segunda-feira, 18 jul 2016
Obs: Este artigo foi originalmente publicado no dia 22 de dezembro de 2015. Como o Brasil é tristemente repetitivo, os assuntos simplesmente não saem de moda.Após a
suspensão inesperada do
WhatsApp, na semana passada, o presidente do Instituto Mises Brasil Helio
Beltrão
afirmou:
O
pessoal entusiasmado com tecnologia e que acha que esta pode nos proteger do
estado tomou uma ducha de água fria com o bloqueio do WhatsApp com uma mera
canetada de uma juíza.
Esta
foi uma 'chamada para o despertar'. A tecnologia não pode nos proteger do
estado, pois as pessoas (os dirigentes da tecnologia, os intermediários e
provedores que possibilitam o serviço, e as contrapartes que utilizam o
serviço) estão sempre localizadas em algum lugar e podem ser punidas pelo
estado.
Curiosamente, tão logo o bloqueio legal foi colocado
em prática pelas operadoras de celular, os brasileiros usaram a própria
tecnologia — como VPNs e o Telegram — para contornar as imposições estatais. Talvez
a tecnologia possa, enfim, nos proteger do estado.
Esse episódio é tão emblemático que merece uma
reflexão por diferentes prismas. Deixarei a parte da tecnologia para o final.
Antes, tratemos da desobediência civil maciça ocorrida em escala nacional na
semana que passou.
Desobediência
civil
Depois do efetivo bloqueio do WhatsApp, muitos
prontamente escolheram burlar a suspensão do aplicativo. Alguns cidadãos
manifestaram sua desaprovação por essa atitude, chegando a considerar o ato uma
contravenção, pois os burladores estavam infringindo a lei.
Outros, mais brandos, afirmaram que se tratava
meramente de mais um exemplo do rotineiro "jeitinho brasileiro", aquela
corrupção nossa do dia-a-dia.
Confesso que essas colocações me fizeram refletir.
Será que têm razão de fato? Ou estaríamos apenas cumprindo nosso dever moral —
e seguindo a máxima
de Martin Luther King Jr. — de rechaçar e desobedecer leis injustas?
De acordo com alguns advogados, a decisão da
juíza foi desproporcional, injusta e feriu os próprios princípios da
Constituição Federal. Mais por sentimento e razão do que conhecimento jurídico,
creio que a desobediência civil praticada por milhares (talvez milhões?) de
brasileiros tenha sido plenamente justificada.
Contudo, essa distinção nem sempre é fácil. Como
saber quando uma lei é injusta? Como discernir se um ato legislativo é correto?
Qual deveria ser o critério? Especialmente nos dias de hoje, em que a lei
tornou-se um artifício recorrido por uma minoria para fazer uma espoliação
coletiva, distinguir entre o que é correto e justo do que é errado e injusto é
uma tarefa inglória.
Para o famoso liberal clássico Frédéric Bastiat, as leis não
podem ter outra finalidade, outra missão que não a de proteger a vida, a
liberdade e a propriedade dos indivíduos, uma vez que "A vida, a liberdade e a
propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao
contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes,
que os homens foram levados a fazer as leis". A lei, portanto, deve fazer imperar
entre todos a justiça.
Sob esse critério, qualquer lei que agrida a vida e
a propriedade de terceiros deveria ser considerada injusta e inaceitável. Se
analisarmos, sob essa ótica, o arcabouço legal vigente, consideraríamos 99% de
todo o emaranhado de legislações e regulações existente no Brasil um grave
atentado à propriedade privada. Se cumprirmos todas as leis, não reinará a
justiça, mas triunfará o esbulho da propriedade alheia. Cumpre-se a lei, mas
não se faz justiça.
Então, se uma lei é injusta e atenta contra a nossa
propriedade, deveríamos acatá-la? Estaria realmente justificada a desobediência
civil diante de leis injustas? Seria legítimo criar mecanismos para praticar a
desobediência civil? E se uma tecnologia nos fornecesse meios de contornar leis
injustas, seria correto adotá-la? Por fim, e se, por meio da tecnologia, tornássemos
completamente inócua a ameaça de violência estatal ao simplesmente
impossibilitá-la na prática, blindando os indivíduos da agressão
institucionalizada? Deveríamos fazer uso de tais tecnologias? Ou as julgaríamos
ilegítimas?
