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Governos de esquerda que adotam reformas liberais

Há alguma esperança com Nelson Barbosa?

23/12/2015

Governos de esquerda que adotam reformas liberais

Há alguma esperança com Nelson Barbosa?

À exceção dos governos de Margaret Thatcher e Augusto Pinochet, as grandes reformas liberais e os grandes atos de desregulamentação implantados nos séculos XX e XXI ocorreram, ironicamente, sob governos de esquerda -- ou que ao menos se declaravam como de esquerda.


Jimmy Carter

Pouco crédito lhe é dado, mas foi Jimmy Carter quem iniciou todo o processo de desregulamentação da economia americana.  Ronald Reagan, seu sucessor, apenas deu continuidade (o que não tira o seu mérito, ao contrário).

Por exemplo, foi Carter quem desregulamentou o setor de transportes aéreos. Até a década de 1970, os preços das passagens aéreas nos EUA eram controlados pelo governo, que também concedia monopólios sobre determinadas rotas para determinadas companhias aéreas -- as extintas PanAm e TWA lucraram os tubos com essa regulamentação -- e impedia a entrada de novos concorrentes.  

O mercado aéreo americano era extremamente regulado e protegido, beneficiando os grandes e mantendo de fora os pequenos.

Carter então aboliu, em 1978, a Civil Aeronautics Board -- agência reguladora que controlava todos os aspectos do mercado aéreo americano --, permitindo, pela primeira vez, a livre concorrência no setor.  Preços passaram a ser determinados pelo mercado -- e despencaram -- e outras empresas passaram a poder ofertar seus serviços para todas as rotas existentes.

Foi Carter também quem desregulamentou o setor de transporte de cargas por caminhões e trens.  Carter aboliu a Interstate Commerce Commission -- agência reguladora que controlava todo o mercado de transportes de carga -- e assinou o decreto Motor Carrier, o qual desregulamentou por completo toda a indústria de caminhões de transporte e permitiu total liberdade de preços e de concorrência para o setor.  Não foi à toa que o Teamster's Union -- poderoso sindicato dos caminhoneiros liderado pelo famoso Jimmy Hoffa, e que usufruía um quase-monopólio do transporte de cargas -- declarou apoio a Reagan nas eleições de 1980, tão revoltados ficaram com a perda do quase-monopólio.

Foi Carter também quem nomeou o juiz que quebrou o monopólio da telefônica AT&T, monopólio esse concedido pelo governo americano ainda em 1913, pois o serviço era considerado um "monopólio natural".  A AT&T até então controlava todas as chamadas de longa distância.

Finalmente, foi Carter quem, em agosto de 1979, nomeou o durão Paul Volcker para o Fed -- até hoje considerado o melhor presidente que a instituição já teve --, que subiu a taxa básica de juros para 20% e, com isso, conseguiu quebrar a espinha da estagflação americana.

Todas essas medidas geraram frutos no governo Reagan.

Agora, será que o esquerdista Carter desregulamentou mercados, aboliu agências reguladoras, brigou com sindicatos, e nomeou o falcão Volcker para o Fed por ideologia e convicção?  Obviamente que não. 

Ele teve de fazer tudo isso justamente para evitar um colapso econômico.  À época, os EUA viviam uma permanente estagflação -- decorrente da abolição do que restava do padrão-ouro --, de modo que abolir monopólios, permitir a livre concorrência e gerenciar a moeda de forma mais rigorosa eram as únicas opções viáveis.  Ou ele fazia isso ou ele entraria para a história como o presidente que deixou a economia ser destruída.

Roger Douglas

Talvez o mais mundialmente famoso exemplo de um governo de esquerda que teve de adotar abrangentes medidas liberais e desregulamentar vários setores da economia seja o governo trabalhista eleito em 1984 na Nova Zelândia.

Na década de 1980, a Nova Zelândia, que até então fora um país rico (ao final da década de 1950 era a terceira maior renda per capita do mundo), havia se tornado um país relativamente atrasado (a renda per capita era igual às de Portugal e Turquia), estagnado e sem grandes perspectivas. A economia era engessada, fechada, protegida e ineficiente.  Um grave déficit orçamentário e uma inflação de preços em dois dígitos completavam o quadro.

