais tendem a concordar quanto à diminuição da ação
direta pelo estado. Ainda que se queira que pessoas tenham acesso a determinado
serviço público, isso não significa que o estado deva provê-lo diretamente.
Por exemplo, imagine-se que queiramos ofertar alimentos
a pessoas em extrema miséria. Isso não significa, no entanto, que o estado deva
ele mesmo produzir comida e entregar às pessoas. Pode-se proceder, por exemplo,
como o bolsa-família, em que simplesmente se entrega o dinheiro diretamente nas
mãos de quem precisa. Ou seja: uma coisa é o valor que queremos agregar à
sociedade; e outra coisa é a forma de provimento desse valor.
Em geral, pessoas de esquerda costumam concordar com a
eficiência da transferência de dinheiro no caso do bolsa-família; o curioso, no
entanto, é que elas parecem não aceitar isso quando se fala em saúde e
educação. Imaginemos o que seria o bolsa-família se ele seguisse a lógica da
saúde, por exemplo, em que tudo — desde os prédios dos hospitais, passando
pelos equipamentos e gestão de pessoal — é estatal.
Nesse caso, teríamos fazendas públicas, estoques
públicos, centros de distribuição públicos; concursos para agricultores
públicos, estoquistas públicos e atendentes públicos; licitações públicas para
a manutenção de todos os ativos do programa; escritórios públicos de auditoria
e controle; escritórios públicos de apoio (administração, contabilidade,
informática) para suportar toda essa operação; e assim por diante.
Teríamos, por fim, uma enorme estrutura burocrática,
ineficiente e cara.
Além disso, a entrega direta de alimentos pelo estado
prejudica os mercados locais de alimentos, pois dificulta o cálculo e a
previsão de demanda que os empreendedores devem fazer para planejar seus
investimentos. Ao entregar o dinheiro às pessoas, no entanto, o estado evita
essa distorção, e permite que as pessoas continuem agindo nas mesmas estruturas
de mercado.
Deve-se considerar ainda que, com a entrega direta de
alimentos, o beneficiário não tem qualquer poder; se ele não gostar da
qualidade dos produtos, por exemplo, a quem irá recorrer? Como o estado
monopoliza o programa social, não haveria alternativa.
No caso da transferência em dinheiro, no entanto,
ocorre empoderamento do beneficiário;
ele mantém o seu poder de consumidor no mercado, podendo optar pelo melhor — e
mais barato — fornecedor de alimentos de sua região.
Direito de
escolha e paternalismo
A esquerda costuma aprovar o modelo de provimento do
bolsa-família; mas, comumente, não aceita o provimento em dinheiro quando se
trata de saúde e educação. Ao liberal isso não parece racional nem justo, e
entende que se deva atentar ao que prefere, de fato, a pessoa que receberá o
serviço.
Será que a pessoa vivendo a aflição da doença está
preocupada em ser curada em um hospital público ou privado? Será que lhe
importa o que pensa o sindicato dos médicos? Será que lhe importa se tal
política é "neoliberal" ou "privatizadora", de que muitas vezes se a acusa?
A visão liberal tende a responder negativamente essas
perguntas; mas suponhamos que haja pessoas que prefiram, de fato, ser atendidas
em hospitais estatais. Não há problema; basta que se confira, a todos, o direito de escolha. Quem preferir poderá
continuar sendo atendido em um hospital estatal; mas a escolha dessa pessoa não
deve obstruir a escolha de outra pessoa que, por exemplo, poderá preferir receber
o valor em dinheiro e contratar um plano de saúde privado.
Por fim, o liberal apontará, na visão da esquerda, certa
tendência paternalista de arrogar-se saber o que é melhor para os demais. Em
vez de empoderar as pessoas e deixá-las fazer as próprias escolhas, a esquerda
parece preferir que burocratas definam o que é melhor para a vida dos cidadãos.
Liberalismo e
pautas da esquerda
A esquerda costuma imaginar que a defesa de certas pautas
— como casamento homossexual, legalização das drogas, redução da violência
policial — são de sua exclusiva preocupação. De fato, determinados grupos
restringem sua adoção do liberalismo ao campo econômico, mantendo-se
reacionários em pautas comportamentais. A visão do liberalismo que costuma
prevalecer, no entanto, defende as pautas liberais de maneira geral, mesmo as comportamentais.
