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Economia

O que o Fed poderá fazer

30/01/2015

O que o Fed poderá fazer

Na primeira parte deste artigo, vimos como o Fed aniquilou o mercado interbancário, decretando, para todos os efeitos, o óbito da federal funds rate. Então, depois de encurralar a si próprio, qual será a saída para o Fed? Quais ferramentas estão de fato ao dispor do banco central americano? Quais as reais alternativas de Janet Yellen?

Antes de tudo, é preciso entender por que a taxa de juros americana deveria ser elevada, isto é, por que apertar a política monetária.

Primeiro, por causa do óbvio: é imprescindível normalizar a postura da política do Fed. As medidas expansionistas e não convencionais inquietam o FOMC, não há dúvida. Mas ele jamais tornará restritiva a conduta da política monetária enquanto julgar que a recuperação da economia americana ainda é frágil.

Segundo, porque o Fed precisa cumprir o seu duplo mandato de emprego máximo e estabilidade de preços. Caso a economia americana mostre sinais de superaquecimento ou inflação de preços acima do tolerável -- acima de 2%, provavelmente --, o FOMC será obrigado a elevar os juros para conter uma escalada do CPI e um desarranjo da economia.

E quando será isso? De acordo com a própria Yellen, o momento exato em que o FOMC normalizaria sua postura foi mudando ao longo do tempo. Em 2008, os juros permaneceriam em zero "por algum momento". Ao passar dos anos, a linguagem adquiriu um tom mais específico, "por um período mais estendido de tempo", depois "meados de 2013", "ao fim de 2014" e então "meados de 2015".

A verdade é que o FOMC perdeu grande parte da credibilidade que ainda lhe restava devido aos seus constantes adiamentos na mudança da política monetária pós-crise financeira. Quando o QE1 estava para acabar, afirmaram que não haveria mais afrouxamento quantitativo. Quando o QE2 chegava ao seu término, alegavam que não haveria mais nenhuma rodada de QE. Afirmaram que a Operation Twist seria encerrada em setembro de 2012, mas quando chegou o prazo, prolongaram-na.

Ofereceram orientação baseada em datas específicas, mas acabaram abandonando essa estratégia. Por fim, estipularam limites econômicos objetivos -- desemprego abaixo de 6,5% e inflação em 2% --, mas, quando eles foram atingidos, o FOMC inventou novas justificativas, ponderando que as estatísticas não forneciam informações suficientes sobre o estado do mercado de trabalho.

Em todas as instâncias, o Fed sinalizou X e fez Y. Das duas, uma: ou está mentindo deliberadamente ou a hesitação em elevar a federal funds rate denota uma economia frágil, que não se sustentaria com uma taxa de juros acima de zero -- uma política mais contracionista poderia descarrilar a economia americana e derrubar o mercado financeiro, instaurando o pânico novamente.

Retomaremos este ponto -- se o Fed está propositalmente postergando uma elevação de juros -- mais adiante. Por ora, assumiremos como premissa que Janet Yellen decidirá de fato subir a federal funds rate em 2015. Quando esse dia chegar, o FOMC é resoluto ao afirmar que dispõe de todas as ferramentas necessárias. Será?

Quais as opções na mesa de Janet Yellen?

Na reunião dos dias 16 e 17 de setembro, o FOMC divulgou ao público os Princípios e Planos da Normalização da Política (Policy Normalization Principles and Plans). Isso não quer dizer que a normalização ocorreria logo. Dentro de sua postura de orientação futura, o Fed apenas quis sinalizar ao mercado que, chegado o momento de normalizar a conduta da política monetária, seu norte seriam os seguintes princípios e planos:

1) Quando as condições da economia e a perspectiva econômica permitirem uma política monetária menos acomodatícia, o Comitê elevará a banda-alvo para a FFR.

2) Durante a normalização, o Federal Reserve pretende mover a FFR para dentro de sua meta principalmente por meio do ajuste da taxa de juros paga sobre o saldo de reservas em excesso (Interest on Excess Reserves, IOER, guarde essa sigla).

3) Durante a normalização, o Federal Reserve pretende usar o programa de compromisso de recompra reverso overnight (overnight reverse repurchase agreement facility, RRP, guarde essa sigla) e outras ferramentas suplementares à medida necessária para auxiliar no controle da FFR. O Comitê somente usará o RRP enquanto for preciso para auxiliar a controlar a FFR.

