No artigo anterior, foi discutida uma teoria sobre a maré estatista que vinha ocorrendo na América Latina. Agora é hora de aprofundar um pouco mais aquela teoria.Vivemos
sob um sistema econômico intervencionista. Mas, surpreendentemente, é raro encontrar nos
escritos dos economistas modernos análises sobre a lógica do intervencionismo
visto como um sistema econômico, com exceção dos economistas austríacos. Neste artigo, revisaremos os fundamentos da
análise desses autores sobre o assunto.
Ao
analisar o intervencionismo como um sistema econômico, os austríacos retomam
uma tradição típica da economia clássica. A Riqueza das Nações de
Smith, por exemplo, se lida na íntegra, se revela uma comparação do desempenho
econômico de conjuntos de instituições liberais e intervencionistas —
denominadas "sistemas de liberdades naturais" e "mercantilismo",
respectivamente. Da mesma forma, nos escritos de economistas antigos, como
Turgot, Say, Bastiat e outros autores, em sua maioria franceses, podemos
constatar a centralidade da crítica ao intervencionismo. Com o advento da
ortodoxia ricardiana, no entanto, essa tradição tendeu a sair de cena, devido
em parte à adoção de uma orientação teórica mais macroeconômica e agregada, até
desaparecer por completo com Marx. Na
obra deste autor, os conceitos denominados "capitalismo" e "socialismo"
aparecem como os sistemas econômicos relevantes, sendo o intervencionismo
erroneamente visto como uma forma transitória do primeiro.[1]
O
domínio da visão de mundo marxista nas ciências sociais influenciou até mesmo
os economistas ortodoxos modernos. Estes
continuam a trabalhar com as noções de capitalismo e socialismo, preferindo,
porém, de forma pretensamente científica, uma terceira via entre esses dois
extremos, que seriam defendidos em termos puramente ideológicos. Entretanto, raramente ouvimos explicações
sobre as diferenças entre esse sistema idealizado e o intervencionismo
concreto, comumente denominado "capitalismo de estado". Mesmo assim, segundo a crença desses
economistas, o intervencionismo concreto, do mundo real, não é sujeito a
regularidades que justifiquem uma teoria sobre seu funcionamento. A estatolatria prevalecente em nossa época faz
com que o estado seja romantizado, visto como uma entidade abstrata pautada
pelo interesse coletivo. Isso barra a análise das falhas de governo e a
investigação sobre a existência de algum padrão a respeito do funcionamento da
intervenção estatal[2].
Ludwig
von Mises, porém, retomou no século XX a tradição clássica de crítica ao
intervencionismo, desenvolvendo ao longo de sua carreira uma extensa análise de
vários aspectos desse sistema econômico, desde o exame de sua ideologia[3] e
estudos históricos sobre suas consequências[4], até
trabalhos teóricos sobre o funcionamento da burocracia estatal[5] e
também sobre a crítica ao sistema econômico intervencionista[6]. A respeito desse último tópico, não contente
em estabelecer a tese sobre a inviabilidade do socialismo (tese até hoje sem
respostas satisfatórias), Mises mostrou que a alternativa intervencionista
tampouco consiste em um sistema econômico viável, pois as contradições
inerentes ao mesmo o tornam instável, tendendo sempre para os limites de uma
economia livre ou controlada centralmente. Vejamos o argumento mais de perto.
Em
primeiro lugar, Mises define intervenção como
uma norma restritiva imposta por um órgão governamental,
que força os donos dos meios de produção e empresários a empregarem estes meios
de uma forma diferente da que empregariam."[7].
Dada
essa definição, o autor divide sua análise em dois grandes grupos, restrições
de produção (como normas de qualidade, restrições ao comércio exterior ou
restrições de ocupação) e intervenções no sistema de preços (como o
estabelecimento de preços máximos e mínimos). Em ambos os casos, os efeitos das intervenções
são o oposto daquilo desejado pelo governo. No primeiro caso, o emprego do capital em
linhas diferentes daquelas que os agentes livres desejariam tem o efeito de
reduzir a produtividade do investimento e portanto diminuir a riqueza
produzida, o que gera por sua vez novos problemas de ordem econômica.