E então, em meados da década de 1980, um governo de esquerda fez o inimaginável e adotou medidas contrárias à sua ideologia: redução de privilégios, abolição de tarifas protecionistas, abolição completa de subsídios, redução de impostos, redução de gastos, desregulamentação de todos os setores da economia, e, principalmente, forte redução da máquina pública, com a abolição de vários ministérios e a demissão de vários funcionários públicos, os quais rapidamente encontraram emprego no setor privado.

Telecomunicações, empresas aéreas, esquemas de irrigação, serviços de informática, gráficas governamentais, empresas de seguro, bancos, ações, hipotecas, ferrovias, serviços de ônibus, hotéis, empresas de navegação, serviços de assessoramento agrícola -- tudo o que era estatal foi vendido.  A produtividade disparou; os custos caíram. (Veja todos os detalhes aqui).

De uma hora para outra, a Nova Zelândia se livrou de seus parasitas e escancarou as portas da oportunidade para que produtores e empreendedores pudessem criar riquezas e aumentar o padrão de vida de todos os neozelandeses.

Por que um governo de esquerda fez isso?  Porque estava acossado pela realidade econômica.  Não havia espaço para aventuras.  O orçamento já estava dizimado, a dívida pública estava alta, a moeda estava se desvalorizando rapidamente e a inflação de preços já estava em quase 17%.  Não havia alternativa senão a racionalidade.

Décadas de 1990 e 2000

As décadas de 1990 e 2000 foram pródigas em exemplos de governos de esquerda adotando o racionalismo econômico.

Tony Blair

Foi sob um governo trabalhista -- de Tony Blair -- que o Banco Central da Inglaterra adquiriu independência efetiva para determinar os juros.  Até então, quem determinava os juros era o ministro da fazenda britânico (o qual, como tudo que é britânico, recebe o pomposo nome de Chanceler do Exchequer). 

O governo trabalhista, que voltava ao poder após 19 anos de governo Conservador -- e que, da última vez em que esteve no poder, na década de 1970, levou a inflação de preços para 25% -- teve de tomar essa medida para evitar a grande inquietação do mercado financeiro, que temia a volta das políticas inflacionistas dos trabalhistas.  Os trabalhistas tiveram de abrir mão do poder de estipular a taxa básica de juros e delegar este poder a um Banco Central independente.

Gerhard Schroeder

Na Alemanha, foi o social-democrata Gerhard Schroeder, primeiro-ministro de 1998 a 2005, que, para controlar um crescente déficit orçamentário e reduzir um desemprego que chegava a 12% e que era um dos maiores da Europa (maior até mesmo que o da França à época), adotou várias medidas que desagradaram em cheio a sua base de apoio: chamada de Agenda 2010, Schroeder desceu a tesoura no até então generoso estado de bem-estar alemão, fazendo cortes em vários programas como seguro-desemprego (cuja concessão se tornou bem mais rigorosa e a duração foi encurtada), previdência e até mesmo na saúde. 

Pecado dos pecados, flexibilizou o mercado de trabalho e reduziu as alíquotas do imposto de renda de pessoa jurídica (de 56,8% para 38,7%) e de pessoa física (de 57% para 44,3%).

Schroeder, talvez por ter adotado tais medidas impopulares já no final de seu mandato -- janeiro de 2005, sendo que as eleições seriam em novembro daquele ano --, não apenas não colheu os frutos de suas reformas, como ainda foi punido pelos seus eleitores nas urnas. 

Foi Angela Merkel quem colheu os louros: o desemprego alemão caiu de 12% para 4,5%, um dos menores da Europa.  E o orçamento ficou equilibrado.

François Mitterrand

Na França, as principais privatizações do país ocorreram no governo do socialista François Mitterrand: a Compagnie Générale d'Electricité (que se tornou a Alcatel), o banco Paribas, o banco Société Générale e a rede de televisão TF1. 

