Em seu discurso de posse, Dilma falou que não pode
dar passos atrás, e nem tirar direitos. Que
os direitos devem ser sempre mais.
Ao dizer isso, a presidente ecoa as convicções de
muita gente bem-intencionada. Já eu, que
suspeito das boas intenções como que por instinto, penso que a criação de
direitos — isto é, coisas boas que a lei determina que sejam
estendidas a todos — é um obstáculo para a qualidade de vida geral.
Entendo que esse é o modo petista de medir o
sucesso: pelo esforço gasto; pelo papel gasto. Se está lá no papel que o salário mínimo
subiu, ou que domésticas
agora têm direitos trabalhistas, isso é bom em si, posto que é o justo; e
tudo que está fora disso é inaceitável, mesmo se o salário mínimo maior não
fizer os trabalhadores mais ricos, e mesmo se as novas leis de domésticas
tiverem dificultado muito encontrar postos de trabalho nessa função.
O efeito que o discurso de direitos tem na
mentalidade é também deletério. Se algo
é um direito, ele deveria estar vigorando para todos os casos. Se não está, então uma injustiça foi feita. E se uma injustiça foi feita, temos que
encontrar o culpado: alguma classe que não contribui como deveria, alguma
instância do governo que é corrupta ou lenta, o egoísmo da cultura em geral,
"todos nós que jogamos papel de bala no chão" etc.
Isso serve para gerar raiva e indignação,
sentimentos que levam à impotência, posto que nada podemos fazer contra as
gritantes injustiças de todo um sistema. Em nada ajudam a encontrar soluções criativas
que melhorem efetivamente aquilo que consideramos ainda insatisfatório. Encontrar culpados e bater o pé no chão para
que "algo seja feito" roubam os esforços que deveríamos dedicar a fazer algo.
O direito também fossiliza nossa concepção sobre
como o mundo deve ser. Direitos
trabalhistas eternizaram relações de trabalho que estão cada vez mais datadas. Mas como o estado não é capaz de aceitar seus
próprios limites, ele precisa exigir que todas as outras relações se pautem
pelos critérios que ele estabeleceu. O
resultado cultural disso é gente jovem em pleno século XXI sonhando com
carteira assinada ou — o que é a lógica dos direitos levada a seu extremo — o
funcionalismo público. Trabalho
assegurado, bem remunerado, fácil, de baixa intensidade e com amplo tempo
livre.
O mesmo vale para outros campos: o direito à
educação nos internalizou a ideia de que todos necessitam de 11 a 15 anos
de estudo formal em salas de aula, com conteúdos pré-determinados pelo estado e sendo submetidos a constantes avaliações,
seguindo um modelo muito particular de educação que se universalizou como sendo
o único possível.
O direito à saúde nos fez todos adotar a ideia de
que serviços de tratamento devem estar prontamente disponíveis e gratuitos a
todas as pessoas. O que, com o aumento
da tecnologia e da longevidade, revela-se uma impossibilidade técnica.
E, mais do que isso, associou-se "direito à saúde"
a tratamento, e não à prevenção ou à busca de uma vida saudável. Se esses crescerem em importância na cultura,
a velha ideia do direito à saúde irá se enfraquecer — principalmente agora que
até o próprio governo federal encara os planos de saúde privados como o melhor
jeito de diminuir seus próprios custos com os cuidados à população.
O direito legal tenta materializar uma instância
fictícia da nossa imaginação: o dever ser. As pessoas "devem" ter saúde, educação,
lazer, cultura etc. Mas ele não faz nada
para criar e manter esses bens desejados socialmente. Nada além de instilar um vago sentimento de
obrigação, justamente o pior tipo de motivador da conduta.
Pensando nisso, minha dica para 2015 a todos que
querem um mundo melhor é que gastem menos tempo lutando para colocar direitos
no papel, menos tempo exigindo que direitos que já existam sejam concretizados,
e mais tempo pensando, criando, produzindo e espalhando as coisas boas que
queremos ver sendo difundidas.
Que o eterno "dever ser" ceda espaço
para um "é" cada vez melhor.
