quinta-feira, 24 dez 2015
Introdução
As
questões envolvendo igreja e estado continuam a ser fonte de muitos conflitos
entre cristãos, o que resulta em uma grande confusão sobre o que exatamente uma
teologia bíblica do estado e das políticas públicas deveria tratar.
A
confusão frequentemente induz a respostas inadequadas sobre questões
importantes que dizem respeito à relação dos cristãos com o governo, tais como 1)
qual tipo de governo um cristão deveria apoiar?, 2) qual política pública
deveria ser obedecida?, 3) o que significa a submissão ao governo?
São
muitos os cristãos que tentam justificar sua filosofia política citando Romanos 13 ou suas variações.
À primeira vista, essa parece ser uma
solução aceitável — Paulo aparentemente apoia a submissão ao governo. Mas como
reconciliamos essa passagem com o inegável fato de que indivíduos que agiram
dentro das estruturas coercivas dos estados foram os culpados pelas maiores ações
criminosas e violentas na história da humanidade?
Na
Alemanha, durante as décadas de 1930 e 1940, por exemplo, teólogos utilizaram
Romanos 13 para encorajar a submissão ao regime nazista, especialmente por ele
ter sido democraticamente eleito. Recentemente, um membro do parlamento do
Zimbábue declarou que o corrupto ditador-presidente Robert Mugabe foi enviado
por Deus e que, por isso, "não deveria ser desafiado nas próximas eleições".
Obviamente,
essas são maneiras inapropriadas de se usar as escrituras. Mas a questão para os cristãos é: como saber
as diferenças? Devemos simplesmente concordar com o governo porque a Bíblia
assim diz, ou há mais coisas em jogo?
Claramente,
a igreja necessita de um arcabouço mais sólido para avaliar a natureza do estado
e as consequências das políticas públicas.
Proponho começar esse processo com uma análise de algumas passagens do
Novo Testamento que parecem abordar a relação dos cristãos com o governo
civil. Especificamente, comecemos por aquilo
que encontramos nos Evangelhos e em Romanos 13.
Os Evangelhos e o estado
Para desenvolver uma teologia bíblica sobre o governo, o primeiro passo deveria ser
o exame dos ensinamentos de Jesus. Quais
são as palavras e as atitudes de Jesus que nos ajudam a entender quais deveriam
ser nossa reação ao governo?
Frequentemente,
aqueles que desejam derivar dos Evangelhos princípios bíblicos sobre o governo
recorrem às famosas passagens do "Dai a Cesar", um evento registrado em todos
os Evangelhos Sinópticos (Mateus 22:15-22, Marcos 12:13-17, Lucas 20:20-26).
Mas
seriam esses os únicos textos dos Evangelhos que merecem ser abordados no que
diz respeito ao governo civil? Em minha opinião, não. Também é possível obter informações
importantes sobre a natureza do estado por meio das tentações de Jesus e uma
breve comparação entre o Reino do Homem e o Reino de Deus.
Comecemos
com uma análise das passagens do "Dai a César", examinando primeiro o texto de Mateus 22:15-22:
Então os fariseus saíram
e começaram a planejar um meio de enredá-lo em suas próprias palavras.
Enviaram-lhe seus
discípulos juntamente com os herodianos que lhe disseram: "Mestre, sabemos
que és íntegro e que ensinas o caminho de Deus conforme a verdade. Tu não te
deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens.
Dize-nos, pois: Qual é a tua opinião? É certo pagar imposto a César ou
não?"
Mas Jesus, percebendo a
má intenção deles, perguntou: "Hipócritas! Por que vocês estão me pondo à
prova? Mostrem-me a moeda usada para pagar o imposto".
Eles lhe mostraram um
denário, e ele lhes perguntou: "De quem é esta imagem e esta
inscrição?"
"De César",
responderam eles.
E ele lhes disse:
"Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".
Ao ouvirem isso, eles
ficaram admirados; e, deixando-o, retiraram-se.
Em Mateus, os fariseus enviaram alguns dos seus discípulos ao templo junto aos
herodianos até Jesus com o intuito de "enredá-lo em suas próprias palavras" no
templo. O Evangelho de Marcos diz que eles enviaram alguns dos fariseus e herodianos
até Jesus, provavelmente os sumos sacerdotes, mestres da lei, e anciãos
mencionadas em Marcos 11:27.
Estranhamente, Lucas identifica os questionadores como "espiões" enviados pelos
sacerdotes, mestres e anciãos. A identidade desses interrogadores não é
trivial. Com efeito, existiam diferenças
filosóficas marcantes entre fariseus e herodianos. Os herodianos apoiavam o
poder romano, já que por meio dele obtinham benefícios. Os fariseus, por outro
lado, eram mais ambivalentes com relação aos romanos; os fariseus geralmente os
toleravam desde que eles não se intrometessem nas práticas religiosas judaicas.
Contudo, fariseus e herodianos uniram-se por causa de sua oposição conjunta a
Jesus.
Em cada Evangelho, a pergunta é
introduzida de forma diferente, mas o conteúdo da pergunta em si é sempre o
mesmo: "é certo pagar impostos a César ou não?". A pergunta é muito
inteligente. Os herodianos defendiam o pagamento de tributos; se Jesus respondesse
"não", eles teriam motivos para prendê-lo por rebelião contra César. Por outro
lado, de modo geral, os fariseus não gostavam de pagar tributos (embora fossem
forçados a fazê-lo), e uma resposta "sim" resultaria em uma perda de apoio
popular a Jesus.
