segunda-feira, 12 jul 2021
A
decadência, quando não levada ao extremo, tem lá seu charme arquitetônico. Ruínas são coisas românticas. Tão românticas, aliás, que os cavalheiros
ingleses do século XVIII construíam ruínas em seus jardins para servirem de
lembranças agradavelmente melancólicas da efemeridade da existência terrena.
Fidel
Castro, no entanto, não é nenhum cavalheiro inglês do século XVIII, e Havana
não deveria ser seu imóvel privado para ser usado como um memento mori
pessoal. As ruínas que ele produziu em
Havana são, na realidade, a moradia de mais de 1 milhão de pessoas, cujo desejo
coletivo não tem, como atestam essas
ruínas, o mesmo poder que o desejo de apenas um homem.
"Comandante en jefe", diz um dos vários outdoors políticos que
substituíram todos os cartazes publicitários, "o senhor dá as ordens". Desnecessário dizer que a obrigação de todo o
resto da população é obedecer.
Havana
não mudou quase nada desde a última vez em que estive lá em 1990. Os vastos subsídios soviéticos acabaram; a
economia hoje depende do turismo europeu. Para receber melhor os turistas, a maioria em busca de férias baratas
nos trópicos e gostosamente indiferente à política de Cuba, o governo vem
permitindo um pequeno grau de flexibilidade. Pequenos restaurantes privados que funcionam dentro de casas de família,
chamados de paladares, com não mais
do que 12 cadeiras, já são tolerados — muito embora a contratação de
mão-de-obra que não seja da família, algo considerado explorador pelo regime,
não é permitida.
Nestes
locais, apenas determinados pratos são permitidos. Peixe e lagosta são proibidos, pois são
exclusivos dos restaurantes estatais. Os
poucos paladares que se arriscam a driblar
essas regras funcionam como aqueles locais clandestinos que vendiam bebida
alcoólica nos EUA durante a Lei Seca: seus proprietários que servem peixe ou
lagosta estão constantemente nervosos, sempre preocupados com a possibilidade
da presença de informantes (os Comitês
de Defesa da Revolução ainda estão ativos e operantes em todos os cantos.)
O dono de um destes paladares que visitei — o qual não possuía nenhum sinal na rua avisando
de sua existência — preocupadamente olhava através do olho mágico da porta
antes de deixar qualquer pessoa entrar. Comer uma simples refeição em uma das três mesas parecia uma cena de
filme de espionagem.
Pequenos
mercados de pulgas também já são permitidos em Cuba. Neles é possível observar pequenas trocas envolvendo
roupas usadas e itens domésticos. Em
1990, era inimaginável uma pessoa poder comprar ou vender alguma coisa ao ar
livre, pois comprar e vender era um ato visto como sintoma de 'individualismo
burguês', algo contrário à visão socialista de Fidel, para quem tudo deve ser
racionado — e de maneira racional, por assim dizer — de acordo com as
necessidades de cada um. (Na prática, é
claro, isso significava racionar de acordo com o que havia, o que nunca era muito).
Períodos
de abertura permitindo um comércio de pequena escala já haviam ocorrido em
outros momentos do reinado de mais de quatro décadas dos irmãos Castro. No entanto, tais aberturas rapidamente eram
revogadas e voltava-se ao período de "retificação", pois ficava muito aparente
que os cubanos respondiam com muito mais vigor aos incentivos econômicos do que
aos ditames "morais" louvados nas teorias adolescentes de Che Guevara.
Agora,
no entanto, a atividade comercial está mais liberada, pois ela é essencial para
a sobrevivência econômica do regime. Na
última vez em que estive em Havana, mesmo um estrangeiro carregado de dólares não
conseguia encontrar comida fora do seu hotel — um arranjo que dificilmente
estimula o turismo em
massa. Agora, por pura
necessidade, já há um número satisfatório de cafés e bares para atender os
visitantes.
A
economia cubana está hoje amplamente dolarizada, um curioso e irônico desfecho
para décadas de ardente nacionalismo. Quando
perguntei em meu hotel como fazia para trocar dólares por pesos, disseram-me
que eu não precisaria de pesos. E
estavam corretos. As poucas e
empoeiradas lojas que aceitavam vender seus bens em troca de pesos — a moneda nacional — anunciavam este fato
extraordinário em suas janelas, como se estivessem efetuando um milagre, muito
embora os bens à venda fossem poucos e da mais baixa qualidade imaginável.
