As
características da economia de mercado
A
economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e na
propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de
cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as
necessidades de outras pessoas. Ao agir,
todos servem seus concidadãos. Por outro
lado, todos são por eles servidos. Cada
um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para
que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.
Este
sistema é guiado pelo mercado. O mercado
orienta as atividades dos indivíduos por caminhos que possibilitam melhor servir
as necessidades de seus semelhantes. Não
há, no funcionamento do mercado, nem compulsão nem coerção. O estado, o aparato social de coerção e
compulsão, não interfere nas atividades dos cidadãos, as quais são dirigidas
pelo mercado. O estado utiliza o seu
poder exclusivamente com o propósito de evitar que as pessoas empreendam ações
lesivas à preservação e ao funcionamento da economia de mercado. Protege a vida, a saúde e a propriedade do
indivíduo contra a agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores
internos e de inimigos externos. Assim,
o estado se limita a criar e a preservar o ambiente onde a economia de mercado
pode funcionar em segurança.
O slogan marxista
"produção anárquica" retrata corretamente essa estrutura social como
um sistema econômico que não é dirigido por um ditador, um czar da produção que
pode atribuir a cada um uma tarefa e obrigá-lo a obedecer a esse comando. Todos os homens são livres; ninguém tem de se
submeter a um déspota. O indivíduo, por
vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor
maneira de promover o seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em
ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.
O
mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela
interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão
do trabalho. As forças que determinam a —
sempre variável — situação do mercado são os julgamentos de valor dos
indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A situação do mercado em um determinado momento
é a estrutura de preços, isto é, o conjunto de relações de troca estabelecido
pela interação daqueles que estão desejosos de vender com aqueles que estão
desejosos de comprar. Não há nada, em
relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente
das ações humanas. Todo fenômeno de
mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da
sociedade de mercado.
O
processo de mercado é o ajustamento das ações individuais dos vários membros da
sociedade aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de mercado informam aos produtores o
que produzir como produzir e em que quantidade. O mercado é o ponto focal para onde convergem
e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos.
A
economia de mercado deve ser estritamente diferenciada do segundo sistema
imaginável — embora não realizável — de cooperação social sob um regime de
divisão de trabalho: o sistema de propriedade governamental ou social dos meios
de produção. Esse segundo sistema é comumente chamado de socialismo, comunismo,
economia planificada ou capitalismo de estado. A economia de mercado e a economia socialista
(ou o capitalismo de estado) são mutuamente excludentes. Não há mistura possível ou imaginável dos dois
sistemas; não há algo que se possa chamar de economia mista, um sistema que
seria parcialmente socialista. A
produção ou é dirigida pelo mercado, ou o é por decretos de um czar da
produção, ou de um comitê de czares da produção.
Nada
que seja, de alguma forma, relacionado com o funcionamento do mercado pode, no
sentido praxeológico ou econômico do termo, ser chamado de socialismo. A
noção de socialismo, tal como é concebida e definida por todos os socialistas,
implica a ausência de um mercado para os fatores de produção e a ausência de
preços para esses fatores. A
"socialização" de instalações industriais, comerciais e agrícolas —
isto é, a transferência de sua propriedade de privada para pública — é um
método de conduzir pouco a pouco ao socialismo.
É
um passo na direção do socialismo, mas não é em si mesmo o socialismo. (Marx e
os marxistas ortodoxos negaram claramente a possibilidade dessa aproximação
gradual para o socialismo. Segundo suas doutrinas, a evolução do capitalismo
atingirá inevitavelmente um estágio no qual, de um só golpe, ele se
transformaria em socialismo).
As
empresas públicas operadas pelo governo, bem como a economia da Rússia
Soviética, pelo simples fato de comprarem e venderem em mercados, estão
conectadas ao sistema capitalista. Dão
testemunho dessa conexão ao utilizarem a moeda em seus cálculos. Assim, fazem uso dos métodos intelectuais do
sistema capitalista que fanaticamente condenam.