Além
disso, existe uma sutil expressão jurídica na pergunta: "é certo" ou, em
algumas traduções, "é lícito". Em outras palavras, os fariseus estão
perguntando: "é consistente com a Torá pagar tributos a César?" Todos os
presentes estavam cientes da lei e das palavras de Levítico 25:23. "A terra [de
Israel] não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são
apenas estrangeiros e imigrantes".
A
pergunta agora é mais complexa porque a Torá pode estar em jogo. Dado que César está tentando
tomar a terra de Deus, não seria uma desobediência à Torá o pagamento de
tributos a César?
Jesus
percebeu a malícia da pergunta, é claro, e respondeu de forma astuta. Quando
pede aos fariseus que mostrem a moeda, eles involuntariamente apresentam a
evidência que expõe sua própria hipocrisia. Jesus lhes pergunta qual imagem e inscrição
está na moeda. Eles respondem, provavelmente relutantes: "de César". Mas eles, e todos que ali estavam, perceberam
seu erro, pois as inscrições dessas moedas sempre leriam, "Tibério Claudio
César Augusto, filho do deificado Augusto, sumo sacerdote".
Os
fariseus, dos quais se esperava a defesa da lei de Deus, trouxeram ao templo um
item que efetivamente desobedece ao segundo mandamento: não terás nenhuma
imagem ou ídolo, mostrando que, em seus corações, desobedecem também ao
primeiro mandamento. Eles, não Jesus, são os hipócritas. Eles são os que
aderiram ao sistema pagão romano.
Na
estimativa do teólogo Thomas
Long, a resposta de Jesus significa que "todo mundo tem de decidir entre
César e Deus. Nenhum homem pode servir a dois mestres (Mateus 6:24). Você parece
ter tomado sua decisão, forjado seu conveniente acordo. Mas e sua obrigação a
Deus? Dar a Deus o que pertence a Deus. Escolha
hoje a quem você servirá".
Se
essa interpretação estiver correta, então não há uma diretriz clara para a
resolução das questões igreja x estado. De
nenhuma forma as práticas do estado são aqui legitimadas. Ao contrário, Jesus diz que quaisquer esquemas
de divisão em vida que criamos devem ser terminados, e desencoraja o
nacionalismo ou o jingoísmo como uma prática legítima da Igreja. Podemos até viver sob um estado, mas
pertencemos por inteiro a Deus que está acima de todos os estados. Sempre
devemos dar a Deus o que é de Deus.
Uma
dica interessante sobre a natureza do estado pode ser vista nas tentações de
Jesus (Mateus 4:1-11, Lucas
4:1-13), pouco exploradas
pela maioria dos estudiosos. Em Mateus, a terceira tentação de Cristo são "os
reinos do mundo e seu esplendor", os quais Satã promete dar a Jesus caso ele
seja subserviente a Satã. Estranhamente,
mesmo Satã sendo considerado o "príncipe [regente] desse mundo" (João 12:31, 14:30, 16:11), frequentemente não
consideramos de forma sensata o que significa tal oferta. Creio que Satã foi muito sincero em sua
proposta: Jesus não considerou isso impossível. Jesus parece entender que os
reinos do mundo realmente pertencem ao Satã, e nós não deveríamos pensar
diferente. Logicamente, isso significa
que os reinos do mundo estão em inimizade com Deus. Com efeito, você consegue encontrar comprovações
disso de forma direta e indireta nas escrituras, em diversos textos.
O
Antigo Testamento indica claramente que as religiões pagãs, frequentemente
encorajadas por Satã por meio de suas feitiçarias e bruxarias, eram intimamente
ligadas à liderança política nacional. G.K.
Chesterton concorda com essa interpretação e nos mostra evidências da história
em seu livro o The Everlasting Man.
Herodes compreende que a criança Jesus é uma ameaça ao seu poder, e por
isso ordena a morte de centenas, se não milhares de crianças, em uma tentativa
de impedir essa insurreição (Mateus
2).
Além
disso, o tema da Babilônia como um estado maligno sobre a influência de Satã
permeia o livro do Apocalipse. Em Apocalipse 18:4, por
exemplo, Deus exorta Sua Igreja: "Sai dela, povo meu, para que não sejas
participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas".
Discutir
brevemente as diferenças entre o reino dos homens e o Reino de Deus é um
exercício ilustrativo. Um dos temas recorrentes nos Evangelhos, especialmente
Mateus, é que Jesus é um rei que irá criar o Reino de Deus. Mas Jesus afirma
explicitamente que "meu reino não é deste mundo... meu reino não é daqui (João 18:36). As "regras /
leis do reino" como explicadas no sermão da montanha são diferentes de qualquer
tipo de lei estatal que já existiu.
Além
disso, não é função do cristão usar a força bruta para a vinda do Seu reino,
mas sim "buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça" (Mateus 6:33). Os reinos do
homem são fundados no poder e na violência, mas o Reino de Deus é fundado na
humildade (Mateus 18:4),
serviço (Mateus 20:26)
e amor (João 13:35).
Enquanto não podemos nos desvincular totalmente dos governos desse mundo, somos
lembrados, mais uma vez, que "nossa cidadania, porém, está nos céus" (Filipenses 3:20).
Em suma, os ensinamentos práticos de Jesus sobre
o governo civil são virtualmente inexistentes, mas os
evangelhos fazem algumas colocações fortes sobre a natureza do estado que podem
nos surpreender. O estado parece ter uma forte conexão com Satã e seu reino, e
é antitético ao Reino de Deus, o qual condena o uso do poder para o ganho
pessoal.
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Leia também:
A teologia do estado no Novo Testamento – Romanos 13 e a "submissão" aos governos