Na
última vez em que estive em Cuba, a posse de um dólar por um cubano comum era
crime, uma prova de deslealdade e de desafeição. Dependendo do humor de Fidel, o "criminoso"
podia até ser acusado de estar planejando uma sabotagem econômica da
revolução. Dólares eram manuseados como
se fossem nitroglicerina, prestes a explodir na sua cara ao mais mínimo
solavanco. Agora, no entanto, eles são
meramente unidades monetárias, as quais qualquer pessoas pode manusear.
Embora
os lobbies dos hotéis ainda sejam patrulhados por seguranças com walkie-talkies,
que têm a função de garantir que nenhum cubano não-autorizado adentre o
recinto, o crescente número de turistas em Cuba significa que as relações entre
cubanos e estrangeiros estão mais relaxadas e abertas do que antes. Hoje, um cubano falar com um estrangeiro não
é mais visto como um sinal de infidelidade política; conversas não mais têm de
ser feitas às escondidas, em becos escuros ou atrás de paredes, sempre com um
olho nervoso à procura de espiões e bisbilhoteiros pró-regime.
Eu cheguei até mesmo a receber pedidos para
que enviasse remédios da Inglaterra, dado que não havia nenhum disponível nas
farmácias locais — uma confissão, impensável há apenas alguns anos, de que o
tão propalado sistema de
saúde cubano não é aquela oitava maravilha.
As
pessoas frequentemente falam sobre lo bueno
e lo malo da revolução — quase
sempre acrescentando que lo malo foi
muito, muito ruim. Um cidadão, criado na
década de 1970, disse-me que, em sua adolescência, havia sido contagiado pelo
fervor do romantismo revolucionário, tendo Che Guevara e John Lennon como seus
heróis (ele me contou orgulhosamente que Havana era uma das três cidades com
memoriais para John Lennon, sendo as outras Liverpool e Nova York).
Segundo ele, naquela época ele imaginava que
um novo mundo estava sendo construído; mas agora sabia que não mais havia
perspectivas de progresso.
Um
fato curioso em Havana é que as pessoas mais idosas tendem a murmurar jabón (sabão) quando você passa por
elas, na esperança de que você possa ter um pouco desta rara e preciosa
mercadoria para doar. Quando a primeira
senhora se aproximou de mim e murmurou jabón,
pensei que ela fosse louca. Só depois é
que constatei que ela havia sido apenas a primeira de várias.
Por
outro lado, já há sinais de uma pequena abertura intelectual. Em La Moderna Poesía,
uma livraria que fica em uma construção de estilo art déco na Calle Obispo,
encontrei uma tradução em espanhol de A
Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper. O preço em dólares, no entanto, dificilmente
atrairia compradores cubanos. Talvez o
livro estivesse ali apenas para enganar turistas quanto à tolerância
intelectual do regime; ou talvez fosse uma armadilha para flagrar insurgentes,
de modo que qualquer cubano que tentasse comprá-lo seria delatado às
autoridades.
Mas mesmo assim, a simples presença
de uma obra tão contrária à filosofia do regime seria algo inimaginável há doze
anos.
Em
contraste, os jornais Granma e Rebelde não mudaram absolutamente nada:
lê-los hoje é o mesmo que tê-los lido há 40 anos e será o mesmo que lê-los
daqui a 10 anos, caso o regime continue de pé. A incessante repetição de que está havendo um amplo progresso social em
Cuba mesmo em face das adversidades e das horrendas desintegrações sociais ocorrendo
em todos os outros países do mundo (especialmente, é claro, nos EUA) é algo que
certamente deve entediar até mesmo o mais ardoroso crente do regime.
Logo, não foi surpresa nenhuma eu não ter
visto absolutamente nenhum cubano lendo um jornal ou sequer dando confiança
para os já idosos vendedores itinerantes, cada um com aproximadamente 5 cópias
para vender.
Quando me aproximei de um
deles e demonstrei interesse em comprar um jornal, o velho aproveitou a
oportunidade para abertamente me pedir dinheiro. Vender jornal era apenas um pretexto para se
aproximar de alguém e mendigar. A
pergunta "quanto custa o jornal?" sempre era respondida com "o valor que o
senhor quiser pagar".
Quase
meio século de ditadura totalitária deixou a cidade de Havana — uma das mais
belas do mundo — suspensa em uma situação peculiar, indecisa entre a
preservação e a destruição. Para mim,
que considero a ausência de determinados aspectos esteticamente feios do
comercialismo algo agradável, a cidade tem seu charme: logotipos do McDonald's (e
semelhantes) teriam arruinado o cenário de Havana de forma tão intensa quanto
os Castros o fizeram.
