Obs:
o artigo a seguir é a parte final de um texto escrito especialmente para a
futura revista acadêmica do IMB. Leia a primeira parte aqui.
Mises,
Hayek, Kirzner e a tendência ao equilíbrio
A
vertente austríaca tradicional, composta por Menger, Mises, Hayek e Kirzner,
entre outros, pode ser considerada, no que se refere a seu entendimento do
fenômeno do mercado, como uma tentativa de reformulação e reconstrução das
ideias neoclássicas fundamentais, conforme observou Sarjanovic. Com efeito, enquanto os neoclássicos
enfatizavam a chamada análise de equilíbrio parcial ou geral e os problemas
implicados por essa análise, colocando em uma posição secundária o estudo dos
processos mediante os quais os mercados atingem o equilíbrio, a vertente
principal dos austríacos prioriza como objeto de estudo o processo de mercado,
relegando a análise das condições de equilíbrio a um plano não mais que
instrumental.
Para
a Escola Austríaca, o mercado é um processo de permanentes descobertas, o qual,
ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos
formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam
a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado
de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.
Carl
Menger tem como quase todos os fundadores uma história complexa, na medida em
que suas obras, como observou Langlois, contêm elementos que foram retomados de
formas diversas por seus seguidores. Kirzner, por exemplo, sustenta que o
fundador da Escola Austríaca não pode ser enquadrado como um teórico do
desequilíbrio, ao passo que Jaffé, Alter e O'Driscoll sugerem que sua obra
contém elementos que permitem classificá-lo como um precursor da abordagem que
vê os mercados como processos de desequilíbrio. A leitura atenta dos trabalhos
de Menger permite-nos verificar sua crença de que a economia não está
permanentemente em equilíbrio, embora tenda sempre para o equilíbrio; contudo,
não ficam claras suas posições nem sobre o papel do empresário, nem sobre o dos
preços de equilíbrio.
Mises,
por sua vez, sustentava que a principal característica da Escola Austríaca era
sua teoria da ação e não uma teoria de equilíbrio ou de
inação. Assim, seu objetivo é explicar os preços que são efetivamente
praticados no mercado e não os preços que prevaleceriam em condições que jamais
se verificam, como as que servem de apoio às teorias de equilíbrio de mercado.
Por isso, ressaltava que "devemos reconhecer que sempre estudamos o
movimento e nunca um estado de equilíbrio". De fato, o uso de
"construções imaginárias", como o conceito de "economia
uniformemente circular", que é uma das características da obra de Mises,
não revela qualquer pretensão de representar a realidade; pelo contrário, seu
objetivo é apresentar uma imagem tão essencialmente afastada da economia real
que, a partir do forte contraste produzido em relação à complexa realidade
econômica, seja possível compreendê-la tal como se apresenta.
A
idéia hayekiana de coordenação intertemporal representa um
avanço sobre a construção misesiana de "economia
uniformemente circular", uma vez que o conceito de Hayek envolve, sem
dúvida, uma aplicação mais consistente do subjetivismo, já que abandona o
requisito de que os dados externos (preferências, tecnologia e recursos) não se
alteram, requerendo, em troca, que esses dados não variem com respeito às
expectativas que guiam os planos dos agentes econômicos. A contribuição de
Hayek para a teoria do processo de mercado deriva, essencialmente, de sua visão
de que o conhecimento humano é imperfeito. Essa limitação do conhecimento, que
se traduz em informações incompletas e na possibilidade de ocorrência de
alterações nas preferências, na tecnologia e nos recursos, reflete-se também
nos planos de ação dos participantes do mercado. Assim, os agentes econômicos
não apenas são parcialmente ignorantes, mas as informações que possuem em cada
caso são diferentes e, não raro, contraditórias e, além disso, as expectativas
que formam a respeito do futuro são, em boa parte, divergentes. Este problema,
que Hayek denominou de "dispersão do conhecimento", é
considerado por ele como a questão central a ser resolvida pela economia.