4) O Comitê pretende reduzir o ativo do Federal Reserve de forma gradual e previsível, principalmente por meio do abandono da política de reinvestir o pagamento do principal.

5) O Comitê espera começar reduzir progressivamente seu ativo depois de iniciar a elevação da FFR, mas sempre dependendo da evolução da condição e da perspectiva econômica.

6) No momento, o Comitê não se propõe a vender as hipotecas em seu ativo (mortgage-backed securities, MBS) como parte do processo de normalização, embora possam ocorrer vendas bastante limitadas no longo prazo.

7) O Comitê pretende que o Federal Reserve detenha, no longo prazo, apenas a quantidade de títulos de dívida necessária para implementar a política monetária eficaz e eficientemente, possuindo principalmente Treasuries e minimizando, assim, o efeito do ativo do Fed na alocação de crédito ao longo dos diversos setores da economia.

À primeira vista, tudo parece muito bem pensado e esquematizado: o Fed tem um plano detalhado e o colocará em prática assim que for preciso. Basta apertar alguns botões e puxar algumas manivelas, e as engrenagens da economia responderão conforme esperado. Simples.

Na verdade, o plano do banco de Yellen tem mais furos que um queijo suíço. Já antecipando a conclusão da análise a seguir, o programa de normalização delineado pelo FOMC é incapaz de elevar de fato a FFR, tem o potencial de aprofundar os desequilíbrios e excessos no balanço do Fed e no mercado interbancário e será absolutamente deficiente para lidar com condições econômicas mais adversas -- como no caso de uma escalada na inflação de preços. Na melhor das hipóteses, os Princípios e Planos de Normalização do Fed serão inócuos.

Dissequemos então ponto por ponto do plano do FOMC -- perdoem a profundidade técnica da análise que se segue, mas ela é essencial para entender o porquê da conclusão acima.

Juros sobre reservas em excesso

O racional de pagar juros sobre as reservas em excesso é estabelecer um piso para a federal funds rate -- por que um banco irá emprestar a outro por uma taxa menor do que a que suas reservas são remuneradas pelo Fed? Desde o fim de 2008, a IOER paga 25 pontos-base sobre o saldo em excesso das instituições depositárias.

Há dois agravantes nessa estratégia. O primeiro é que o pagamento de IOER acaba incrementando ainda mais as reservas em excesso, exacerbando o problema, ao invés de amenizá-lo -- a receita dos juros é acrescida ao saldo das reservas dos bancos depositadas no Fed.

Em segundo lugar, o FOMC não pode elevar esse suposto piso sem limite. Existe um teto para a taxa de juros sobre reservas em excesso (IOER), embora o Fed não o reconheça explicitamente. E qual seria esse teto? O ato de pagar juros sobre reservas acarreta uma despesa no resultado do Fed. Com um saldo de mais de US$ 2,6 trilhões de reservas em excesso, uma IOER de 0,25% implica em um pagamento de US$ 6,5 bilhões em juros.

Considerando que o ativo de US$ 4,5 trilhões do Fed rende cerca de 2% ao ano -- decorrente de Treasuries e MBS com taxas majoritariamente pré-fixadas --, o banco central americano registra uma receita anual com juros de US$ 86,5 bilhões. Descontadas as despesas de operação, o Fed remite todo o lucro anual ao Tesouro americano.

Façamos os cálculos. Se o FOMC elevar a IOER para 1%, o Fed incorrerá uma despesa de US$ 26 bilhões. Se der uma pancada na IOER e subi-la para 2%, a despesa com juros vai para US$ 52 bilhões. Seria aceitável para o Fed consumir quase três quartos da sua receita com pagamento de IOER, levando em conta que tal despesa aumentaria ano após ano, uma vez que o pagamento da IOER é acrescido ao saldo de reservas, sobre o qual a própria IOER incide?

Estimar com precisão qual seria o teto da IOER é desnecessário. Mas podemos inferir que a estratégia de usá-la para elevar indiretamente a FFR é bastante limitada. O Fed conseguiria apenas incrementos módicos na IOER -- algumas dezenas de pontos-base --, nada que pudesse realmente impactar a economia americana e trazer a FFR a níveis mais normais -- algo entre 3% e 5%.