E a relativa
ausência de trânsito em Havana tem seu lado positivo: caso Havana tivesse se
desenvolvido "normalmente", suas ruas estreitas estariam hoje entupidas de
tráfego e poluição, um inferno sufocante como a cidade da Guatemala ou de San
José, Costa Rica, locais onde respirar é ficar sem ar, onde o nível de poluição
sonora faz seus ouvidos cintilarem e os pensamentos saírem correndo.

Por
causa dessas características quase bucólicas, as ruas de Havana são agradáveis
para uma caminhada. Não há fumaça de veículos
e não há barulho de buzinas. Dos poucos
carros que trafegam, a maioria são relíquias americanas da era Batista,
surrados mas, na medida do possível, restaurados.
Eles trepidam e sacodem ruidosamente como
burros de carga que se impulsionam sob um esforço tremendo. Alguns parecem andar como caranguejos, não
para a frente mas de lado. E com toda a
ferrugem acumulada, estes veículos — que em outros cenários pareceriam
produtos banais descartados por uma sociedade industrializada — adquiriram uma
aura romântica, quase uma personalidade própria. Eles são adorados e estimados como velhos
amigos insubstituíveis; e, quando você olha para eles, é impossível não pensar
em como todos os objetos que hoje tomamos como corriqueiros podem um dia vir a
se tornar relíquias inestimáveis. Isso
ajuda você a encarar o mundo de outra forma.
Em
1958, Cuba tinha uma renda per capita maior do que a de metade dos países da
Europa, a menor taxa de inflação do Ocidente e uma classe média maior do que a
da Suíça, e isso é perfeitamente observável no esplendor de Havana e em como
sua beleza é ampla, um testemunho de quão rica (e sofisticada) a sociedade que
produziu deve ter sido. O esplendor de
Havana, longe de estar confinado a apenas um pequeno bloco da cidade, se
estende por quilômetros.
Não
há palavras que possam fazer justiça à genialidade arquitetônica de Havana, uma
genialidade que se estende desde o classicismo da Renascença do século XVI —
com casas sérias e perfeitamente proporcionadas contendo quintais com colunatas
refrescados e suavizados por arbustos e árvores tropicais — à exuberante art
déco das décadas de 1930 e 1940.
Os
cubanos, ao longo de sucessivos séculos, criaram uma harmoniosa arquitetura
praticamente sem par no mundo. Dificilmente se encontra em Havana uma construção que seja errônea ou
que tenha um detalhe que seja supérfluo ou de mau gosto. A multicoloração ladrilhada do prédio Bacardi,
por exemplo, que poderia ser considerada extravagante em outros locais, é
perfeitamente adaptada — de maneira natural — à luz, ao clima e ao
temperamento de Cuba. Os arquitetos
cubanos certamente entendiam a necessidade de ar e sombra em um clima como o de
Cuba, e eles proporcionaram suas construções e seus espaços de acordo. Eles criaram um ambiente urbano que, com suas
arcadas, colunas, varandas e sacadas, era elegante, sofisticado, conveniente,
jovial e prazeroso.
Atualmente,
todo esse esplendor praticamente já se foi. A cidade parece hoje um grande arranjo de variações de Bach sobre o tema
da decadência urbana. O estuque e o
reboco deram lugar ao mofo. Os telhados
elegantes já não existem mais, tendo sido substituídos por chapas de ferro
corrugadas. Venezianas se esfacelaram e
viraram serragem. As pinturas são um
mero fenômeno do passado. Escadarias
desembocam em
precipícios. Não há
vidros nas janelas. As portas se
soltaram de suas dobradiças. As paredes
nos interiores das casas desabaram. Estacas de madeira sustentam, sem nenhum grau de segurança, todos os
tipos de estruturas. Fios elétricos
antigos são visíveis nas paredes, como vermes em um queijo. As sacadas de ferro forjado estão severamente
oxidadas. O gesso e o reboco se
descascam como uma doença de pele maligna. As pedras de pavimentação das calçadas são arrancadas para outros
propósitos.

Todos
os grandes e belamente proporcionados aposentos das casas — visíveis através
das janelas ou dos buracos nas paredes — foram subdivididos com madeira
compensada em espaços menores, nos quais famílias inteiras hoje moram. Roupas estão penduradas em janelas de casas
que antes eram palácios. À noite, todas
as vias são escuras e as luzes elétricas emitem apenas um brilho fraco e
mortiço. Nenhum escombro ou ruínas são
considerados severos demais a ponto de impossibilitar seu uso como moradia.
Havana
é como uma cidade que foi destruída por um terremoto e cuja população foi
forçada a sobreviver em meio aos escombros enquanto a ajuda não chega.