A
pergunta relevante, para Hayek, deve ser: quanto conhecimento e que
tipo de conhecimento por parte dos agentes econômicos tornam-se necessários
para que possamos falar em coordenação perfeita entre os planos de todos os
agentes econômicos, ou seja, em equilíbrio de mercado? O papel do
mercado, então, é o de servir como um processo, mediante o qual,
por tentativas e erros, tanto o conhecimento como as expectativas dos
diferentes membros da sociedade vão se tornando paulatinamente mais compatíveis
no decorrer do tempo. Surge desta maneira a importância fundamental, primeiro,
do sistema de preços, com o papel de emitir sinais para que os diversos
participantes do processo de mercado possam coordenar seus planos ao longo do
tempo e, segundo, da competição, como o único meio de descoberta das
informações que são realmente relevantes. Evidentemente, a ignorância gerada
pela escassez de conhecimento e que envolve o processo de trocas, fará com que
diversos planos fracassem e a tendência para um maior grau de coordenação
dependerá, de um lado, da capacidade de cada agente aprender com seus próprios
erros e, de outro, de sua capacidade de substituir por planos cada vez mais
corretos os que fracassaram anteriormente.
Se
desejarmos condensar para o leitor a posição de Hayek, podemos escrever que em
sua concepção a importância do processo de mercado é a de servir como um
mecanismo transmissor de informações, proporcionando economia de conhecimento.
De fato, requer-se de cada participante do mercado um grau baixo de
conhecimento, para que possa agir corretamente.

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Israel Kirzner
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Dentre
os "austríacos", contudo, é Israel Kirzner, londrino que viveu e
estudou em Cape Town
e que obteve seu PhD na Universidade de Nova Iorque, onde foi professor
(atualmente está aposentado), quem mais se dedicou (juntamente com Lachmann, que
pertence à geração anterior) à análise do processo de mercado e das
características da atividade empresarial. Segundo ele, uma das causas da atual
crise da teoria econômica é a ênfase excessiva que ela tem dedicado ao estudo
dos casos de equilíbrio. Com efeito, embora não seja correto repelirmos de
antemão a ideia de mercados em equilíbrio, o bom senso e a simples observação
do mundo real, de um lado, e o espírito de seriedade acadêmica, de outro,
obrigam-nos a reconhecer as limitações explicativas e normativas da ênfase no
equilíbrio.
Ao
adotarmos essa postura, deparamo-nos imediatamente com dois questionamentos aos
modelos de equilíbrio geral derivados de Walras: se os agentes econômicos são
tomadores de preços, como surgem, então, os preços? Além disso, como se
coordenam as ações dos diferentes indivíduos? A corrente principal da teoria
neoclássica recorreu ao conceito de "leiloeiro walrasiano" para
dar resposta às questões, isto é, os preços seriam gerados por um ente
fictício, não participante do mercado, cuja atuação também coordenaria a dos
participantes. Kirzner, ao contrário, prefere explicar a formação de preços
como o resultado da interação entre os agentes econômicos que atuam nos
mercados.
Emerge,
assim, a importância da função empresarial, cuja essência é um
estado de permanente alerta, no sentido de conseguir captar oportunidades de
lucros não descobertos anteriormente. Tais oportunidades, que se revelam nos
mercados através de diferenciais entre preços, são descobertas gradualmente
pelos empresários que, ao explorá-las, tendem a corrigir desequilíbrios
anteriores e, com isso, a promover maior coordenação entre os planos
individuais e, portanto, a gerar uma tendência de equilíbrio
nos preços. Isto decorre do axioma fundamental da praxeologia, de
que a ação humana, sendo motivada pela vontade de aumentar a satisfação
individual, promove revisões nos erros anteriores que devem conduzir a erros
sucessivamente menores. Na ausência de divergências de expectativas, o sistema
tenderia automaticamente a um estado de completa coordenação que, no entanto,
não é alcançado, na medida em que as divergências que cada participante do
mercado formula subjetivamente tendem a gerar transformações permanentes.
O
gráfico 4 é uma tentativa de ilustrar essa visão de tendência ao equilíbrio dos
mercados como um processo que converge para o equilíbrio, sem, contudo,
atingi-lo, devido às características que analisamos em Mises, Hayek e Kirzner.
[Devo sua ideia economista Rezso Divenyi, ex-estudante da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro]. Embora reconhecendo a impropriedade apontada pela
metodologia austríaca no que se refere ao uso de gráficos de demanda e oferta
para representar os mercados e também sabendo que o tempo, ao ser representado
por uma reta, tal como no aparato newtoniano, assume as características de
tempo estático (e não do tempo real, o relevante para a teoria econômica),
podemos temporariamente deixar à parte essas críticas dos economistas
austríacos e, contemporizando um pouco com a "mainstream economics",
visualizar o processo de mercado ao longo do tempo como a série de diagramas de
oferta e de demanda, cada um se referindo a um momento específico do tempo, que
está representado pela linha diagonal.