Mas podemos analisar essa estratégia por outro prisma. Ignorando por um momento as limitações expostas acima, a política de juros sobre reservas em excesso tem funcionado na prática? Afinal de contas, ela foi instituída lá em 2008. Desde então, teve ela êxito em sustentar um piso à federal funds rate? Deixemos o gráfico abaixo responder a indagação.

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Com a exceção de alguns breves momentos, a FFR jamais foi cotada no piso de 25 pontos-base, sendo que, no último ano, não passou sequer de 13 pontos-base. Empiricamente, a IOER já está fracassando.

Reverse Repurchase Agreement

Depois de marginalizar o interbancário e assegurar sua própria impotência para controlar a federal funds rate, o Fed buscou criar outra taxa de juros de curto prazo por meio da qual pudesse influenciar indiretamente o mercado interbancário -- e logo o mercado financeiro como um todo.

A RRP é uma linha de crédito a taxas pré-fixadas em depósitos overnight, pela qual o Fed toma dinheiro emprestado, entregando títulos de seu ativo como colateral, com a promessa de recomprá-los em uma data futura, daí o nome reverse repurchase agreement -- é "reverso" porque nesse arranjo o tomador é o próprio Fed, e não os bancos.

Essa ferramenta suplementa a IOER porque ela abrange uma lista muito mais ampla de instituições qualificadas a aderir ao programa, como as GSE (government-sponsored enterprises, Fannie Mae e Freddie Mac) e fundos de money market, os quais -- por motivos sobre os quais não nos interessa entrar em detalhes -- estão impedidos de receber juros sobre os saldos de reservas depositados no Fed.

Dessa forma, o FOMC acomodou mais uma enorme gama de entidades financeiras e de quebra abriu um mercado cativo e seguro para estacionar dinheiro redundante com juros garantidos -- normalmente cinco pontos-base -- e com a tranquilidade de emprestar à instituição mais segura do planeta, o próprio Fed, dono da impressora de dólares.

Quando o programa começou, em setembro de 2013, não havia limites para o montante que cada instituição poderia entregar ao Fed. Mas após muitas críticas -- veja este artigo de Sheila Bair, ex-presidente do FDIC -- e a própria constatação do FOMC de que o RRP causaria uma distorção ainda maior nas taxas do mercado interbancário, decidiu-se por um máximo de US$ 300 bilhões por operação.

Assim como a IOER, as taxas de juros fixadas nas operações de RRP não estão livres de restrições. O Fed não pode oferecer ao mercado juros tão atraentes porque pressionaria o lucro do banco, além de criar um potencial ímã para o mercado financeiro em momentos de crise -- em um cenário de credit crunch, para quem os solventes vão preferir emprestar: ao Fed de risco zero ou ao banco XPTO possivelmente quebrado?

Term Deposit Facility

Dentro do ferramental suplementar disponível, o Fed vem testando outro programa inovador: o chamado Term Deposit Facility (TDF), ou Programa de Depósito a Prazo. Segundo o FOMC, tais depósitos facilitarão a implementação da política monetária por prover uma nova ferramenta pela qual o Federal Reserve possa administrar a quantidade total das reservas mantidas pelas instituições depositárias.

Fundos alocados nesses depósitos a prazo são removidos do saldo de reservas dos participantes durante todo o termo do depósito, drenando, assim, reservas do sistema bancário. Esse é o racional do novo programa.

Ao contrário do RRP, o TDF visa principalmente manipular o volume de reservas -- a taxa de juros fica em segundo plano. Mas para estimular as instituições depositárias a aderir ao programa, o FOMC vem oferecendo taxas de 26 a 30 pontos-base, ligeiramente superiores ao que paga a IOER. Com trilhões de dólares estacionados no Fed, qualquer ponto-base adicional é lucro. A última oferta de TDF alcançou um volume de US$ 400 bilhões por um prazo de uma semana, rendendo 30 pontos-base.

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À primeira vista, cinco pontos-base não parecem muita coisa. Mas considerando a magnitude dos volumes depositados, a última oferta, por exemplo, rendeu aos bancos cerca de US$ 38 milhões em uma única semana. Nada mal, considerando que o único trabalho foi dizer "sim, dai-me juros" ao FOMC. Algum dia, talvez, o Occupy Wall Street mudará de alvo; Maiden Lane nº 44 parece ser o endereço mais apropriado.