Isto
porque o cálculo econômico é a base intelectual da economia de mercado. Os objetivos perseguidos pela ação em qualquer
sistema baseado na divisão do trabalho não podem ser alcançados sem o cálculo
econômico. A economia de mercado calcula
em termos de preços em
moeda. Ser capaz de
efetuar tal cálculo foi determinante na sua evolução e condiciona seu
funcionamento nos dias de hoje. A
economia de mercado é uma realidade porque é capaz de calcular.
Capitalismo
Todas
as civilizações, até os dias de hoje, foram baseadas na propriedade privada dos
meios de produção. No passado,
civilização e propriedade privada sempre andaram juntas.
Aqueles
que sustentam que a economia é uma ciência experimental, e apesar disso
recomendam o controle estatal dos meios de produção, se contradizem
lamentavelmente. Se pudéssemos extrair algum ensinamento da experiência
histórica, este seria o de que a propriedade privada está inextricavelmente
ligada à civilização. Não há nenhuma experiência que mostre que o socialismo
poderia proporcionar um padrão de vida tão elevado quanto o que é proporcionado
pelo capitalismo.
O
sistema de economia de mercado nunca chegou a ser tentado de forma completa e
pura. Mas, na civilização ocidental,
desde a Idade Média, de um modo geral, prevaleceu uma tendência no sentido de
abolir as instituições que obstruíam o funcionamento da economia de mercado. O constante progresso dessa tendência permitiu
o crescimento populacional e a elevação do padrão de vida das massas a um nível
sem precedente e até então inimaginável. O cidadão médio desfruta hoje de
comodidades que fariam inveja a Cresus, Crasso, aos Médici e a Luís XIV.
Os
problemas suscitados pela crítica socialista e intervencionista à economia de
mercado são puramente de ordem econômica e só podem ser tratados por uma
análise profunda da ação humana e de todos os sistemas imagináveis de
cooperação social. O problema psicológico, em decorrência do qual as pessoas
desprezam e menoscabam o capitalismo e chamam de "capitalista" tudo o
que lhes desagrada, e de "socialista" tudo o que lhes agrada, é um
problema que diz respeito à história e deve ser deixado a cargo dos
historiadores.
Os
defensores do totalitarismo consideram o "capitalismo" um mal
tenebroso, uma doença terrível que se abateu sobre a humanidade. Aos olhos de
Marx, o capitalismo era um estágio inevitável da evolução do gênero humano,
mas, ainda assim, o pior dos males; felizmente a salvação estava iminente e
livraria o homem definitivamente deste desastre. Na opinião de outras pessoas,
teria sido possível evitar o capitalismo se ao menos os homens fossem mais
virtuosos ou mais habilidosos na escolha de políticas econômicas.
Todas
essas lucubrações têm um traço comum. Consideram
o capitalismo como um fenômeno ocidental que poderia ser eliminado sem alterar
condições que são essenciais ao pensamento e à ação do homem civilizado. Como elas não se preocupam com o problema do
cálculo econômico, não chegam a perceber as consequências que seriam produzidas
pela abolição desse cálculo. Não chegam
a se dar conta de que o homem socialista, para cujo planejamento a aritmética
não terá nenhuma utilidade, seria, na sua mentalidade e no seu modo de pensar,
inteiramente diferente dos nossos contemporâneos. Ao lidar com o socialismo, não devemos
subestimar essa transformação mental, mesmo se estivéssemos dispostos a
suportar silenciosamente as desastrosas consequências que adviriam para o bem
estar material da humanidade.
A
economia de mercado é um modo de agir, fruto da ação do homem sob a divisão do
trabalho. Todavia, isto não significa que seja algo acidental ou artificial,
algo que possa ser substituído por outro modo de agir qualquer. A economia de
mercado é o produto de um longo processo evolucionário. É o resultado dos esforços
do homem para ajustar sua ação, da melhor maneira possível, às condições dadas
de um meio ambiente que ele não pode modificar. É, por assim dizer, a estratégia cuja
aplicação permitiu ao homem progredir triunfalmente do estado selvagem à
civilização.