Cada
figura elíptica em um dado ponto do tempo representa o conjunto de
possibilidades que podem estar acontecendo no mercado, naquele determinado
momento, incluindo o ponto de equilíbrio. Com o decorrer do tempo o mercado
converge para o equilíbrio, ou seja, para o vértice de cada um dos cones. Só
que, antes que esse ponto de equilíbrio seja atingido, mudam as condições de
mercado que determinam as curvas de oferta e demanda e, com isso, passamos para
uma nova elipse. A partir daí, convergimos para o vértice de um novo cone, o
qual, por sua vez, antes que seja atingido, já não representará mais uma
situação de equilíbrio, e assim sucessivamente.

Algumas
observações importantes
Mises
e Hayek, obviamente, não são os únicos que ocupam teoricamente a metade do
caminho entre Lachmann e Lucas: todas as visões concorrentes sobre a questão
das tendências ao equilíbrio estão necessariamente em algum lugar entre os dois
extremos polares. Os livros didáticos keynesianos, por exemplo,
baseiam-se parcialmente no argumento da necessidade de "políticas de
estabilização" para sustentar o equilíbrio de pleno emprego ao longo
do tempo. Esta variante do keynesianismo, no entanto, negligencia
erradamente o problema das perspectivas de se alcançar um equilíbrio
intertemporal, preferindo enfatizar as perspectivas para equilibrar o mercado
de trabalho em cada período, sejam ou não mediante despesas de gastos públicos
em um determinado período para complementar os gastos do consumidor (que são
vistos como insuficientes em algum período futuro) .
Mas
o keynesianismo, convencionalmente interpretado, claramente ocupa,
tal como a vertente austríaca principal, o meio termo (mas apenas na questão
relativa ao equilíbrio): as forças de mercado podem ser efetivamente
fortalecidas pelas políticas que os tornam mais eficazes do que Lachmann
sugere, e que o fato em si delas deverem ser "aperfeiçoadas" pelas políticas as
torna menos eficazes do que Lucas propõe.
A
abordagem de Hayek, bem como suas críticas a Keynes, enfatiza diretamente a
questão da coordenação intertemporal com uma pergunta: existe um conjunto de
forças de mercado que vai transformar a trajetória desejada dos gastos dos
consumidores e que se estende para o futuro, em uma trajetória correspondente
de decisões de investimento? Hayek argumentou que a construção teórica de
Keynes, de que não há um mecanismo de mercado para coordenar as decisões de
investimento com decisões de consumo, contém uma deficiência fundamental: as
forças inerentes ao mercado, que os coordenam intertemporalmente, foram
negligenciadas por causa da agregação (macroeconomia) que caracterizou a
formulação keynesiana. Nas próprias palavras de Hayek, "Os
agregados do sr. Keynes escondem os mecanismos mais fundamentais das mudanças
que ocorrem [no processo de mercado]".
Hayek
chama também a atenção para o fato de que o setor de investimentos precisa ser
desagregado mediante o conceito de estrutura de capital. Bens de
consumo são produzidos por um processo de mercado que envolve uma sequência
temporal de fases de produção. A alocação de bens de investimento individuais
entre as várias fases de produção afeta o padrão de composição e tempo de saída
final. A análise com base nessa teoria do capital vai além da distinção entre a
procura de pneus e da demanda por veículos: por considerar a sequência de
decisões individuais que dá origem à criação de uma montadora de automóveis,
ele atribui um papel muito importante às expectativas. Cada investidor
individual em cada etapa de produção deve tomar decisões de investimento com
base em suas próprias expectativas.
O
sucesso dos investimentos ao longo do tempo exige que as decisões dos
investidores sejam coerentes tanto com as decisões subsequentes de outros
investidores como com as demandas dos consumidores finais. Os modelos teóricos
baseados na estrutura hayekiana de produção (derivada, como sabemos, de Eugen
von Böhm Bawerk) são capazes de identificar qual sequência de decisões de
investimentos são consistentes com uma determinada trajetória de consumo
desejada. Mas isto é apenas uma primícia para a questão mais fundamental: temos
razão para acreditar que os investidores, tomando essas decisões, tendem a ser
exatamente aqueles cujas expectativas sejam corretas?
Tal
como Hayek e Kirzner, a posição de Mises situa-se entre as de Lachmann e Lucas.