A impossibilidade de se elevar substancialmente as taxas de juros se aplica perfeitamente ao programa TDF. Há um limite. Os juros pagos sobre os depósitos a prazo pressionam o balanço do Fed e acabam aumentando ainda mais o nível de reservas dos bancos -- efeito prático idêntico ao da IOER.

A alegação de que o TDF "drena reservas do sistema bancário" tampouco se sustenta, pois não passa de uma mera tecnicalidade. Ora, quando uma instituição adere ao programa, o Fed realoca o montante específico para uma conta com a etiqueta "depósitos a prazo" -- um trivial registro contábil, crédito em depósitos a prazo e débito no saldo de reservas. Essa artimanha não drena dinheiro do sistema bancário coisa nenhuma, por mais que Bernanke alegue o contrário.

O passivo do Fed não diminui com essa operação. O volume de dinheiro mantido pelos bancos no Fed não se altera -- aliás, aumenta, por conta da remuneração paga --, apenas troca de "etiqueta". Como essa tecnicalidade impacta a "base monetária" -- menos reservas, menor é a base monetária --, alguns analistas, precipitadamente, afirmam que o Fed estaria efetivamente adotando uma postura contracionista.

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As bruscas oscilações na base monetária são resultado direto das operações de TDF. Não há nenhuma mudança de postura do Fed, apenas tecnicalidades contábeis.

Por que é falho o plano de normalização do Fed

O pagamento de juros sobre reservas em excesso (IOER), o compromisso de recompra reverso overnight (RRP) e os depósitos a prazo (TDF) são formas de tentar controlar alguma taxa de juros e influenciar a FFR -- e a partir dela as demais taxas do mercado -- sem precisar vender um único papel do seu ativo.

Por meio das taxas oferecidas pelo Fed nesses programas, espera-se impor um piso à federal funds rate: até hoje isso não aconteceu.

Por meio do TDF, espera-se drenar reservas do sistema: isso acontece apenas temporariamente -- durante a vida útil dos depósitos a prazo -- e se ignorarmos a tecnicalidade contábil já apontada.

Da definição dada pelo FOMC à "normalização da política monetária", a parte referente à redução do ativo do Fed a níveis mais normais foi postergada às gerações futuras. No atual plano de Yellen, restou apenas a intenção de algum dia, quando as condições econômicas permitirem, decorrido um longo tempo da decisão de iniciar, quem sabe, a contração do ativo, o FOMC refletir quando iniciar a venda de Treasuries. E somente Treasuries, porque já foi assegurado ao mercado que o US$ 1,7 trilhão de hipotecas não deixará o balanço do Fed.

Decidido a não reduzir o balanço e eliminar as reservas em excesso, o Fed recorre a programas inéditos e ineficazes para influenciar a federal funds rate. Em outras palavras, a FFR está em coma induzido, mas o Fed acredita que conseguirá ressuscitá-la com homeopatia.

E apesar de o FOMC alegar que dispõe do ferramental necessário para normalizar a política monetária, ele carece de perfeito domínio sobre como tais intervenções impactarão o mercado de juros. Como o próprio FOMC atesta na ata da reunião de dezembro passado: "Embora os testes de RRP tenham sido informativos, o staff sugeriu que testes adicionais podem melhorar ainda mais o entendimento de como essa ferramenta suplementar poderia ser usada para atingir um maior controle da federal funds rate durante a política de normalização".

Em suma, o plano de normalização do FOMC, além de não atingir o seu propósito, instaura graves distorções no mercado de juros, tomando para si um papel ainda mais centralizador e introduzindo incentivos perversos no sistema -- especialmente no caso da RRP. Invertendo o racional histórico dos bancos centrais, o Fed cada vez mais se torna o prestamista, o mutuário e o formador de mercado de primeira instância.

E ao assegurar ao mercado a manutenção do seu balanço nos níveis atuais, o Fed frustra indefinidamente qualquer chance de normalização efetiva da política monetária.

O que pode dar errado?

Toda a análise do plano de normalização foi feita a partir da premissa de que o Fed realmente irá normalizar a política monetária. Mas como antecipamos no início deste artigo, o Fed está encurralado e por isso adia propositalmente uma elevação dos juros. Janet Yellen não vai tocar na FFR porque tem plena noção da dependência dos mercados financeiros da política acomodatícia do Fed.