As perguntas abundam e as respostas frequentemente
adentram uma área cinzenta; o preto e o branco não são facilmente discerníveis.
A era digital tem nos submetido à reflexão ao quebrar uma série de paradigmas
antes inimagináveis.
A
tecnologia irá, sim, nos libertar
Por exemplo, devido à evolução tecnológica, a
liberdade de expressão hoje não mais depende da concessão estatal, assim como a
liberdade e privacidade de comunicação. Já temos tecnologia plenamente
funcional para preservar a privacidade de comunicação entre duas partes,
independentemente de localização geográfica, vedando a qualquer agente —
inclusive aos estados — o acesso não consentido. Se algum estado, sob qualquer
justificativa, decretar que a utilização dessa tecnologia é ilícita, tal lei
seria injusta ou seria o meio de comunicação realmente ilegítimo?
A criptografia é um exemplo de evolução tecnológica
que, aliada à era digital da internet, tem um potencial extraordinário. Não
surpreende, portanto, as recorrentes tentativas
de governos de banir o uso da "criptografia inquebrável" pelas empresas de
tecnologia como o Google e a Apple — sob o pretexto de combate ao terrorismo,
governos querem ter a possibilidade de exigir
das empresas que provêm serviços de comunicação acesso às trocas de mensagens privadas
de determinados usuários.
O fato é que a tecnologia pode proteger os
indivíduos não apenas de governos autoritários ou de leis injustas, mas também
de qualquer ator mal intencionado. A visão de que a tecnologia é incapaz de
resguardar as liberdades individuais advém do puro desconhecimento da potencialidade da
criptografia moderna e das redes descentralizadas (ou P2P, peer-to-peer).
Poucos libertários têm consciência do poder dessas
tecnologias. Estes, em sua vasta maioria, costumam se especializar em economia,
direito, filosofia e política; mas pouquíssimos dominam a ciência da computação
e da criptografia. E ao não terem plena compreensão desse campo do conhecimento científico,
acabam concedendo que, perante o estado, somos todos impotentes.
Mas isso não é verdade. A própria realidade é prova
disso.
Hoje temos pelos menos dois exemplos de tecnologias
em ampla utilização no mundo, contra as quais o estado nada pode fazer: o
BitTorrent e o Bitcoin.
Ambas as tecnologias são resultado de décadas de
pesquisa em ciência da computação e criptografia. Ambas são adaptações e
evoluções de modelos de rede e segurança ultrapassados, os quais tinham como
vulnerabilidade a centralização — justamente o tendão de Aquiles que permitiu
à juíza lograr a efetiva proibição do WhatsApp.
Ao fim dos anos 1990, o Napster era um dos grandes
propulsores das redes P2P. Mas seu sistema não prescindia de um servidor
central e por isso sucumbiu. Redes como a do Napster possuem uma debilidade
chamada "ponto único de falha" (single
point of failure). A sofisticação das redes efetivamente descentralizadas
está precisamente na ausência de um "ponto único de falha".
Os protocolos do BitTorrent e do Bitcoin adotam
justamente esse modelo de rede. Não há servidores, não há um ponto central, não
há uma empresa encarregada do funcionamento do protocolo. Cada cliente se
conecta diretamente a outros clientes. Até hoje o BitTorrent não foi derrubado
simplesmente porque não há o que derrubar. Não há quem cercear porque não há
ninguém para ser intimado ou intimidado. Tampouco tiveram êxito as tentativas
de censurar a rede do Bitcoin. Resiliência é a palavra chave desse modelo de
redes.
Mas não seria possível alcançar algum intermediário
para bloquear essas tecnologias? Devido ao uso engenhoso da criptografia, a
resposta é não, não é factível localizar nenhum dirigente de empresa — até
mesmo porque não há uma —, nem intermediários, contrapartes ou provedores de
internet porque é virtualmente impossível obstruir o tráfego desses dados. A
criptografia se encarrega também de preservar a privacidade dos usuários,
inviabilizando a identificação dos participantes.