A formulação misesiana não nos permite prever em uma dada
situação como as expectativas de um investidor serão afetadas por alguma
mudança particular nas condições de mercado. Nem tampouco sua formulação exige
a suposição de que as expectativas sejam racionais, no sentido de Lucas. A
alegação de que há uma tendência geral ao equilíbrio repousa sobre o
entendimento austríaco de um processo de mercado, no qual cada
investidor está investindo com base em suas próprias expectativas. Investidores
cujas expectativas sobre as condições futuras do mercado acabam se revelando
corretas vão ser premiados com uma acumulação de recursos, enquanto os
investidores cujas expectativas terminam se mostrando erradas vão experimentar
uma perda de recursos. As decisões de investimento do que obteve sucesso
tornam-se cada vez mais influentes nos mercados ao longo do tempo, assim como
as dos últimos perdem significância progressivamente.
Ao
enfatizar a importância de se enxergar o processo de mercado no mundo dos
investimentos, a teoria de Mises e Hayek, bem como a de Kirzner, pode prever
que expectativas em equilíbrio tendem a prevalecer, mesmo que não se
possa prever o que em particular irá reger a formulação dessas expectativas.
Reconhecendo a subjetividade e a imprevisibilidade das expectativas em qualquer
dada circunstância, então, não implica a inexistência ou ineficácia de
tendências equilibradoras, no que divergem de Lachmann. A existência e eficácia
de tendências equilibrantes pressupõe que as expectativas corretas são
recompensadas e expectativas incorretas são penalizados. E a realização de tais
recompensas e penalidades depende da natureza das instituições em que as
decisões de investimentos são feitas.
Para
o Prof. Israel Kirzner, a coordenação intertemporal está ligada ao conceito de função
empresarial, que nada mais é do que aquele atributo individual de perceber
as possibilidades de lucros ou ganhos eventualmente existentes. Ora, como isso
se constitui em uma categoria de ação, esta pode ser encarada como um fenômeno empresarial,
que põe em destaque as capacidades perceptiva, criativa e de coordenação de
cada agente. Como em qualquer ação humana, a ação empresarial se processa em
ambiente de surpresa e de incerteza genuína e requer criatividade, uma vez que
o futuro é sempre incerto e está sempre aberto ao desenvolvimento do potencial
criativo dos agentes.
Outra
característica da ação empresarial é que, em se tratando de escolhas ao longo
do tempo e em condições de incerteza, há sempre outras ações a que se deve
renunciar. O valor subjetivo dessas ações a que se renuncia é denominado de custo.
Logicamente, os agentes agem porque acreditam subjetivamente que os fins
escolhidos possuem um valor maior ao dos custos decorrentes da escolha por
determinada ação e a diferença constitui o lucro, que é o elemento
motivador da ação. Se as ações não acarretassem custos, os valores subjetivos
dos fins coincidiriam com o lucro. Kirzner enfatiza que toda ação embute um
componente empresarial puro e criativo em sua essência, que não requer qualquer
custo e que é exatamente o que permite aproximar o conceito de ação do conceito
de função empresarial.
Toda
ação — e, portanto, toda atuação empresarial — tem a capacidade de gerar
novas informações de cunho implícito, de natureza ao mesmo tempo prática e
subjetiva e que muitas vezes não podem ser expressas. Sendo assim, o conjunto
de ações ou atos empresariais induz cada agente a ajustar ou coordenar suas
próprias atuações levando em consideração as necessidades, desejos e
circunstâncias dos demais agentes, transmitidas pelo processo de mercado por
meio de suas atuações. Essa dinâmica, no final das contas, é que torna possível
e interessante, de maneira inteiramente espontânea e inconsciente, a própria
vida em sociedade. Uma
sociedade que abre mão da função empresarial está condenada à ausência de
coordenação social e de cálculo econômico e, portanto, está abrindo todas as
portas para a coerção institucional. Sem mercados livres e liberdade para agir,
não pode haver ação empresarial; sem esta, não há como se falar em preços de
mercado; e sem estes, é impossível existir coordenação e cálculo econômico.
Cabe
mencionar que o conceito de incerteza genuína é corolário da aceitação das
hipóteses de ignorância e de tempo real. As implicações mais importantes da
ideia de incerteza genuína são: (1ª) a impossibilidade de listagem de todos os
possíveis resultados provocados por um determinado curso de ação; e (2ª) a
passagem da incerteza - que na teoria econômica convencional costuma ser
tratada como uma variável exógena - para a categoria de variável endógena.
