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Economia

O que causou a grande fome da Irlanda?

28/08/2014

O que causou a grande fome da Irlanda?

Ao final da década de 1990, o então primeiro-ministro britânico Tony Blair fez um discurso no qual se desculpou pelo fato de a Inglaterra ter feito "muito pouco" em resposta à grande fome que acometeu a Irlanda no século XIX (1845-1852), a qual matou um milhão de pessoas e forçou a emigração de outros milhões de irlandeses.  Segundo historiadores, algo semelhante a um fungo contaminou um grande volume de batatas, impossibilitando seu consumo e matando de fome os irlandeses.

O problema é que o governo inglês, em vez de ser culpado por ter feito "muito pouco", tem de ser culpado por ter feito "muita coisa".

O que causou a fome?  A teoria popular -- que sempre esteve muito em voga nos EUA e na Europa -- diz que os irlandeses eram promíscuos, preguiçosos e excessivamente dependentes da batata.  Como resultado, eles morreram como moscas quando surgiu uma praga que arruinou sua principal fonte alimentícia -- e tudo isso durante um dos mais rápidos períodos de crescimento econômico já vivenciados pela humanidade.

Teria sido essa inanição um acidente ecológico, como normalmente dizem os historiadores?  Como a maioria das inanições já registradas, a irlandesa pouco tinha a ver com um declínio na produção de alimentos.  Adam Smith estava correto ao dizer que "safras ruins geram "escassez", mas é "a violência de governos bem-intencionados que converte escassez em inanição".

Com efeito, a mais evidente causa da inanição na Irlanda não foi uma fitopatologia, mas sim a até então longa e duradoura hegemonia política da Inglaterra sobre a Irlanda.  Os ingleses conquistaram e subjugaram a Irlanda repetidas vezes, e se apropriaram de seus vastos terrenos agrícolas.  Enormes fatias de terra do país foram repassadas compulsoriamente a latifundiários ingleses.  Esses latifundiários ingleses contratavam fazendeiros para administrar suas posses.  E esses fazendeiros, por sua vez, arrendavam pequenas fatias de terra à população irlandesa em troca de sua mão-de-obra e de uma parcela da produção total. 

A disputa por terras entre os ingleses fez com que os preços de arrendamento cobrados dos irlandeses fossem cada vez maiores.  Ao mesmo tempo, os pedaços de terra disponíveis para o arrendamento eram cada vez menores.  Essa combinação entre crescentes preços de arrendamento e decrescentes fatias de terra disponíveis para o plantio empurrou os irlandeses para a subsistência e gerou um enorme fardo financeiro sobra e economia da Irlanda.

Um arranjo de locação de terras só pode ser eficiente se houver direitos, deveres e respeito aos contratos.  O problema é que os irlandeses tinham apenas deveres; eles não tinham absolutamente nenhum direito sobre a terra em que trabalhavam ou sobre qualquer aprimoramento que eventualmente implantassem na terra.  Somente nas áreas povoadas maciçamente por irlandeses protestantes os inquilinos possuíam algum direito sobre seus eventuais aprimoramentos.  E dado que os latifundiários residiam na Inglaterra, eles praticamente não faziam investimentos em suas terras, o que impossibilitava qualquer melhoria na produtividade dos irlandeses.

Sob o domínio inglês, os irlandeses padeceram de várias inanições.  Como um boxeador com as mãos amarradas nas costas, os irlandeses não tinham outra opção senão ficar parados e aguentar heroicamente todos os socos. 

O economista Jean-Baptiste Say foi um dos primeiros a alertar para o fato de que o arranjo adotado -- em que os latifundiários residiam em outro país (Inglaterra) e não faziam investimentos em suas terras -- era deplorável.  Ele corretamente diagnosticou o problema e sobriamente previu os desastrosos resultados que de fato vieram a se concretizar.  Um membro do Parlamento britânico, em resposta, chegou a dizer que tal preocupação era desnecessária, pois os oceanos iriam engolir a ilha irlandesa e destruir tudo o que havia nela.

A lei malthusiana é frequentemente invocada para absolver os ingleses.  Segundo tal interpretação, os irlandeses eram vistos como um bando de promíscuos que se casavam cedo e procriavam em excesso.  O próprio Malthus chegou a considerar a situação irlandesa como incorrigível.  Os irlandeses, portanto, estavam apenas pagando por seus pecados por meio da inanição e das doenças geradas pela fome.