Veja-se abaixo como algumas pautas comumente defendidas pela esquerda podem ser
abordadas por um viés liberal:
Casamento homossexual. Na visão liberal, qualquer casamento deveria ser
possível, pois o estado não deve regular nenhum tipo de casamento, nem mesmo o
heterossexual. Casamento e relações sexuais são assuntos privados, e desde que
ocorram entre adultos com consentimento, não há intervenção justificável por
terceiros. O que o estado deve preservar é somente o contrato quanto às
consequências jurídicas da união, como divisão de bens.
Legalização das
drogas. O estado não deve regular o que
o indivíduo faz com o seu próprio corpo. É claro que há debates sobre as
maneiras de se legalizar, o gradualismo da mudança, e assim por diante. De todo
modo, na visão liberal, o indivíduo deve ser sempre livre para escolher.
Redução da
violência policial. A violência
policial é caso grave de violação da liberdade individual; não há grande
diferença de visão aqui. O que muitos liberais notam, no entanto, é que a
esquerda parece preocupar-se mais com a violência policial do que com a
violência em geral na sociedade. Para o liberal, o indivíduo que cometeu o ato
de violência deve ser devidamente responsabilizado e punido, independentemente
de quem seja.
Terras indígenas
e favelas. O direito à propriedade privada
é fundamental na visão liberal. A esquerda costuma ter preconceito com o
conceito de propriedade privada porque costuma pensar no grande empresário; mas
se esquece que esse direito vale, igualmente, para as terras indígenas e as favelas,
por exemplo. Os princípios liberais valem para o rico e para o pobre, para a
maioria e para a minoria. Ações do estado que visem a, por exemplo, construir
hidrelétricas em terras indígenas sem o consentimento de seus donos seriam
inaceitáveis numa perspectiva liberal da propriedade privada. Não há interesse
nacional que se deva sobrepor ao interesse do dono da propriedade privada. De
igual maneira, não há por que não conceder títulos de propriedade a moradores
de favela e outras formas de "ocupação". Não é função do estado acumular
propriedades.
O estado na
periferia. A esquerda almeja defender a
periferia, mas não leva em consideração todo o prejuízo da ação estatal nessas
regiões. O estado violenta o direito à propriedade privada, com desapropriações
e restrições no acesso à propriedade; fornece péssimos serviços em saúde,
educação e transporte; criminaliza pessoas em relação a atos que nem deveriam
ser ilegais, como uso de drogas; e age de maneira paternalista, assistencial,
em vez de empoderar as pessoas por meio da redução de impostos e redução do
tamanho do estado. Aqui alguém poderia objetar, referindo que o que se quer é
um estado que aja com justiça e eficiência. Como se explicou acima, no entanto,
o estado carrega consigo os riscos da tirania, e a melhor formar de proteger a
sociedade é reduzindo o tamanho do estado.
Vendedores
ambulantes. A esquerda costuma-se revoltar
quando vê a polícia confiscando produtos de ambulantes. Ocorre, no entanto, que
isso é apenas o resultado esperado da intervenção estatal na economia, da
regulação do mercado. Como se mencionou, o estado traz esses riscos, e a
opressão estatal sobre os pobres ambulantes é mais uma consequência
não-intencional de sua intervenção na economia. Caso se retirem as regulações,
reduzam-se as barreiras, e deixem-se livres os caminhos para o empreendedor,
restaria desimpedida a livre-iniciativa dos vendedores ambulantes. O
liberalismo entende que o estado não deve atrapalhar pessoas que queiram empreender,
trabalhar e progredir na vida.
Direito de
defesa. Infelizmente, existem pessoas
que não respeitam a liberdade individual de outras. O direito de defesa, com
todos os meios necessários — inclusive com arma de fogo —, é basilar para
muitos liberais, ainda que muitos defendam uma regulação mínima do porte de
armas. Note-se que o direito de defesa pode ser importante para a sobrevivência
em meio a problemas que a própria esquerda identifica em nossa sociedade; se
vivemos em uma cultura do estupro, por exemplo, é importante que mulheres
tenham mais meios de defesa à sua disposição.
Educação sexual,
escola sem partido e outros temas educacionais. Numa visão liberal, em que a educação não seria
provida de maneira direta pelo estado (mas talvez financiada pelo estado, por
meio de transferências diretas de dinheiro ou de vales-educação), esse problema
nem existiria. Os pais colocariam seus filhos nas escolas que preferirem, pelos
motivos que desejarem.