Na Bahia,
ainda existia um supermercado estatal
"Não há sentido em tirar dinheiro da saúde e da
educação para sustentar um supermercado". É com essas palavras, racionais,
simples, límpidas, que o governador eleito da Bahia, Rui Costa, anuncia a privatização (se
parcial ou total, ainda não se sabe) da rede de supermercados Cesta do Povo,
única rede de supermercados estatal do Brasil.
A estatal foi criada, vejam só, por Antônio Carlos
Magalhães nos anos 1970. A esquerda
privatizando a estatal da direita.
Esquerda e direita não
descrevem a realidade, apenas nomeiam grupos rivais em luta pelo poder. E em face de um supermercado estatal que só no
ano passado custou 15 milhões de reais aos cofres públicos,
não há partidarismo que discorde: é preciso vender.
Quando o governador diz que a rede não tem como
competir com a agilidade e liberdade de negociação das empresas privadas, ele
está dizendo a mais pura verdade. O Cesta do Povo tem um sistema pra lá de
antiquado para encontrar e admitir novos fornecedores, e adota uma política de
preços que segue conveniências políticas, mas que, ao mesmo tempo, não oferece
preços muito mais baixos que a concorrência. Por que a diferença?
O Cesta do Povo, como a maioria das empresas
estatais, vê-se numa encruzilhada: por um lado não pode ser apenas mais uma
empresa maximizadora de lucro (pois pra isso o estado não é necessário); por
outro, precisa de mecanismos que impeçam que os recursos públicos que o
sustentam sejam desviados em esquemas de corrupção.
A empresa não tem um dono, não tem acionistas e
não tem doadores voluntários que se sentiriam lesados caso gastasse mal seu
dinheiro, e que portanto têm todo o incentivo para torná-la mais eficiente. Em vez disso, ela conta apenas com os
procedimentos burocráticos de qualquer atividade estatal,
que por um lado são engessantes e não permitem mudanças bruscas ou inovações
sem longas diligências e licitações, e por outro são facilmente burláveis.
Ao mesmo tempo, ninguém ali dentro tem incentivos
para melhorar a empresa, torná-la mais eficiente, inovar. Se ela der lucro ou prejuízo, a vida de seus
gestores não muda em nada. E já que é bem mais fácil
ser ineficiente…
"O Cesta do Povo não é capaz de concorrer com as
redes privadas de supermercado. As grandes do setor têm agilidade na hora de
negociar e definir preços, muito diferente de uma empresa pública", justificou
Costa.
A rede chegou a fechar em meados da década
passada, e foi reaberta pelo governador Jaques Wagner, também do PT, em 2007,
que encontrou aquela massa falida e apostou que ela era viável se gerida com
mais eficiência e menos corrupção. Agora o sonho acabou. Para o contribuinte
baiano, o pesadelo.
O lampejo de lucidez de Rui Costa foi além do mero
reconhecimento de que a rede não tem condições de se viabilizar no mercado; ele
toca, talvez sem que o próprio perceba, em um ponto mais importante: o da
prioridade do gasto estatal.
Vamos aceitar por um segundo a premissa utópica de
que o estado serve, ou visa a servir, o bem comum. As pessoas dizem isso e se contentam com um estado
que promove — e gasta recursos com — uma série de causas e atividades boas. Em um mundo de recursos escassos (dica: como o nosso), só isso
não é o suficiente. Que algo seja bom,
desejável, não é critério suficiente para concluir que o estado deva investir
naquilo. Precisamos ir uma pergunta
além: aquele gasto traz o melhor retorno possível em termos de bem comum? O
real ali investido produz o máximo bem para o maior número de pessoas? Se não,
que seja cortado.
O estado da Bahia, que já sofre com uma segurança
pública em frangalhos e com desempenhos muito ruins na educação (mesmo para a média
brasileira), não pode se dar ao luxo de esbanjar recursos para subsidiar um
supermercado.
Se aceitarmos essa lógica — e parece impossível
não aceitá-la —, nossa forma de encarar o governo muda. Não é porque algo é desejável que ele deve ser
subsidiado com dinheiro público. Não
basta ser bom; tem que saber utilizar da melhor maneira possível os recursos
escassos. E isso o estado já
demonstrou que não sabe fazer.
Pensando assim, pode ter certeza de que há muitos
"Cestas do Povo" por esse Brasil aguardando nosso corte.
Texto originalmente publicado no site do Spotniks