É
no segundo tipo de intervenção, contudo, que Mises desenvolve de forma mais
completa a dinâmica do processo intervencionista, dinâmica essa gerada pela
resposta aos novos problemas que surgem como consequência das intervenções
anteriores. Se, por exemplo, o preço do
leite for alto o bastante de modo a impossibilitar um nível de consumo tido
como desejável, o governo poderia estabelecer um preço máximo para o produto. O preço inferior faz com que os vendedores
retirem os produtos não perecíveis do mercado, para evitar prejuízos. Isso provoca uma reação governamental, que
decreta a liberação compulsória dos estoques. Mas, como todo aluno de Introdução à Economia
sabe, ao preço menor a demanda será maior do que a oferta e a quantidade de
leite de fato transacionada diminui em vez de aumentar. O governo poderá então impor um sistema de
racionamento para evitar as consequências das intervenções anteriores. Com o
esgotamento dos estoques, para evitar a interrupção da oferta das firmas que
operariam com prejuízo, o governo deverá então controlar os preços dos insumos,
desencadeando assim o mesmo tipo de efeito em outros mercados, com o capital
migrando para os setores não controlados e frustrando o plano inicial. Para obter uma alocação de recursos
consistente, o controle deve então se entender para todo o sistema de preços,
controlando salários e em última análise forçando os trabalhadores e
empresários a empregar seus esforços nas direções desejadas pelo governo. Chega-se assim a um sistema totalmente
controlado — o socialismo. A
alternativa seria o abandono dos controles e teríamos novamente uma economia
livre.
Na
evolução do processo intervencionista, o fator ideológico exerce papel
preponderante, segundo Mises. Na
presença da ideologia estatista, cada fracasso de uma intervenção gera demandas
por novas intervenções: a culpa dos problemas nunca é a intervenção em si, mas
a falha em aplicar a lei e o egoísmo dos agentes econômicos. Exigem-se então
novas e mais rigorosas leis. Isso,
adicionalmente, corrói a moralidade da sociedade, pois o vendedor de leite que
burla a lei serve ao interesse público e o funcionário público que procura
aplicá-la age contra esse interesse. No
que se refere ao passado recente no Brasil, por exemplo, todo gerente de varejo
respeitável já foi preso por remarcar preços e os contrabandistas de
microcomputadores de décadas atrás merecem monumentos públicos por violar a lei
da informática vigente nos anos 90...
Com
o exemplo do leite, Mises ilustra a tese da instabilidade do
intervencionismo. Naturalmente, outras
intervenções poderiam ser tentadas, mas sempre com o mesmo efeito de
consequências não intencionais que se alastram para o resto da economia, até se
refletir na deterioração do quadro macroeconômico do país. A evolução da teoria austríaca do
intervencionismo a partir de então reage ao desafio de estender a análise
básica de Mises aos demais tipos de intervenção. Como notou Lavoie[8],
Mises define intervenção de forma desnecessariamente estrita, excluindo de sua
análise os gastos públicos, tributação, operação de indústrias estatais,
fornecimento de bens subsidiados e outras intervenções, embora ele vá ao longo
da sua carreira progressivamente incluindo alguns desses pontos em sua crítica.
Lavoie considera, por exemplo, que a
teoria austríaca dos ciclos se encaixa perfeitamente no padrão proposto:
injeções de crédito falham em estimular a economia no longo prazo, gerando
ciclos de bolhas e crises que são atribuídas não às autoridades monetárias e ao
sistema bancário sob sua proteção que iniciaram o processo, mas ao mercado
livre. Isso cria demanda por ainda mais
crédito e gastos públicos, propostos como remédios que, além de não funcionar,
geram déficits que criam novas dificuldades para a economia no futuro.
Rothbard,
discípulo de Mises, procura então em sua obra principal estender o escopo da
análise misesiana. Para esse autor, intervenção estatal é vista como toda "... intrusão
de força física agressiva na sociedade; significa substituição da ação
voluntária pela coerção."[9].
Para
ajudar a generalizar a análise, Rothbard cria uma tipologia de intervenções: a)
intervenções autistas, referentes ao comportamento privado (como aquelas
referentes à liberdade de expressão, proibição de consumo ou direito a
deslocamento das pessoas), b) intervenções binárias, relativas às relações com
o estado (como tributação, bens públicos, nacionalização de indústrias) e c)
intervenções triangulares, que forçam ou impedem a troca com terceiros (como
controles de preços, regulações de comércio e contratos, regulações ambientais
e de segurança). De posse dessa
tipologia, o autor de fato é capaz de cobrir um espectro maior de intervenções
na análise, aumentando o peso do argumento original.