Muitos
autores raciocinam da seguinte forma: o capitalismo foi o sistema econômico que
possibilitou as realizações maravilhosas dos últimos duzentos anos; portanto,
está liquidado porque o que foi benéfico no passado não pode continuar sendo
benéfico nos nosso tempo nem no futuro. Tal
raciocínio está em contradição flagrante com os princípios do conhecimento
experimental. Não é necessário, a essa
altura, retornar novamente à questão de saber se a ciência da ação humana pode
ou não adotar os métodos experimentais das ciências naturais. Mesmo se fosse possível responder
afirmativamente a esta questão, seria absurdo questionar como esses
experimentalistas o fazem ao inverso. A ciência experimental
argumenta que, se a foi válido no passado, será válido também
no futuro. Não tem cabimento afirmar o contrário: se a foi
válido no passado, não o será no futuro.
A
economia não é, evidentemente, um ramo da história ou de qualquer outra ciência
histórica. É a teoria de toda ação
humana, a ciência geral das imutáveis categorias da ação e do seu funcionamento
em quaisquer condições imagináveis sob as quais o homem age. Por assim ser, constitui a ferramenta mental
indispensável para lidar com os problemas históricos e etnográficos. Um historiador ou um etnógrafo que, no seu
trabalho, não aproveita da melhor maneira possível todos os ensinamentos da
economia, está trabalhando mal. Na
realidade, ele não aborda o objeto de sua pesquisa sem estar influenciado por
aquilo que despreza como teoria. Está,
em cada instante de sua coleta de fatos pretensamente puros, quando os ordena e
deles extrai conclusões, guiado por remanescentes confusos e deturpados de
doutrinas econômicas perfunctórias, construídas desleixadamente ao longo dos
séculos que precederam a elaboração de uma ciência econômica; ciência econômica
esta que refutou de forma definitiva aquelas doutrinas superficiais.
Não
são os economistas, e sim os seus críticos, que carecem de "senso
histórico" e ignoram o fator evolução. Os economistas sempre tiveram consciência do
fato de que a economia de mercado é o produto de um longo processo histórico
que começou quando a raça humana emergiu dos grupos de outros primatas. Os defensores do que erroneamente é chamado de
"historicismo" pretendem desfazer os efeitos das mudanças
evolucionárias. A seu ver, tudo aquilo
cuja existência não possa ser rastreada até um passado remoto, ou não possa ter
sua origem identificada nos costumes de alguma tribo primitiva da Polinésia, é
artificial, ou mesmo decadente. Consideram
como prova de inutilidade e podridão de uma instituição o fato de ela ser
desconhecida para os selvagens. Marx e
Engels, e os professores alemães da Escola Historicista, exultaram quando
tomaram conhecimento de que a propriedade privada é "apenas" um
fenômeno histórico. Para eles, esta era a prova de que os seus planos
socialistas eram realizáveis.
O
gênio criador está em contradição com os seus contemporâneos. Enquanto pioneiro
das coisas novas e das quais nunca se ouviu falar, ele está em conflito com a
aceitação cega de critérios e valores tradicionais. A seu ver, a rotina de um cidadão normal, do
homem médio e comum, não passa de uma estupidez. Para ele, "burguês" é sinônimo de
imbecilidade. Os artistas frustrados que se satisfazem em imitar os
maneirismos do gênio, a fim de esquecer e de dissimular sua própria impotência,
adotam essa terminologia. Esses boêmios
chamam tudo o que lhes desagrada de "burguês". Desde que Marx tornou o termo
"capitalista" equivalente a "burguês", estas palavras são
empregadas como sinônimas. Nos vocabulários de todas as línguas as
palavras "capitalistas" e "burgueses" significam hoje tudo o que
há de vergonhoso, degradante e infame. Por outro lado, chamam tudo aquilo
de que gostam ou que prezam de "socialista". O esquema de raciocínio é o seguinte: um
homem, arbitrariamente, chama de "capitalista" tudo o que lhe
desagrada e depois deduz dessa designação que aquilo que lhe desagrada é mau.