A não ser que derrubem toda a internet, bloquear
essas tecnologias é um feito quase irrealizável. A desintermediação dos
serviços, a remoção de diversos terceiros e intermediários é uma proeza cuja
realização foi somente possível depois da invenção da internet. É uma força
quase imparável.
E o próprio estado tem ajudado nesse processo
evolutivo. De que forma? A Terceira Lei de Newton explica: para cada ação, há
uma reação de mesma intensidade em sentido contrário. Quando governos proibiram
o Napster,
os usuários migraram para o Kazaa. Quando este teve problemas, surgiu o
LimeWire, baseado na rede descentralizada Gnutella. Em paralelo, estava sendo
criado o protocolo BitTorrent, o qual é, hoje em dia, usado por diversos
aplicativos para compartilhamento de tudo que é tipo de arquivos digitais —
não apenas conteúdo "pirata".
Como alternativa ao sistema monetário centralmente
planejado que hoje vigora, Satoshi Nakamoto inventou o Bitcoin, uma moeda
digital baseada em um protocolo com software de código-fonte aberto.
E quando decidirem controlar e amordaçar a internet,
uma consequência — real e presente — não intencionada da famigerada lei do Marco Civil da Internet, o
que faremos? A internet em si já é relativamente descentralizada, mas há
iniciativas para aprofundar ainda mais essa descentralização,
como é o caso da MaidSafe.
Muitos libertários internalizam a visão pessimista
de mundo em que a liberdade é cada vez mais solapada e o estado avança
inabalável. E há pouco o que podemos fazer senão alertar e educar os
indivíduos.
Francamente, não subscrevo a essa visão. Não sou
alheio aos males feitos pelo estado todos os dias, longe disso. Mas confio na
inata e infinita criatividade do ser humano para encontrar soluções aos grandes
problemas do nosso mundo, e por isso sou um eterno otimista.
Quando lograrem a efetiva proibição do Uber — o que não
descarto —, surgirá o SuperUber, um aplicativo totalmente descentralizado, de
código-fonte aberto, autorregulado e sem nenhuma empresa por trás. Sem
intermediários. A tecnologia, que nada mais é do que a aplicação prática do
conhecimento e da criatividade humana, prevalecerá.
Tudo isso nos leva a uma constatação importante: as
façanhas em prol da liberdade que os nerds estão conseguindo realizar — por
mero divertimento, talento ou ofício — ofuscam décadas de ativismo dos libertários.
O que nos remete a uma lição igualmente importante:
a defesa da liberdade deve ser uma luta tanto teórica e intelectual quanto
prática. Até porque a efetiva prática da liberdade, a experiência de liberdade,
catalisa e reforça o próprio entendimento teórico e intelectual do porquê de
sua defesa.
Nem todo mundo é a favor da livre concorrência, mas
quase todos defendem o direito de usar o Uber com unhas e dentes. Poucos são
contra as agências reguladoras, mas certamente muitos ficariam indignados se a
ANATEL ordenasse as empresas de telecomunicações a bloquear o WhatsApp. O Banco
Central é tido pela opinião pública como essencial, um sinal de modernidade;
mas, no fim do dia, o trabalhador vai escolher a moeda que mais bem mantiver o seu
poder de compra.
A tecnologia pode não apenas nos proteger do estado,
como pode também tornar mais evidente o quão injustas são certas leis, e isso,
por si só, já é um grande ensinamento. Não tenho a pretensão de saber todas as
respostas às perguntas feitas acima. Tenho mais dúvidas que certezas. Mas tenho
uma convicção: a de que a tecnologia está nos fazendo repensar o próprio papel
do estado e isso é um passo fundamental para o triunfo da liberdade.
Conclusão
Por fim, deixo mais uma reflexão: se a tecnologia
pode tornar a agressão institucionalizada impossível, isso demonstra que a
violência estatal é de fato ilegítima? Ou será que deveríamos nos submeter
voluntariamente a ela?
Alguns anarcocapitalistas acreditam que o fim do
estado ocorrerá apenas quando acabar o seu apoio moral pelos indivíduos. Mas isso
requer um esforço descomunal de convencimento teórico e intelectual da
sociedade como um todo. A tecnologia pode ajudar — e talvez abreviar — nesse
processo, demonstrando na prática a evidente ilegitimidade da violência
estatal.