Com
a evolução da teoria austríaca do processo de mercado a partir das
contribuições de Hayek e mais tarde Kirzner[10],
a análise austríaca do intervencionismo passa a ter uma base teórica comum:
todas as intervenções podem ser analisadas em termos da diminuição da
capacidade de adaptação dos mercados às mudanças que continuamente ocorrem nas
economias. Os erros acumulados e
consequências não intencionais das intervenções são então explicados pelo
bloqueio a atividade empresarial de descoberta que caracteriza a competição em
mercados livres.
De
posse desse aparato teórico, Ikeda[11] reformula
a tese misesiana de modo a criar uma teoria austríaca de ciclos
intervencionistas. O principal problema
da explicação de Mises, nota Ikeda, é a sua previsão (que lembra Marx) sobre o
fim eminente do sistema intervencionista sob o peso de suas contradições. Para Mises, esse sistema pode ter uma
sobrevida devido ao uso daquilo que denomina "fundo de reservas" de riquezas
previamente criado pela sociedade mais livre. Embora seja de fato verdadeiro que sociedades
já ricas podem se dar ao luxo de manter políticas destrutivas por mais tempo e
que, de fato, vivemos no Brasil a experiência que comprova que estatizar antes
de enriquecer impede o desenvolvimento, podemos constatar que o
intervencionismo ou mercantilismo é o sistema econômico mais frequente e
duradouro nas sociedades que superaram um estágio tribal de desenvolvimento. O que explicaria isso?
A
previsão de Mises pode ser entendida em termos de sua visão de mundo
racionalista e otimista: no longo prazo um sistema econômico incoerente não
sobrevive, pois a razão no longo prazo reconhece essa incoerência. Para Ikeda, por outro lado, o sistema
intervencionismo seria um exemplo do conceito hayekiano (e polanyiano) ordem
espontânea: se examinarmos a lógica da evolução do tamanho do estado, existem
forças que, por um mecanismo de retro-alimentação, conferem estabilidade ao
sistema.
Por
um lado teríamos uma fase expansionista do ciclo intervencionista: como
descreve Mises, intervenções geram uma reação em cadeia que demandam mais
intervenções. O acúmulo de problemas
gerado por um estado altamente intervencionista, embora comumente atribuído aos
mercados livres, diminui a efetividade das novas intervenções e facilita para
um número progressivamente maior de pessoas a tarefa de reconhecer as
verdadeiras causas do fenômeno. No
limite, o crescimento do estado se depara com o problema da impossibilidade do
cálculo econômico socialista: sem propriedade privada não teríamos mercados
cujos preços auxiliam os agentes na tarefa de avaliar a importância das
diferentes linhas de ação econômicas alternativas.
Quando
a crise do intervencionismo se manifesta sob a roupagem de uma crise
macroeconômica, os governos são pressionados a, contra sua própria ideologia,
promover reformas na direção liberalizante. Teríamos então a fase contracionista do ciclo
intervencionista. Será possível que essa
fase nos leve a um estado mínimo ou ainda a uma sociedade anárquica, com estado
zero, no outro extremo? Para o autor,
isso não ocorre devido à instabilidade do estado mínimo (ou nulo): os problemas
informacionais que assolam a ação estatal (ou organizações voluntárias para
provisão de bens públicos) permanecem e, sendo assim, se faz presente o mesmo
processo de expansão (criação) do estado propelido por erros de ações
anteriores.
A
análise de Ikeda tem vários méritos, o maior deles relativo à ideia em si de
ciclos intervencionistas. Adicionalmente,
o autor engloba em sua análise não apenas o intervencionismo dirigista
convencional, mas também o intervencionismo distribucionista, fundamental para
a compreensão da lógica do estado de bem-estar moderno. Além disso, por motivos de rigor analítico, a
teoria é construída supondo interesse público da parte do governo, mostrando
assim que apenas o problema hayekiano de conhecimento limitado basta para
explicar o ciclo intervencionista, embora o autor não despreze o estudo da
lógica do autointeresse na política. A
introdução desse tipo de consideração aumenta imensamente o poder explanatório
da teoria a respeito dos padrões observados na desaceleração da fase
contracionista, o que aumenta a importância da discussão das questões
ideológicas: seria possível a difusão do diagnóstico liberal quebrar a
resistência a reformas imposta por aqueles que vivem de privilégios concedidos
pelo estado?
