quinta-feira, 31 mar 2016
Comecemos por uma explicação sucinta, em sugestivas 13
etapas, do que são as pedaladas fiscais.
1)
Em épocas normais, o Tesouro Nacional repassa dinheiro para os beneficiários de
vários programas sociais, como Bolsa Família, seguro-desemprego e abono
salarial.
2)
Também em épocas normais, o Tesouro Nacional repassa dinheiro — só que agora
na forma de empréstimos subsidiados — para os beneficiários dos programas Minha
Casa, Minha Vida, Pronatec, e Fies. Igualmente,
ele também repassa — e também na forma de empréstimos, só que a um volume
muito maior — para as grandes
empresas, para os compradores de imóveis, e para os ruralistas de grande e
médio porte
3)
No item 1, o Tesouro transfere o dinheiro para a Caixa Econômica Federal e para
o Banco do Brasil, que em seguida repassa esse dinheiro para os beneficiados.
4)
No item 2, o esquema é o mesmo, só que agora ocorre na forma de empréstimos, e
não de meros repasses. Ou seja, o
Tesouro transfere dinheiro aos bancos estatais e estes emprestam esse dinheiro,
a juros bem abaixo da SELIC, para estudantes,
grandes empresas, compradores de imóveis, e ruralistas. Além de CEF e BB, o
BNDES também entra em cena.
5)
Esse esquema, embora sempre tenha existido, foi turbinado a partir do
último trimestre de 2008, com o intuito de estimular a economia em meio à crise financeira mundial.
Até o ano de 2013, ele funcionou como o esperado.
6)
Em 2014, porém, as contas
públicas entram em desordem. O
governo federal, que até então sempre conseguira fechar suas contas anuais com um
superávit primário (isto é, tendo receitas maiores que as despesas, excluindo o pagamento de juros da dívida),
vislumbra a possibilidade de fechar o ano com um déficit primário (isto é, receitas menores que as despesas, mesmo desconsiderando
os gastos com juros). Este seria o
primeiro déficit primário desde o início da série histórica.
7)
Para evitar esse vexame, principalmente em um ano eleitoral, o governo inventa
uma artimanha: com a intenção de maquiar as contas e transformar um déficit em
superávit, o Tesouro pede para os bancos estatais repassarem, utilizando capital próprio, o dinheiro dos
programas citados nos itens 1 e 2, sem que ele, Tesouro, tenha antes de transferir
aos bancos esse mesmo dinheiro.
8)
Ou seja, em vez de transferir dinheiro para os bancos estatais e os bancos
estatais então repassarem esse dinheiro para seus destinatários finais, o
Tesouro simplesmente pede para que os bancos estatais repassem eles próprios esse dinheiro, sob a promessa de que, futuramente,
o Tesouro os ressarcirá.
9)
O objetivo é claro: ao não transferir esse dinheiro para os bancos estatais —
ou, dizendo de outra forma, ao atrasar a transferência desse dinheiro para os
bancos estatais —, o Tesouro poderá utilizá-lo livremente em outras áreas. O dinheiro que antes seria gasto em
repasses aos bancos estatais agora pode ser gasto em outras atividades sem que
isso piore a contabilidade do orçamento. Cria-se a mágica
de fazer dois gastos distintos com um dinheiro só.
10)
Na prática, portanto, o Tesouro pede para os bancos estatais financiarem algo
que era de sua responsabilidade. Isso
passa a ocorrer mensalmente.
11)
Ao deixar de transferir mensalmente o dinheiro para os bancos estatais, o
governo fica livre para utilizar esse dinheiro como bem entender. Efetivamente, isso representa um aumento não-contabilizado de gastos: os gastos totais (gastos do governo mais gastos financiados pelos bancos) aumentaram, mas os gastos contabilizados permaneceram inalterados. Excelente estratégia para um ano eleitoral .
12)
Ou seja, os gastos sociais — agora financiados pelos bancos — seguem ocorrendo
normalmente, mas como nenhum dinheiro do governo foi direcionado para este fim, o que se tem, na prática, é um governo livre para utilizar esse dinheiro como quiser, sem que tais aumentos de
gastos sejam contabilmente registrados. Agindo
desta forma, o governo passa a apresentar mensalmente em seu balancete despesas
menores do que as que realmente ocorreram.
Assim, ele não apenas espera conseguir um superávit primário, ainda que artificial, como ainda consegue aditivar seus gastos em ano eleitoral sem que isso apareça na contabilidade.
13)
A intenção do governo é enganar o mercado financeiro, os especialistas em
contas públicas e as agências de classificação de risco.
Essa, em suma, é a definição de "pedaladas
fiscais": a prática do Tesouro Nacional de atrasar, propositalmente, a
transferência de dinheiro para bancos estatais com o objetivo de melhorar
artificialmente as contas públicas, ao mesmo tempo em que obriga esses bancos a
arcarem por conta própria com essas despesas, que são de responsabilidade do
Tesouro.