Se decidir alguma elevação, ela será módica; com relevância apenas simbólica, mas com potencial de influenciar expectativas e, talvez, fazer o dólar se apreciar perante as demais moedas globais. Porém, nada que configure uma real normalização de postura e muito menos uma redução do seu balanço.

É inegável que o Comitê de Política Monetária teve bastante sorte até o momento. Pouca coisa -- ou quase nada -- saiu do script. Injetaram volumes maciços de liquidez no sistema, sustentaram a alta dos Treasuries e das dívidas corporativas, fizeram os índices de ações decolar, a economia cresceu -- de acordo com o PIB --, o desemprego tem diminuído -- embora com muitas ressalvas -- e a inflação de preços vem caindo -- por causa do petróleo, da alta do dólar e porque a liquidez inflou basicamente o preço dos ativos no mercado financeiro.

Diante desse cenário, o que pode dar errado? Ou, parafraseando o jornalista financeiro da CNBC Rick Santelli em um desabafo inspiradíssimo, "do que você tem medo, Janet Yellen?".

A chairwoman do Fed jamais diria o que realmente pensa; ela precisa assegurar a todos constantemente que está tudo sob controle. A eficácia do trabalho do Fed depende disso.

Mas essa pergunta merece resposta. Levantemos, então, algumas hipóteses e possíveis desdobramentos.

A primeira grande questão é óbvia, mas nem por isso menos preocupante: o quanto a economia americana está dependente de juro zero? Quando qualquer taxa acima de zero é alta demais, qual não seria a dimensão e a profundidade dos desequilíbrios no sistema? Esse estado de coisas não é normal nem sustentável.

O que se vê é a baixa volatilidade, o CPI contido e a exuberância nos mercados financeiros. Mas ninguém consegue antever -- quanto menos evitar -- os investimentos equivocados e os excessos nos mercados. Quando o capital não tem custo, qualquer investimento é viável. Quando o risco é mal precificado, erros são inevitáveis. Juro zero não é capaz de criar uma economia saudável e sustentável, mas pode mascarar por alguns anos os mais variados desequilíbrios.

Em algum momento os malinvestiments se tornarão nítidos, e os excessos precisarão ser expurgados. Onde isso pode aparecer? Talvez alguma empresa declare falência e seu título de dívida vire pó, instalando o pânico nos mercados, precipitando a venda em massa de outros junk bonds, derrubando os demais ativos em efeito cascata. Talvez uma elevação simbólica da taxa de juros pelo FOMC provoque tumulto nos mercados. Como o Fed enfrentaria esse cenário?

William Dudley, presidente do New York Fed, já deixou claro que, mais do que Main Street, "Como os mercados de ativos vão reagir será chave para a mudança da política monetária". Em um momento de pânico, o Fed certamente interviria outra vez, com um EQE (emergency quantitative easing) ou qualquer outra ferramenta para despejar liquidez nos mercados e conter quedas abruptas nos preços dos ativos.

Esse cenário não é improvável. É uma questão meramente temporal: quando, e não "se".

Mas não é só isso que pode dar errado. A inflação de preços pode começar a incomodar logo. A julgar pela expansão creditícia do sistema bancário, é possível que o CPI sinalize uma escalada nos preços em um futuro breve.

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O crédito bancário não acelerava consistentemente desde o estouro da crise. E considerando o crescimento da economia, a tendência de queda do endividamento das famílias americanas, bem como o peso do serviço da dívida sobre a renda -- um presente da era do juro zero --, podemos concluir que há espaço para o volume de crédito crescer novamente e com força. Afinal de contas, bancos servem para criar moeda e conceder empréstimos. Havendo oportunidade para auferir uma maior receita com juros, os bancos saberão aproveitá-la.

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Como o FOMC vai encarar uma inflação de 3%? Ou 5%? Neste momento, tal cenário parece pouco provável. Mas não é nenhuma impossibilidade. O que o Fed faria para conter essa inflação? Provavelmente aguardaria novos dados para ter certeza de que algum aperto monetário seja realmente imprescindível. E como fazê-lo? Aí voltamos ao plano de normalização dissecado acima. Não há ferramental disponível para refrear uma escalda de preços. O Fed amarrou suas próprias mãos.