Após
a revolução, poucos prédios foram construídos em Havana, o que é ótimo dado que
estes poucos foram construídos naquele estilo de modernismo totalitário,
arruinando toda a vizinhança. Na Plaza
Vieja, um grande e antigo prédio colonial foi transformado em apartamentos de
luxo para serem alugados por turistas, e há um excelente restaurante, só para
turistas, no térreo (a própria ideia de um excelente restaurante em Cuba era
impensável há 12 anos).
A burguesia é um
pouco como a natureza: por mais que você tente dizimá-la com uma revolução, no
final ela sempre acaba voltando.
Embora
esteja havendo alguns esforços de restauração no centro da cidade — que foi
declarado pela UNESCO como patrimônio da humanidade —, tais esforços em nada
se comparam ao tamanho da degradação da cidade. Uma das mais magníficas das várias magníficas ruas de Havana é conhecida
como Prado, uma larga avenida que leva até o mar. Algumas da belas e bem proporcionadas mansões
ao longo do Prado praticamente se desmoronaram em ruínas; outras estão com suas
fachadas — tudo o que restou delas — sustentadas por escoras de madeira.
Havana é como Beirute, mas sem ter passado
por uma guerra civil para ser destruída.
No
entanto, não se pode dizer que os habitantes de Havana pareçam infelizes. Crianças animadas jogam beisebol nas ruas com
bolas de trapos comprimidos e tacos de canos de metal (curiosamente, o país da
América Latina com a mais robusta tradição política anti-ianque tem no beisebol
o seu esporte favorito); há muita interação nas ruas, muitos sorrisos e
conversas. E não é raro se deparar com
alguma pequena festa com música e dança.
Quando
você olha para dentro dos lares que as pessoas fizeram em meio às ruínas, é
possível notar aqueles pequenos e comoventes sinais de orgulho próprio e de
dignidade que também vemos nas choupanas da África: flores de plástico
cuidadosamente arrumadas e outros ornamentos baratos. Uma predileção pelo cafona entre os ricos é
um sinal de empobrecimento espiritual; porém, entre os pobres, representa um
esforço pela beleza, uma aspiração sem chances de ser realizada.
São os mais velhos que demonstram maior
abatimento: seus pensamentos naturalmente se voltam para o passado, e o
contraste entre a Havana de sua juventude e a Havana de sua senilidade deve ser
um espetáculo difícil de ser contemplado.
Esse
contentamento de alguns e essa resignação de outros em meio às ruínas não reduzem
a profunda tristeza de ver a destruição de uma obra de arte gerada pelo esforço
humano ao longo dos anos. Como deve ser
viver em meio às ruínas de sua própria cidade, ruínas estas que não foram
causadas por nenhuma guerra ou desastre natural, mas sim pela mera adesão a uma
ideologia?
Não é difícil algum cubano
querer mostrar voluntariamente para você as ruínas decrépitas onde ele mora,
algo aliás que eles fazem com um sorriso; o fato é que viver nestas condições
simplesmente se tornou algo natural para eles. O colapso das paredes e das escadas lhes parece tão natural quanto o
tempo.

Nas
publicações oficiais (e todas as publicações em Cuba são oficiais), os únicos
personagens positivos do passado são os rebeldes e os revolucionários,
representando uma contínua tradição nacionalista da qual Fidel é a
apoteose. Não há nenhum deus, mas apenas
a revolução. E Castro é o profeta. O período entre a independência cubana e o
advento de Castro é chamado de "a pseudo-república", e a ditadura de Batista,
sua brutalidade e a "pobreza extremada" da época são as únicas coisas que se
deve (ou que se permite) saber sobre a vida imediatamente antes de Castro.
Mas
quem criou Havana e de onde veio toda a sua magnificência se, antes de Fidel,
só havia pobreza, corrupção e brutalidade? Essa é a pergunta que os cubanos atuais não podem fazer.
Os
terríveis estragos feitos por Fidel serão duradouros e irão sobreviver por muito
tempo após o fim do seu regime. Vários
bilhões em capital serão necessários para restaurar a bela Havana. Problemas legais envolvendo direitos de
propriedade e moradias serão custosos, amargos e intermináveis. E a necessidade de se saber equilibrar
considerações comerciais, sociais e estéticas na reconstrução de Cuba irá
requerer enorme sabedoria e bom senso.
Mas,
enquanto o regime não cai, Havana serve como um pavoroso alerta ao mundo — se
algum ainda fosse necessário — contra os perigos de ideologias erradas e de
monomaníacos que genuinamente acreditam conhecer uma teoria capaz de corrigir o
futuro e o mundo.
Artigo originalmente escrito em agosto de 2002
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