Ao deixar de transferir o dinheiro para os bancos
estatais, o governo apresentava despesas contabilmente menores do que as que
ocorreram na prática, numa tentativa de ludibriar os agentes econômicos.
As
duas encrencas
Mesmo um leigo em economia e em contabilidade não
teria nenhuma dificuldade para perceber que, na mais branda das hipóteses, há
algo de desonesto nesta prática. No
mínimo, está havendo uma adulteração das contas, o que pode ser entendido como
fraude.
Mas a coisa é ainda pior. Aliás, é duplamente pior. Essa prática não apenas infringe duas leis criadas pelo próprio governo, como
também é danosa para a economia.
Comecemos pela primeira parte.
Infração de leis
A definição precípua de crédito é: um valor
disponibilizado por uma entidade (o credor) para alguém (o mutuário ou devedor)
por um período de tempo determinado.
As pedaladas fiscais, como descritas, são claramente
uma operação de crédito entre os bancos estatais e o governo federal: os bancos
estatais (credores) disponibilizaram para o governo federal (mutuário), por um período
de tempo (a princípio, indeterminado), uma quantia de dinheiro, a qual deveria
ser quitada no futuro.
E daí?
E daí que eis o que diz o artigo 36 da
Lei de Responsabilidade Fiscal:
Art.
36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição
financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de
beneficiário do empréstimo.
Parágrafo
único. O disposto no caput não
proíbe instituição financeira controlada de adquirir, no mercado, títulos da
dívida pública para atender investimento de seus clientes, ou títulos da dívida
de emissão da União para aplicação de recursos próprios.
Ou seja, falando em termos populares, um banco
estatal não pode financiar o governo federal na forma de repasses diretos. O que um banco estatal pode legalmente fazer
é comprar títulos do Tesouro; ele não
pode simplesmente repassar dinheiro para o Tesouro ou (o que dá no mesmo)
gastar dinheiro em nome do Tesouro.
Em termos puramente legais, portanto, as pedaladas
fiscais atentam contra o artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
E foi exatamente assim que o Tribunal de Contas da
União entendeu
a situação. Esses atrasos rotineiros
e volumosos nas operações entre o governo federal e os bancos estatais caracterizam
uma "operação de crédito entre uma
instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controla" com o
claro intuito de maquiar as contas públicas.
Apenas em 2014, nada menos que R$
40 bilhões foram usados em pedaladas, o que significa que essa prática
retirou indevidamente R$ 40 bilhões da apuração da dívida pública.
Eis a participação de cada banco estatal nas
pedaladas apenas em 2014 (lembrando que o FGTS está sob responsabilidade da
Caixa):

A própria Caixa Econômica Federal reconheceu
que tinha de mensalmente bancar os
gastos do Tesouro, às vezes em montantes que chegavam a quase R$ 6 bilhões de
reais.

(O principal banco a fazer as pedaladas, como mostra
o primeiro gráfico, foi o BNDES, por meio do PSI (Programa de Sustentação de
Investimento), criado em 2009. Quem
tomava dinheiro por essa linha, para comprar máquinas e equipamentos, pagava juros
de 2,5% ao ano, o que equivalia a taxas
reais negativas, considerando o IPCA de mais de 6% à época.)
Mas tudo isso foi em 2014. Ao final de 2015, ano em que as pedaladas
continuaram, tudo piorou: o
valor total já estava em incríveis R$ 72,4 bilhões.
E Dilma com tudo isso? Desrespeitar um artigo da Lei de
Responsabilidade Fiscal é motivo para impeachment?
A encrenca está em outra lei: a Lei 1.079/50 (alterada
em outubro de 2000 pela Lei 10.028/00). Segundo
esta lei, são crimes de responsabilidade
do presidente da República:
Artigo
10, inciso 6:
Ordenar
ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos
pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito
adicional ou com inobservância de prescrição legal.
Artigo
11, inciso 3:
Contrair
empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito
sem autorização legal.
Dado que o TCU considerou que as pedaladas foram uma
operação de crédito, e que tal operação nunca foi votada pelo Senado, nem nunca
foi fundamentada na lei orçamentária, e nem nunca teve prescrição ou autorização
legal, então tal prática claramente violou duas leis: a Lei de Responsabilidade
Fiscal e a Lei
1.079/50, esta última sendo clara ser sua violação crime de
responsabilidade do presidente da República.
Há base para impeachment? Isso é um assunto que deixo para os nobres
causídicos. Mas que Dilma cometeu
crimes, isso é inegável.
No entanto, o pior crime foi aquele que,
estranhamente, não é considerado crime passível de punição.
Inflação e destruição da economia
Quando o Tesouro transfere dinheiro para os bancos
estatais, e estes então repassam esse dinheiro para terceiros, tal operação,
por si só, não é inflacionária. A
quantidade de dinheiro na economia permaneceu inalterada.
