Um
dos efeitos benéficos da desigualdade da riqueza existente em nossa ordem
social é que ela estimula vários indivíduos a produzirem ao máximo que consigam
para tentar ascender ao padrão de vida dos mais ricos. Essa foi uma das principais forças-motrizes
que fez com que a humanidade enriquecesse.
O
nosso nível atual de riqueza não é um fenômeno natural ou tecnológico,
independente de todas as condições sociais; é, em sua totalidade, o resultado
de nossas instituições sociais. Pelo
fato de a desigualdade da riqueza ser permitida em nossa ordem social, pelo
fato de ela estimular a que todos produzam o máximo, é que a humanidade hoje
conta com toda a riqueza anual de que dispõe para consumo.
Fosse
tal incentivo destruído, fosse a desigualdade de renda abolida, a produtividade
seria de tal forma reduzida, que a fatia de riqueza média recebida por cada
indivíduo seria bem menor do que aquilo que hoje recebe mesmo o mais
pobre.
A
desigualdade da distribuição da renda, contudo, tem ainda uma segunda função
tão importante quanto: torna possível o luxo dos ricos.
Muitas
bobagens têm sido ditas e escritas sobre o luxo. Contra o consumo
dos bens de luxo tem sido posta a objeção de que é injusto que alguns gozem da
enorme abundância, enquanto outros estão na penúria. Este argumento
parece ter algum mérito. Mas apenas aparenta tê-lo. Pois, se demonstrarmos que o consumo de
bens de luxo executa uma função útil no sistema de cooperação social, este argumento
será, então, invalidado. É isto, portanto, o que procuraremos
demonstrar.
Em
primeiro lugar, a defesa do consumo de luxo não
deve ser feita com o argumento de que esse tipo de consumo distribui dinheiro
entre as pessoas. Segundo esse argumento, se os ricos não se
permitissem usufruir do luxo, o pobre não teria renda. Isto é uma
bobagem, pois se não houvesse o consumo de bens de luxo, o capital e o trabalho
neles empregados seriam aplicados à produção de outros bens: artigos de consumo
de massa, artigos necessários, e não "supérfluos".
Portanto,
para formar um conceito correto do significado social do consumo de luxo é
necessário, acima de tudo, compreender que o conceito de luxo é inteiramente relativo.
Luxo
consiste em um modo de vida de alguém que se coloca em total contraste com o da
grande massa de seus contemporâneos. O conceito de luxo é, por
conseguinte, essencialmente histórico.
Muitas
das coisas que nos parecem constituir necessidades hoje em dia foram, em algum
momento do passado, consideradas coisas de luxo. Quando, na Idade
Média, uma senhora da aristocracia bizantina, casada com um doge veneziano, em
vez de utilizar seus próprios dedos para se alimentar, fazia uso de um objeto
de ouro que poderia ser considerado um precursor do garfo, os venezianos o
considerariam um luxo ímpio, e considerariam muito justo se essa senhora fosse
acometida de uma terrível doença. Isto seria, assim supunham, uma
punição bem merecida, vinda de Deus, por esta extravagância
antinatural.
Em
meados do século XIX, considerava-se um luxo ter um banheiro dentro de casa,
mesmo na Inglaterra. Hoje, a casa de todo trabalhador inglês, do
melhor tipo, contém um. Ao final do século XIX, não havia
automóveis; no início do século XX, a posse de um desses veículos era sinal de
um modo de vida particularmente luxuoso. Hoje, até um operário
possui o seu. Este é o curso da história econômica.
O
luxo de hoje é a necessidade de amanhã. Cada avanço, primeiro, surge
como um luxo de poucos ricos, para, daí a pouco, tornar-se uma necessidade por
todos julgada indispensável. O consumo de luxo dá à indústria o
estímulo para descobrir e introduzir novas coisas. É um dos fatores
dinâmicos da nossa economia. A ele devemos as progressivas
inovações, por meio das quais o padrão de vida de todos os estratos da
população se tem elevado gradativamente.