Por que o governo socialista fez isso?  Acossado por uma economia estagnada -- causada pelas políticas intervencionistas inicialmente adotadas por Mitterrand -- e por sérios problemas financeiros, o governo tinha de conseguir receitas de algum lugar (dado que a carga tributária já era elevada).

Bill Clinton

No entanto, ninguém supera Bill Clinton. 

Tendo feito uma campanha prometendo aumento de gastos, reforma do sistema de saúde e mais políticas sociais -- os EUA ainda viviam os efeitos da recessão de 1991 --, Clinton, tão logo assumiu a presidência, enfrentou um problema semelhante ao que enfrentou Tony Blair: a desconfiança do mercado financeiro.

Imaginando que o presidente democrata faria jus às suas promessas de campanha, e com o Congresso controlado por Democratas ávidos por mais gastos, inclusive com a intenção de reformar o sistema de saúde americano, tornando-o mais socialista, os investidores reagiram de acordo: começaram a se livrar dos títulos do governo americano, vendendo-os em grande volume.

Consequentemente, os juros dos títulos de 10 anos saltaram de 5,2% para 8% (uma exorbitância para os padrões americanos).

Acossado por essa perda de credibilidade -- episódio esse que ficou conhecido como a ação dos "bond vigilantes" ("justiceiros dos títulos") --, e com mais dificuldade para ter seus déficits financiados, Clinton fez uma guinada surpreendente em sua política econômica: sob a orientação de Robert Rubin (um dos melhores secretários do Tesouro que os EUA já tiveram), Clinton passou a demonstrar uma invejável -- e até hoje inigualada -- austeridade fiscal: foi o único presidente americano desde a década de 1950 a apresentar um orçamento com superávit nominal.

Mais ainda: para desespero de sua base de apoio, Clinton fez uma abrangente reforma do estado de bem-estar social, cortando benefícios e adotando quase que integralmente uma plataforma dos Republicanos.  Dentre outras coisas, a concessão de seguro-desemprego foi endurecida e os prazos foram encurtados.  Mães solteiras que tinham filhos e que viviam de assistencialismo tiveram de voltar a trabalhar. 

Houve uma revolta na base aliada por causa da adoção dessas políticas, e alguns auxiliares próximos a Clinton pediram demissão e foram à imprensa se posicionar publicamente contra a medida.  Em vão.

Ainda mais famosa se tornou a frase de Clinton, pronunciada durante o seu "Discurso sobre o estado da União", em 1996: "The era of big government is over" ("A era do estado grande acabou").

Para completar, Clinton ainda reduziu o imposto sobre ganhos de capital, descentralizou os limites de velocidade nas rodovias americanas (passando essa atribuição, que até então era do governo federal, para os estados), e reduziu o número de burocratas na Casa Branca.

Quando Clinton assumiu a presidência em janeiro de 1993, os gastos do governo equivaliam a 22,1% do PIB.  Quando saiu, em janeiro de 2001, estes haviam caído para 18,2% do PIB

(Melhor do que Clinton, só Warren G. Harding, o presidente cujas políticas fizeram com que a grande depressão ocorrida no ano de 1920 terminasse tão rapidamente, que hoje ninguém fala nada sobre ela).

Não é à toa que o economista Steve Hanke rotulou Clinton como "o rei do aperto fiscal". 

E a economia americana, durante os anos Clinton, apresentou uma prosperidade invejável, crescendo acima de 4% durante 5 anos seguidos, com o desemprego caindo de 8% para 4% e com um número recorde de pessoas empregadas em relação ao total da força de trabalho disponível.

Lula-Palocci

De certa forma, também temos um exemplo.  Como explicado em maiores detalhes neste artigo, a desconfiança dos mercados em relação a Lula tão logo ele assumiu a presidência obrigou sua equipe econômica a fazer um ajuste fiscal e a adotar medidas econômicas ortodoxas em um grau ainda maior do que teria sido exigido de um presidente mais liberal.