Eram os irlandeses realmente um bando de promíscuos?  A população da Irlanda era de fato alta e a ilha havia se tornado densamente povoada após a união com a Grã-Bretanha em 1801.  Parte desse crescimento populacional pode ser atribuída ao desenvolvimento econômico da época, dado que a população também estava crescendo rapidamente na Inglaterra e no resto da Europa.

Com efeito, a taxa de crescimento da população irlandesa era apenas ligeiramente maior do que a taxa de crescimento da população inglesa, e estava partindo de uma base numérica muito menor.  E por que estava crescendo a taxas maiores?  A resposta está no fato de que a Inglaterra havia atribuído à Irlanda a atípica posição de ser o celeiro da Revolução Industrial.

A Lei dos Cereais britânica foi uma série de tarifas de importação criadas para proteger os agricultores britânicos contra a concorrência estrangeira.  As tarifas não apenas faziam com que os preços dos grãos se mantivessem artificialmente altos na Inglaterra, como também protegiam as safras contra quedas de preços nos anos de fartura.  Em 1821, essas leis foram estendidas à Irlanda, o que significa que os latifundiários ingleses que possuíam terras na Irlanda também eram protegidos por tarifas de importação.    Mas os únicos beneficiários desse protecionismo eram os latifundiários ingleses (inclusive aqueles que possuíam terras na Irlanda), e não os irlandeses.

O povo irlandês conseguia cultivar grandes quantias de batatas nutritivas com as quais alimentavam suas famílias e seus animais.  Já os latifundiários ingleses se beneficiavam do fato de que o plantio de batatas não exauria o solo e ainda permitia que uma grande porcentagem da terra fosse voltada para o plantio de grãos que seriam exportados para a Inglaterra.

Os preços artificialmente altos estimularam não apenas o uso mais intenso das terras atuais como também o cultivo de novas terras na Irlanda.  Um insumo essencial para esse arranjo era a farta quantidade de mão-de-obra irlandesa, que era vista meramente como um bando de servos sem terra. 

Foi durante esse período de protecionismo e de alta demanda por mão-de-obra que a população da Irlanda passou a crescer a altas taxas.

Dado que os latifundiários ingleses estavam no controle do Parlamento, esse arranjo tendia a se perpetuar para sempre.  No entanto, uma crescente fatia de industriais e trabalhadores na Inglaterra começou a defender o livre comércio.  Tais pessoas se articularam, se organizaram e começaram a crescer como força política.  Com a criação da Liga Anti-Lei dos Cereais, os Whigs e os Tories concordaram, em 1845, em reduzir as tarifas de importação e em abolir completamente a Lei dos Grãos já em 1846.  Como consequência, o preço do trigo despencou em 1847, chegando ao menor valor em 67 anos.

Essa abolição de tarifas gerou um drástico e repentino impacto sobre o valor das terras na Irlanda, cujos preços despencaram.  Simultaneamente, houve uma sensível redução na demanda por mão-de-obra irlandesa à medida que as terras da Irlanda deixavam de ser produtoras de cereais e eram convertidas em pasto.

O que tem de ficar claro é que, embora tenha sido o livre comércio o gerador dessas mudanças, quem de fato estimulou o crescimento populacional e a subsequente despovoação (a população irlandesa só foi se recuperar em 1951, e a emigração líquida só acabou e 1996) foram o protecionismo inglês e a Lei dos Cereais.  Não tivesse havido esse incentivo artificial gerado pelo protecionismo, talvez a história teria sido outra.

Esse choque de preços tornou o declínio populacional inevitável.  Quando a emigração se tornou uma opção viável, vários irlandeses preferiram enfrentar longas e perigosas jornadas rumo ao Novo Mundo a encarar uma barca para as fábricas da Inglaterra.

Mas a coisa piora.

Em vez de deixar o mercado funcionar, a Inglaterra lançou um maciço programa de intervenção governamental, o qual consistia essencialmente na execução de obras públicas e na construção de asilos para os pobres, a maioria já concluída imediatamente antes do início da grande fome.  Um pouco antes, um relatório do arcebispo de Dublin Richard Whately, intitulado Irish Poor Inquiry, já havia rejeitado os asilos como solução para a pobreza.  No relatório, o arcebispo Whately argumentou que a solução para pobreza eram investimentos e caridade.  Mas essas soluções "radicais" foram rejeitadas pelos ingleses, que descartaram o relatório.