Alguns analistas aventaram a possibilidade de o Fed elevar o percentual do compulsório -- reserve requirements, atualmente em 10% --, para refrear a expansão do crédito e a inflação de preços. Embora seja tecnicamente factível, creio ser altamente improvável. Primeiro, o Fed jamais fez qualquer menção quanto a usar o compulsório para normalizar a política monetária.

Segundo, porque seria preciso elevar o percentual a um patamar sem precedentes -- talvez algo entre 50% e 100% --, represando um volume de reservas na casa dos trilhões, o que poderia ser encarado pelos bancos como uma espécie de confisco pelo Federal Reserve. Politicamente, seria um remédio quase intragável de se testar. Os bancos iriam espernear, e, talvez, com razão. No entanto, como "tempos extremos requerem medidas extremas", não duvido que isso possa ser tentado. Mas certamente não está entre os primeiros itens da lista.

Assim, torna-se cada vez mais claro que as medidas extraordinárias adotadas a partir de 2008 foram e são uma via de mão única e sem retorno. Não se faz mais política monetária como antigamente. The Fed has gone all-in and there is no turning back.

Resumo da ópera

Este é um texto para guardar e ler mais de uma vez. Há muito detalhes técnicos implícitos sobre o funcionamento de um banco central e da política monetária -- algo de que a maioria dos economistas não entende bulhufas. Não é um artigo de fácil digestão. Mas considerando a complexidade do assunto e a quantidade de desinformação propagada por analistas e pelo mercado financeiro, era preciso explicar e analisar todas as questões relevantes minuciosamente.

Com o intuito de facilitar a síntese do artigo, seguem alguns pontos-chave para guardar a essência do que foi dito aqui:

1) A federal funds rate não pode ser elevada porque, com as rodadas de QE, o Fed inundou o mercado interbancário com liquidez.

2) A expansão do balanço do Fed é preocupante e a qualidade do seu ativo é cada vez pior.

3) Mesmo que não houvesse reservas em excesso, sem T-Bills no seu ativo para vender, o Fed estaria impossibilitado de atender a demanda por reservas e influenciar o mercado interbancário.

4) O Plano de Normalização da Política anunciado pelo FOMC é incapaz de elevar de fato a FFR, tem o potencial de aprofundar os desequilíbrios e excessos no balanço do Fed e no mercado interbancário e será absolutamente deficiente para lidar com condições econômicas mais adversas.

5) O Fed não vai decidir por uma elevação de juros tão cedo porque tem plena ciência da dependência dos mercados na política acomodatícia.

6) Se o Fed decidir elevar a federal funds rate, serão incrementos módicos e simbólicos, nada que possa ser considerado uma real normalização da política monetária.

7) Nesse cenário, e considerando a divergência da política monetária dos demais países avançados, o dólar pode se fortalecer ainda mais.

8) Se as condições favoráveis permanecerem, o Fed não retrocederá o seu balanço por vários anos.

9) O Fed cada vez mais se torna o prestamista, o mutuário e o formador de mercado de primeira instância.

10) Apesar das estatísticas positivas, os desequilíbrios no mercado financeiro e na economia real estão em contínua gestação.

11)  É mais provável um cenário com mais rodadas de QE do que uma reversão da política atual.

12)  A ideia de que o Federal Reserve tem tudo sob controle não passa de uma ilusão.

Estamos vivendo o grande experimento monetário do século XXI. Iniciado em 2008, a era das políticas monetárias não convencionais está a todo vapor e sem data para cessar. Já não há mais alternativas palatáveis. As ações do Fed e dos demais bancos centrais estão garantindo uma reprise da crise de 2008. A próxima vez será pior. O mundo não vai acabar, porém, passaremos por alguns meses de aperto.

Mas se perecer a crença de que os bancos centrais devem controlar o preço mais importante da economia -- a taxa de juros --, já sairemos no lucro, pois daremos o primeiro passo para a abolição do principal bastião do socialismo nas economias modernas: o planejamento central da moeda.


Sobre o autor

Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é mestre em Economia da Escola Austríaca, com experiência mundial na indústria de elevadores e nos mercados financeiro e imobiliário brasileiros. é conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária.

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