O então Ministro da Fazenda Antônio Palocci montou uma equipe econômica formada exclusivamente por técnicos, sem nenhum quadro do PT ocupando os grandes cargos. Nomes renomados como Joaquim Levy (sim, o próprio), Marcos Lisboa e Murilo Portugal foram pra Fazenda, ao passo que o banqueiro Henrique Meirelles acompanhado de Alexandre Schwartsman, Ilan Goldfajn e o durão Afonso Beviláqua (que queria um IPCA próximo de 3%) foram para o Banco Central.

Essa equipe econômica, justamente para restaurar a confiança do mercado em um governo de esquerda -- o dólar havia disparado de R$ 2,50 para R$ 4, e os juros cobrados pelos investidores em alguns títulos chegaram a incríveis 32,5% --, teve de adotar uma política econômica extremamente ortodoxa, baseada no cumprimento de contratos, na liberdade de preços, em uma política fiscal austera, na elevação do superávit primário para 4,25% do PIB (hoje é necessária muita maquiagem contábil pra se chegar a 0,5%), e em uma política monetária dura e restritiva (a SELIC foi elevada para 26,50%), garantida por um Banco Central com total autonomia operacional.

Uma vez implantada essas políticas, todas elas mais rigorosas que as do governo anterior, a confiança começou a voltar ao mercado. 

Conclusão

Tendo tudo isso em mente, pode-se concluir que o mercado financeiro -- principalmente os "justiceiros dos títulos", como aqueles que acossaram Bill Clinton -- é um poderoso instrumento para manter alguma restrição sobre governos que ameaçam degenerar para o populismo.

Em alguns casos, a pressão sobre o governo -- e o temor deste em perder o controle da situação, vendo os juros sobre seus títulos subirem e, com isso, tornarem o déficit extremamente caro para ser financiado -- se torna tão grande, que um chefe de governo eleito com uma plataforma de esquerda acaba tendo de adotar medidas ainda mais ortodoxas do que aquelas que seriam adotadas pelo seu oponente mais liberal.

Ao passo que o mercado financeiro estaria satisfeito com "reformas meia-boca" adotadas por um governo mais pró-mercado, este mesmo mercado acaba exigindo de governos com tendências populistas a adoção de medidas ainda mais ortodoxas e liberais apenas para lhe devolver a confiança.

E dado que governos de esquerda contam, ao menos em teoria, com o apoio de sindicatos e demais grupos sociais, acaba sendo mais fácil para eles adotar medidas ortodoxas do que seria para um governo mais liberal.

Estaria eu dizendo que a dupla Dilma-Barbosa seguirá esse mesmo roteiro?  Não sou tão ingênuo.  Mas uma coisa é certa: aquele cenário favorável que Lula usufruiu quando abandonou a ortodoxia e adotou políticas mais populistas -- um dólar mundialmente fraco, o qual permitia que expansões do crédito e aumento de gastos não se traduzissem imediatamente em inflação de preços -- não mais está presente. 

No atual cenário de dólar mundialmente forte, o espaço para aventuras populistas do atual governo Dilma é praticamente mínimo: qualquer medida heterodoxa e populista adotada irá imediatamente se traduzir em desvalorização do real perante o dólar, aumento da inflação de preços e aumento dos juros exigidos pelos investidores para financiar os títulos de longo prazo. 

(Atualmente, estes juros estão variando entre 16,30% e 16,60%, sendo que, no auge do entusiasmo com Levy, chegaram a estar entre 11,70% e 12,40%.)

A situação é agravada pelo fato de que o atual governo não usufrui mais nenhuma confiança ou prestígio perante os mercados mundiais -- ao contrário do governo Lula, que, após seguir políticas econômicas ortodoxas de 2003 a 2008, ainda tinha grade prestígio e era visto como responsável e confiável quando reverteu sua postura em 2009.

Ou seja, caso Nelson Barbosa queira ter algum refresco dos "justiceiros dos títulos" -- e ele precisa deles para financiar os déficits do governo --, é bom ele começar a dançar de acordo com a música.  O espaço para medidas populistas impunes acabou.

Pode começar se inspirando em Bill Clinton.


Sobre o autor

Leandro Roque

Leandro Roque é editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

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