Aquilo que o Tesouro arrecadou via impostos, ele transferiu
para os bancos, que então repassaram para terceiros. O dinheiro mudou de mãos e gerou privilégios
para uns e desvantagens para outros; mas, por si só, tal operação não é
inflacionária.
Já quando o Tesouro não transfere nada para os
bancos, mas os obriga a repassar dinheiro para terceiros, a situação muda
completamente. Nesse caso, os bancos repassarão
dinheiro (no caso dos gastos sociais) ou emprestarão dinheiro (no caso de
financiamentos) para terceiros, e ficarão à espera do Tesouro lhes transferir
esse valor.
Mas os bancos — e esse é o pulo do gato — não emprestam
ou repassam um dinheiro que está "guardado dentro da gaveta" ou em um "cofre
para emergências". Não é assim que
funciona o atual sistema bancário. No atual
sistema bancário, que opera com reservas fracionárias, bancos criam dinheiro eletrônico
do nada e emprestam (ou repassam, no caso das pedaladas) esse dinheiro.
No caso das pedaladas, a operação dos bancos
estatais segue a mesma mecânica de um empréstimo convencional: os bancos criam
dinheiro do nada — na verdade, meros dígitos eletrônicos —, repassam esse
dinheiro para pessoas ou empresas (acrescentam esses dígitos na conta do beneficiado),
e então ficam à espera de que o Tesouro lhes transfira o valor desse repasse. E, enquanto o Tesouro não fizer isso, a
quantidade de dinheiro na economia terá aumentado.
Veja a sequência:
1) Suponha que você é o governo e tem $ 100 para gastar.
2) Destes $ 100, $ 90 você gasta com despesas correntes, e os outros $ 10 você repassa aos bancos estatais.
3) Aí você percebe que é mais negócio "pedalar". Você chega para a CEF e para o BB e diz: "Olha só, repassem vocês aí os $ 10, que mais tarde a gente acerta".
4) Ato contínuo, liberado desta obrigação de repassar $ 10 para os bancos estatais, você agora tem $ 100 para gastar com suas despesas correntes, e não mais $ 90.
5) Observe que o seu gasto total continua em $ 100. Antes, você gastava $90 em despesas correntes, e $ 10 com repasses. Agora você gasta todos os $ 100 exclusivamente em despesas correntes.
6) Simultaneamente, os bancos estatais criam os $ 10 e os transferem para seus destinatários.
7) Como consequência, a quantidade de dinheiro na economia aumentou de $ 100 para $ 110, o governo ficou com $ 10 extras para gastar no que quisesse, e os programas sociais e demais empréstimos subsidiados dos bancos estatais seguiram impávidos.
Fraude total.
Mais ainda: uma fraude inerentemente
inflacionária. Ela aumenta a quantidade de dinheiro na economia. De um lado, os bancos criaram dinheiro eletrônico
e repassaram esses dígitos eletrônicos para terceiros. De outro, o Tesouro não subtraiu igual
quantia (de dígitos eletrônicos) de ninguém para repassá-la ao banco. Portanto, no saldo final, a quantidade de
dinheiro na economia aumentou.
E, como mostrado acima, o total das pedaladas —
isto é, a quantidade de dinheiro que foi criada e jogada na economia apenas por
essa modalidade inventiva — foi de R$
72,4 bilhões.
Para se ter uma ideia, tal valor é igual à quantidade total de crédito
concedida pelos bancos privados neste mesmo intervalo de tempo (anos de 2014
e 2015).
Vale repetir: apenas
com as pedaladas, os bancos estatais jogaram na economia a mesma quantidade
de dinheiro que os bancos privados jogaram em
todas as suas modalidades de empréstimo durante esse mesmo período de
tempo.
Mais ainda: esse valor das pedaladas representou o valor
em que o governo aumentou seus gastos sem
ter receitas equivalentes — o que, na prática, representa um déficit.
E você estranha que a carestia esteja alta, que o
real tenha se desvalorizado
tão acentuadamente, e que os juros não tenham surtido efeito?
Conclusão
Quais foram, portanto, as consequências diretas das
pedaladas?
Aumento da quantidade de dinheiro na economia (inflação
monetária), aumento não-contabilizado de gastos, e subsequente destruição do
orçamento do governo causada por essa maquiagem contábil.
Quais foram as consequências indiretas?
Consolidação do déficit orçamentário em níveis recordes
(nada menos que 9% do
PIB) por causa do aumento de gastos possibilitado pelas pedaladas, perda do
grau de investimento pelas
três agências de classificação de risco, disparada da taxa de câmbio,
aumento da inflação de preços
a dois dígitos, queda
da renda real dos trabalhadores (gráfico 14) e,
inevitavelmente, aumento
da pobreza.
Este foi o verdadeiro crime do governo Dilma.