Neste
ponto a análise de Ikeda poderia ser modificada. Para esse autor, as
preferências ideológicas são em larga medida exógenas, variando um pouco,
porém, em termos de modificações na taxa marginal de substituição entre ação
voluntária e ação estatal conforme estejamos em diferentes fases do ciclo: no extremo
liberal, demandam-se mais intervenções, no extremo estatista preferem-se
liberalizações. A correção do excesso de
otimismo de Mises no poder da razão e uma compreensão mais profunda da relação
entre ideologia e evolução institucional seriam dadas pela incorporação na
análise das ideias desenvolvidas nos últimos trabalhos de Hayek[12]. Nestes trabalhos, Hayek investiga, por um
lado, a evolução da ideologia que fundamenta o intervencionismo e o socialismo,
derivada de uma moral tribal, disfuncional em termos das necessidades impostas
por uma sociedade livre mais complexa. Por
outro lado, o autor explica em termos evolucionários o processo de mudanças
institucionais, como algo entre a razão e o instinto e não como algo que possa
ser planejado de cima para baixo. Essas
duas linhas de investigação, trazidas para a teoria dos ciclos
intervencionistas, são capazes de explicar uma assimetria entre as fases
expansionista e contracionista do ciclo: ou seja, porque tão logo que as
primeiras reformas liberalizantes aliviam as crises do intervencionismo, o
processo de reformas é abortado e as práticas intervencionistas retomadas.
Levar
mais a sério a tenacidade da ideologia intervencionista nos leva então a um
problema fundamental: como quebrar a lógica de expansão do estado? Embora nossas preferências políticas liberais
nos direcionem para a investigação desse desafio intelectual, uma solução
convincente ainda não existe e, infelizmente, uma teoria de ciclos
intervencionistas realista ainda se assemelha a um modelo biológico de
hospedeiro-parasita, no qual o problema do estado é extrair o máximo de
recursos do hospedeiro sem matá-lo. Paradoxalmente,
o fantástico grau de adaptabilidade da ação livre, capaz de sobreviver a
ataques extremamente agressivos do parasita, é a causa última da ubiquidade e
permanência do intervencionismo.
[1] Para
uma análise do contraste entre as noções marxista de modos de produção e o
mercantilismo, ver Osterfeld, D. "Marxism, Method and Mercantilism" in Maltzev,
I. N. (ed.) A
Requiem for Marx, Auburn: Ludwig von Mises Institute, 1993.
[2] A
crítica a políticas intervencionistas como controles de preços subsiste na
análise ortodoxa em ambientes nos quais prevaleceria a estrutura de mercado
denominada "competição perfeita". Fora desta, os economistas acreditam que os
fundamentos da economia, como a estrutura de custos e as curvas de demanda, são
conhecidas pelo governo e pelas firmas de modo independente do processo
competitivo no mercado, de forma que se recomenda a intervenção no sistema de
preços sem as consequências negativas reconhecidas no primeiro caso. Para uma
análise da justificativa econômica padrão das intervenções, ver o artigo
anterior: "Eficiência econômica e a abordagem do nirvana".
[3] Mises,
L. (2010) A Mentalidade
Anticapitalista. São Paulo: Instituto Mises Brasil.
[4] Mises,
L. (1985) Omnipotent
Government: The Rise of the Total State and Total War. Spring Mills:
Libertarian Press.
[5] Mises, L
(1983) Bureaucracy. Grove City:
Libertarian Press.
[6] Ver
Mises, L. [1929] (s.d.) Uma
Crítica ao Intervencionismo. Rio de Janeiro: Instituto Liberal-Nordica; Mises,
L. [1929] (2010.) Intervencionismo:
uma análise econômica. São Paulo: Instituto Mises Brasil e também Mises, L.
[1949] (2010) Ação Humana, São Paulo: Instituto Mises Brasil.
[7] Mises,
L. Uma Crítica ao
Intervencionismo, página 18.
[8] Lavoie,
D. (1982) The Development of the Misesian
Theory of Interventionism in Kirzner, I. Method, Process, and Austrian
Economics. Lexington: Lexington Books.
[9] Rothbard,
M. (1993) [1962] Man, Economy and
State. Auburn: Ludwig von Mises Institute , pág, 766.
[10] Hayek,
F.A. (1980) Individualism and Economic Order. Chicago: The University of
Chicago Press; Kirzner, I. (1986) Competição e Atividade Empresarial, Rio de
Janeiro: Instituto Liberal.
[11] Ikeda,
S. (1997) Dynamics of the Mixed Economy: toward a theory of interventionism.
Londres: Routledge.
[12] Hayek,
F. A. (1985) "Direito, Legislação e Liberdade", vols. I, II e III, São Paulo:
Editora Visão Ltda. e Hayek, F. A. (1991), Hayek, F.A. "The Fatal Conceit: The
Errors of Socialism". Chicago: The University of Chicago Press.