Essa
característica importante da incerteza genuína, que é a endogeneidade, leva-nos
a visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por
si só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se.
Isto significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio,
é algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real.
Para
Mises, uma ciência econômica que enfatize apenas os estados de equilíbrio deixa
de ser uma ciência da ação humana, para ser uma ciência da inação, isto é, a
própria negação da economia. Essa característica importante da incerteza
genuína, que é a endogeneidade, leva-nos a visualizar os mercados como
processos dinâmicos ininterruptos, processos por si só geradores de mudanças às
quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto significa que um estado
de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é algo incompatível com os
conceitos de incerteza genuína e de tempo real.
Como
sublinham com brilhantismo O'Driscoll e Rizzo [ver referências bibliográficas
no final], subjetivismo e ação humana dinâmica em condições de incerteza não bayesiana são
ideias absolutamente inseparáveis sob a ótica da Escola Austríaca de Economia.
Quando um agente econômico escolhe um determinado curso de ação, as
consequências de sua escolha irão depender, pelo menos parcialmente, dos cursos
de ação que outros indivíduos escolheram, estão escolhendo ou ainda vão
escolher. Se considerarmos um mundo em que impere a autonomia das
decisões individuais, isto significa que o futuro não apenas é eventualmente
desconhecido, o que permitiria que ele fosse aprendido de maneira gradual, mas
que ele simplesmente não pode ser conhecido e nem aprendido. Tal como em
Lachmann, o futuro é incognoscível.
Por
sua vez, a ignorância, entendida como imperfeição do conhecimento, não é um
estado que possa ser totalmente evitado ou simplesmente ignorado, ou assintoticamente
eliminado por algum processo. Por isso, os expedientes analíticos que costumam
transformar a ignorância em uma mera variante do conhecimento, não refletem a
ação humana no mundo real.
Resumo
final
Sobre
a questão fundamental de tendências equilibrantes, há teóricos da economia que
ou são propensos a tomar uma posição que nega qualquer problema (Lucas) ou que
descreem em sua solução (Lachmann), bem como os que acreditam que os governos
os podem solucionar (keynesianos e afins). E os argumentos para uma
posição intermediária devem colocar muita ênfase sobre o papel das
expectativas. Apesar de reconhecerem a impossibilidade de especificar como as
expectativas corretas podem ser formadas, os teóricos middleground devem,
contudo, utilizar suas hipóteses de que elas tendem a se equilibrar de acordo
com a evolução temporal do processo de mercado, que se baseia em
expectativas predominantemente corretas.
É
verdade, como sugeriram Lachmann e Shakcle, que os economistas devem estudar
tanto as tendências "equilibrantes" dos mercados como as "desequilibrantes",
mas, enquanto o primeiro, mesmo vendo os mercados como um caleidoscópio,
jamais propôs como solução para essa inexistência de uma convergência ao
equilíbrio que os governos interferissem nos mercados, Shackle, que preferiu
seguir Keynes (embora tenha recebido influências austríacas em seu
subjetivismo), preferiu acreditar. Cabem, então, as perguntas: se os mercados
são caleidoscópios, como poderão os homens do governo melhorar isso, a
não ser que possuam um super-conhecimento? Não serão os governos, dada a
experiência que o mundo vem vivendo, elementos ainda mais desestabilizadores,
que terminam "quebrando" ou estilhaçando as peças do caleidoscópio? Deixo ao
leitor a reflexão e a resposta, ambas óbvias.
No
entanto, sob o ponto de vista da Escola Austríaca, com seu subjetivismo, sua
ênfase na praxeologia, seu individualismo metodológico e sua metodologia
hipotético-dedutiva, dois trabalhos muito difundidos no século passado causaram
males enormes à ciência econômica, porque as afirmativas e propostas de seus
dois autores passaram a ser tomadas como verdades indiscutíveis que,
infelizmente, desde o final dos anos 40, vêm sendo transmitidas a gerações
sucessivas de economistas, que mais parecem "engenheiros sociais".