Ainda
no final do século XIX, Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904),
o grande sociólogo francês, abordou o problema da popularização dos itens de
luxo. Uma inovação industrial, disse ele, adentra o mercado para atender
exclusivamente às extravagâncias de uma pequena elite; porém, com tempo, passo
a passo, tal produto finalmente vai se tornando uma necessidade até que, no
final, se torna um item massificado e indispensável para todos. Aquilo
que antes era apenas um bem supérfluo de luxo passa a ser, com o tempo, uma
necessidade.
A
história da tecnologia e do comércio fornece inúmeros exemplos que confirmam a
tese de Tarde. No passado, havia um considerável intervalo de tempo entre
o surgimento de algo até então completamente desconhecido e sua popularização
no uso cotidiano. Algumas vezes, passavam-se vários séculos até que uma
inovação se tornasse amplamente aceita por todos — ao menos dentro da órbita
da civilização ocidental. Pense na lenta popularização do uso de garfos,
sabonetes, lenços, papeis higiênicos e inúmeras outras variedades de coisas.
Desde
seus primórdios, o capitalismo demonstrou uma tendência de ir encurtando esse
intervalo de tempo, até ele finalmente ser eliminado quase que por
completo. Tal fenômeno não é uma característica meramente acidental da
produção capitalista; trata-se de algo inerente à sua própria natureza. A
essência do capitalismo é a produção em larga escala para a satisfação dos
desejos das massas. Sua característica distintiva é a produção em massa
feita pelas grandes empresas.
Para
o grande capital, não há a opção de produzir apenas quantias limitadas de bens
que irão satisfazer apenas a uma pequena elite. Quanto maior uma empresa
se torna, mais rapidamente e de maneira mais massificada ela possibilita às
pessoas o acesso aos novos êxitos da tecnologia.
Séculos
se passaram até que o garfo deixasse de ser um utensílio utilizado apenas por
homens efeminados e se transformasse em um instrumento de uso universal.
Antes visto meramente como um brinquedo de ricos ociosos, o automóvel levou
mais de 20 anos para se tornar um meio de transporte utilizado
universalmente. Já as meias de nylon, ao menos nos EUA, se transformaram
em artigo de uso diário de todas as mulheres em pouco mais de dois ou três anos
após sua invenção.
E
praticamente não houve nenhum período de tempo em que o usufruto de inovações
como a televisão ou produtos da indústria de comida congelada fosse restrito a
uma pequena minoria.
Os
discípulos de Marx sempre se mostraram muito ávidos para descrever em seus
livros os "inenarráveis horrores do capitalismo", os quais, como seu
mestre havia prognosticado, resultam "de maneira tão inexorável como uma
lei da natureza" no progressivo empobrecimento das
"massas". O preconceito anticapitalista deles impedia que
percebessem o fato de que o capitalismo tende, com o auxílio da produção em
larga escala, a eliminar o notável contraste que há entre o modo de vida de uma
elite afortunada e o modo de vida de todo o resto da população de um país.
A
maioria de nós não tem qualquer simpatia pelo rico ocioso, que passa sua vida
gozando os prazeres, sem ter trabalho algum. Mas até mesmo este
cumpre uma função na vida do organismo social: dá um exemplo de luxo que faz
despertar, na multidão, a consciência de novas necessidades, e dá à indústria
um incentivo para satisfazê-las.
Havia
um tempo em que somente os ricos podiam se dar ao luxo de visitar países
estrangeiros. O poeta Friedrich Schiller
nunca viu as montanhas suíças que tornou célebres em sua peça William Tell, embora
fizessem fronteira com sua terra natal, situada na Suábia. Goethe não
conheceu Paris, nem Viena, nem Londres.
Hoje,
milhares de pessoas viajam por toda parte e, em breve, milhões farão o
mesmo.
O
abismo que separava o homem que podia viajar de carruagem e o homem que ficava
em casa porque não tinha o dinheiro para a passagem foi reduzido à diferença
entre viajar de avião e viajar de ônibus.
Originalmente
escrito no início da década de 1950
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