Esta
confusão semântica vai ainda mais longe. Sismondi, os apologistas românticos da Idade
Média, todos os autores socialistas, a Escola Historicista prussiana e os
Institucionalistas americanos ensinaram que o capitalismo é um sistema injusto
de exploração que sacrifica os interesses vitais da maioria da população em
benefício exclusivo de um pequeno grupo de aproveitadores. Nenhum homem decente pode defender esse
sistema "insensato". Os
economistas que sustentam que o capitalismo é benéfico não apenas a um pequeno
grupo, mas a todas as pessoas, são "sicofantas da burguesia". Ou são obtusos demais para perceber a
realidade, ou então são apologistas vendidos aos interesses egoístas da classe
dos exploradores.
O
capitalismo, no entender desses inimigos da liberdade e da economia de mercado,
significa a política econômica defendida pelas grandes empresas e pelos
milionários. Diante do fato de que alguns — certamente não todos — capitalistas
e empresários ricos, nos dias de hoje, são favoráveis a medidas que restringem
o livre comércio e a livre concorrência, e que resultam em monopólio, os críticos dizem: o
capitalismo contemporâneo defende o protecionismo, os cartéis e a abolição da
competição. E ainda acrescentam que, em um
certo período do passado, o capitalismo inglês era favorável ao comércio livre,
tanto no mercado interno como nas relações internacionais. Isto ocorria porque, naquela época, os
interesses de classe da burguesia inglesa eram mais bem atendidos por essa
política. Entretanto, as condições
mudaram e, hoje, o capitalismo, isto é, a doutrina defendida pelos
exploradores, é favorável a outra política.
Essa
tese deforma grosseiramente tanto a teoria econômica como os fatos históricos. Houve
e sempre haverá pessoas cujos interesses próprios exigem proteção para
situações já estabelecidas, e que esperam obter vantagens de medidas que
restringem a concorrência. Empresários
envelhecidos e cansados, bem como os herdeiros decadentes de pessoas que foram
bem sucedidas no passado, não gostam de empreendedores
novos e ágeis que ameaçam a sua riqueza e posição social
eminente. Seu desejo de tornar rígidas
as condições econômicas e de impedir o progresso pode ou não ser realizado,
dependendo do clima da opinião pública.
A
estrutura ideológica do século XIX, influenciada pelo prestígio dos
ensinamentos dos economistas liberais, tornava inúteis esses desejos. Quando os melhoramentos tecnológicos da era do
liberalismo revolucionaram os métodos tradicionais de produção, transporte e
comércio, aqueles cujos interesses estabelecidos foram atingidos não pediram
proteção porque teria sido inútil. Mas,
hoje, impedir um homem eficiente de competir com um menos eficiente
é considerada uma tarefa legítima do governo. A opinião pública simpatiza com as solicitações
de grupos poderosos para impedir o progresso.
Não é de estranhar que, em tal ambiente, empresários menos eficientes
busquem proteção contra concorrentes mais eficientes.
Seria
correto descrever este estado de coisas da seguinte forma: hoje, muitos ou
alguns setores empresariais não são mais liberais; não defendem uma autêntica
economia de mercado, mas, ao contrário, solicitam ao governo medidas
intervencionistas. Mas é inteiramente errado dizer que o significado do
conceito de capitalismo mudou e que o atual capitalismo ou "capitalismo
tardio" — como é chamado pelos marxistas — seja caracterizado por
políticas restritivas que visem a proteger interesses constituídos de
assalariados, agricultores, lojistas, artesãos e também, às vezes, de
capitalistas e empresários. O conceito
de capitalismo, como conceito econômico, é imutável; se tem algum significado,
significa economia de mercado.
Se
aquiescermos em usar uma terminologia diferente, ficaremos privados das
ferramentas semânticas próprias para lidar adequadamente com os problemas da
história contemporânea e das políticas econômicas. Essa nomenclatura defeituosa só se torna
compreensível quando percebemos que os pseudoeconomistas e os políticos que a utilizam
querem evitar que as pessoas saibam o que é realmente a economia de mercado. Querem que as pessoas acreditem que todas as
medidas repulsivas de intervenção estatal são provocadas pelo
"capitalismo".