Os asilos serviram apenas para agravar o problema da pobreza.  Já a execução de grandes obras públicas -- um sistema que na realidade era apenas uma versão antecipada do New Deal -- exigia uma pesada tributação sobre a economia local.  Os burocratas ingleses retiraram dinheiro de projetos que aumentariam a produtividade e a oferta de produtos agrícolas e o redirecionaram para a construção de estradas inúteis.

A maioria dessas estradas ia do nada a lugar nenhum.  Para piorar, a política estabelecida pelos políticos ingleses de pagar salários abaixo do valor de mercado -- e você pode imaginar o quão baixo eles eram -- fez com que os trabalhadores ganhassem, em termos de comida, menos do que a própria energia calórica que eles despendiam ao trabalhar na construção das estradas.

Em 1847, o governo britânico abriu cozinhas públicas para os pobres, as quais serviam sopas.  Tal arranjo foi relativamente exitoso porque, como bem havia sugerido o arcebispo, era uma mímica de uma caridade privada e era capaz de fornecer nutrição sem exigir esforço calórico ou aumentos significativos de impostos.  Mas tal programa foi rapidamente abolido em prol de um retorno à construção de asilos, o que novamente não foi capaz de resolver o problema da pobreza e da fome.  No verão de 1847, o governo elevou impostos, um ato genuinamente irracional.

Além do total fracasso dos programas governamentais, os asilos, as obras públicas e as cozinhas para os pobres geravam uma grande concentração de pessoas em pequenos espaços.  Isso permitiu que os vírus das doenças -- a principal causa mortis da grande fome -- se espalhassem e fizessem seu trabalho maligno. 

Nos vários outros casos de inanição que já haviam ocorrido no passado, o número de irlandeses mortos havia sido pequeno.  Com efeito, a peste da batata não afligiu severamente grande parte da Europa.  O que ocorreu de diferente com a Irlanda nos anos 1840?  As Irish Poor Laws (uma série de leis criadas pelo Parlamento britânico para "resolver" o problema da pobreza na Irlanda) praticamente aboliram a caridade privada.  Nos episódios de fome anteriores, os ingleses e os próprios irlandeses haviam se apressado em oferecer amplos serviços caritativos.  Mas agora a situação era outra.  O governo havia entrado em cena.  Sendo assim, por que fazer caridade e doações se toda a população pagadora de impostos já estava "cuidando da situação"?  A população inglesa passou a ser severamente tributada para pagar os maciços programas assistencialistas criados pelo governo britânico ao passo que os pagadores de impostos da Irlanda simplesmente não tinham como fornecer caridade adicional.

Relatos históricos sobre a postura dos políticos ingleses em relação à caridade privada são nefastos demais para serem ignorados.  Há um relato de que o povo do estado americano de Massachusetts enviou um navio repleto de cereais para a Irlanda, mas as autoridades inglesas o confiscaram alegando que isso afetaria o comércio.  Outro relato afirma que o governo britânico apelou ao sultão da Turquia para que reduzisse suas doações de £10.000 para apenas £1.000, pois isso estava constrangendo a Rainha Vitória, que havia doado apenas £1.000 para os flagelados.

Conclusão

Há teorias que dizem que os ingleses propositadamente geraram a grande fome irlandesa.  Como aquela era uma era de revoluções, e dado que havia suspeitas de que os irlandeses estavam tramando mais uma revolta, trata-se de uma teoria relativamente factível.

No entanto, a questão da culpa não é tão importante quanto a questão da causa.  O que é realmente importante é que a grande fome irlandesa originou-se de grandes erros econômicos, tais como a alegação de que inanições são causadas pelo mercado e pelo livre comércio, e que a fome é resultado de políticas laissez-faire.  Até mesmo Karl Marx foi fortemente influenciado pelos eventos ocorridos na Irlanda enquanto escrevia em Londres.

A Irlanda foi devassada pelas forças econômicas originadas por um dos mais poderosos e agressivos estados que o mundo já conheceu.  Sua população sofreu não por causa de um fungo (cujos cientistas ingleses insistiam ser apenas umidade excessiva), mas sim por causa da colonização, da espoliação, da servidão, do protecionismo, dos preços artificialmente altos sustentados pelo governo, do assistencialismo estatal e de insensatos programas de obras públicas.

Seria muito mais honesto de sua parte se Tony Blair pedisse desculpas por ter causado a grande fome e pelas políticas assistencialistas que apenas agravaram a situação dos irlandeses.


Sobre o autor

Mark Thornton

Membro residente sênior do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, e é o editor da seção de críticas literárias do Quarterly Journla of Austrian Economics.

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