O
primeiro desses trabalhos é um livro de Paul A. Samuelson publicado em 1947, "Foundations
of Economic Analysis". Nessa obra, que obteve enorme repercussão no
mundo acadêmico já então dominado pelo keynesianismo e pelo positivismo,
Samuelson apresentou uma estrutura matemática comum aos vários ramos da
economia, a partir de dois princípios: (a) o comportamento maximizador dos
agentes (como o de maximizar utilidades por parte dos consumidores, maximizar
lucros por parte das empresas, maximizar retornos através dos investidores,
etc.) e; (b) a estabilidade do equilíbrio nos sistemas econômicos, tanto de
mercados particulares quanto da economia como um todo. Samuelson também
aperfeiçoou a teoria dos números índices e generalizou a welfare
economics. Ele é especialmente conhecido por estabelecer e formalizar
definitivamente versões qualitativas e quantitativas de "estática
comparativa" Uma de suas idéias sobre estática comparativa, o chamado princípio
da correspondência, afirma que a estabilidade do equilíbrio implica
previsões testáveis sobre como se dão as mudanças de equilíbrio quando os
parâmetros são alterados. Para termos uma ideia da influência de Samuelson,
basta lermos a seguinte frase extraída aleatoriamente da Wikipedia: "Finalmente,
pode-se dizer que a partir de Samuelson passou a existir não somente a
economia, como também o livro Economics. O livro Economics ensinou
os fundamentos desta ciência à maioria dos estudantes de economia da segunda
metade do século XX". [negritos nossos]. Ao que acrescento: infelizmente!
E
o segundo é o também famoso Essays in Positive Economics (1953),
de Milton Friedman, uma coletânea de artigos anteriores do autor, com um ensaio
original - "A Metodologia da Economia Positiva" -, cujo
conselho básico é respeitar a distinção de John Neville Keynes (pai de John
Maynard Keynes) entre economia "positiva" e "normativa", sugerindo que a última
não seria adequada para lidar com assuntos econômicos. O ensaio apresenta um
programa epistemológico para a pesquisa econômica e sustenta que esta deve ser
livre de julgamentos normativos, para que possa ser respeitada como algo
objetivo e informar e economia normativa (por exemplo, as discussões sobre
salário mínimo). Julgamentos normativos, para Friedman, freqüentemente envolvem previsões implícitas
sobre as conseqüências de diferentes políticas. Sua sugestão é que essas
diferenças poderiam ser minimizadas pelo progresso na economia positiva (1953,
p. 5).
A
partir dessas obras, a ciência econômica, então, já impregnada pelos agregados de
Keynes e despida de uma teoria do capital, passou a ser tratada pelos
economistas como se fosse algo que nunca foi, não é e nunca poderá ser: uma
ciência exata, em que os agentes maximizam tudo o que lhes interessa maximizar
e, no caso dos keynesianos em todas as suas vertentes, como os
agentes individuais não o fazem, o governo pode e deve fazer,
"cientificamente". E os mercados, dentro desse positivismo açodado,
passaram a ser representados por equações e sistemas de equações. Não foi por
acaso que a econometria se desenvolveu especialmente a partir do início dos
anos 50.
Assim,
Friedman e Lucas, de quem discutimos algumas ideias sobre expectativas e sobre
equilíbrio, foram produtos naturais — talentosos, digamos de passagem — desse
afastamento da ciência econômica daquilo que realmente é, de acordo com a
tradição de Carl Menger: uma ciência que estuda a ação humana ao longo do tempo
real e sob condições de incerteza genuína. Essa visão nunca foi abandonada
pelos economistas austríacos, o que explica a decadência de sua
popularidade já a partir dos anos 40 do século XX. Mas, por outro lado, o
fracasso retumbante de keynesianos, monetaristas e novos
clássicos, frente à crise que vem abalando o mundo desde que a bolha
hipotecária estourou nos Estados Unidos — malogro este que se estende aos
"remédios" que receitam e que vêm sendo aplicados em larga escala — abre novas
perspectivas para a economia da ação humana, sua metodologia, seu
individualismo metodológico, sua negação da possibilidade de se fazer previsões
em ciências sociais, sua ênfase nas características dessas ciências e seu
subjetivismo. Não tenho dúvidas em afirmar categoricamente que a Escola Austríaca
está renascendo em todo o mundo com maior força, porque suas rivais fracassaram
e continuam a fracassar rotundamente.
Definitivamente, keynesianos, monetaristas e novos
clássicos trabalham com modelos sofisticados que descrevem um mundo
do faz de conta. Mas o mundo real, que os austríacos sempre procuraram
explicar desde Menger, não é este e está longe de ser como imaginam.
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