Legalização do aborto. Este é provavelmente o tema mais divisivo dentre os
liberais. Por um lado, uns entendem ser o direito ao aborto parte do direito da
mulher sobre o próprio corpo; por outro lado, outros entendem que o feto é uma
vida e, portanto, ele
próprio teria direito à preservação de sua vida. Há, ainda, os que entendem
que o aborto deveria continuar proibido, porém com penas mais brandas. Não há
consenso algum, e liberais de opiniões distintas convivem com essa diferença.
A humildade e a vantagem
ética do liberalismo
Como afirmou Mises, "o liberalismo não é uma doutrina
completa nem um dogma imutável"[7]. O liberalismo não
propugna a perfeição, nem a realização de sonhos utópicos; apenas apresenta
ideias e modelos de organização social que se provaram na prática como de menos
riscos e menos conflitos à vida em sociedade.
Na ordem liberal, os riscos são menores por conta de
seus princípios fundamentais e por conta da ordem espontânea do mercado, que
prescinde de centralização e de autoridades burocráticas. Os conflitos, por sua
vez, são reduzidos porque o liberalismo propõe o respeito absoluto à liberdade
individual; o liberal não se opõe a nenhum arranjo elaborado por outros
indivíduos, desde que ele não seja coagido a participar contra a sua vontade.
A visão liberal do mundo apresenta, portanto, maior
tolerância e respeito à diversidade do que qualquer outra ordem; de fato, ela é
tão livre, mas tão livre, que alguém pode até ser socialista dentro dela,
bastando juntar os amigos em uma propriedade comunal e dividir a renda
igualitariamente — só não pode coagir ninguém a sê-lo também[8]. Em vez de coação, deve-se
fazer uso da liberdade de expressão para tentar persuadir os demais à sua visão
de mundo — no caso, evidentemente, de as pessoas livremente escolherem ouvir.
A ordem liberal, baseada no respeito às liberdades
individuais, implica que o futuro será sempre desconhecido; implica que, na
maior parte das vezes, a sociedade não trilhará o caminho dos nossos sonhos. É
preciso, assim, ter a humildade de aceitar que não se pode impor aos demais um
plano, um projeto de engenharia social, baseado numa construção unilateral
feita por uma elite ou por um partido; os indivíduos devem ser respeitados em
sua subjetividade.
Ao criticar o liberalismo, ou o mercado, a esquerda
costuma compará-los com um mundo socialista idealizado; tal comparação é
injusta. Não se pode comparar o real de um sistema com o ideal de outro. Em sua
versão idealizada, o livre-mercado também seria o mundo perfeito de riqueza
plena para todos. A crítica justa deve comparar real com real, ideal com ideal[9].
A asserção conclusiva do liberalismo é que, ao se
proceder com a comparação justa, real com real, nenhum outro sistema de
organização social demonstra-se mais viável, mais conducente ao bem-estar
geral, mais resiliente, e menos arriscado, do que aquele baseado em seus
princípios. E isso ocorre não porque os liberais ocupam-se de planejar
centralmente a ordem perfeita, mas porque reconhecem o valor da ordem espontânea
que emerge com a liberdade de ação dos indivíduos.
[1] Em especial,
a partir do liberalismo humanitário, conforme definido por Jeffrey Tucker, em "Dois tipos opostos de
libertário – qual você é?".
[2] Ludwig von
Mises. Liberalismo.
[3] O argumento
desta seção é todo baseado na distinção proposta por Friedrich Hayek. Law, Legislation and
Liberty, v1. Chicago: The University of Chicago Press, 1983.
[4] Por conta do
enfoque do artigo, não me pareceu necessário estender-me aqui para, por
exemplo, abordar o princípio da não-agressão.
[5] A rigor, há
três formas de financiamento do estado: inflação, impostos, ou dívida.
[6] Vito Tanzi. Governments vs
Markets. New York: Cambride University Press, 2011. p. 4.
[7] Ludwig von
Mises, Liberalismo, p.
35.
[8] Esse
argumento é de Jason Brennan. Why
not capitalism.New York: Routledge, 2014.
[9] Esse argumento é
desenvolvido em Brennan, já citado, e em Jean-Fraçois Revel. Last Exit to Utopia. New York: Encounter
Books, 2009.