quinta-feira, 30 ago 2012
O comunicado do Ipea "Produtividade na Administração Pública
Brasileira: Trajetória Recente" foi publicado em 2009, e gerou alguma revolta
na época. Bem menos do que merecia. Por algum motivo, reapareceu nas redes
sociais nestes últimos dias, gerando surpresa e compartilhamentos. Dois de seus
resultados, de fato, causam espanto: no Brasil, o setor público seria mais
produtivo do que o setor privado; e, dentro do setor público, os estados que
promoveram choques de gestão tiveram pior aumento, ou até queda, de
produtividade entre 1995 e 2006. Aos interessados, o estudo está
aqui.
Alguns comentadores econômicos logo viram que tinha algo
estranho. Roraima com crescimento vertiginoso de produtividade? Estados mais
responsáveis com resultado pífio? Governo mais produtivo que empresas?
Miriam
Leitão e outros, ainda em 2009, apontaram os equívocos do estudo, mas de
uma forma, digamos, discreta. Limitaram-se, em geral, a dizer que "não se
compara a produtividade do setor público com a do setor privado". Isso é verdade
— veremos por que mais a frente —, mas não diz tudo o que precisaria ser
dito. Aproveitando o renascimento do estudo na rede, pretendo mostrar como suas
falhas e omissões são tão graves que seria mais justo qualificá-lo de embuste.
Medindo produtividade
Produtividade é o quanto se consegue produzir com
determinada quantidade de recursos. Nas palavras do estudo, que até aqui são
verdadeiras:
"De maneira geral, a produtividade reflete a relação da
produção de bens e serviços por unidade de tempo com o conjunto de fatores
engajados nessa mesma produção, como máquinas, trabalhadores, matéria prima,
entre outros.
Noutras palavras, o grau de
eficiência no uso dos recursos produtivos termina sendo medido pela
produtividade [...]."
Como medi-la? É uma conta que exigiria comparar coisas muito
diferentes: utilizo plástico, máquinas mão-de-obra, energia elétrica, água,
tempo; produzo um brinquedo. Outra empresa, com os mesmos insumos produz um
brinquedo diferente; outra ainda produz um banquinho de bar. E uma quarta
empresa usa insumos completamente diferente para me entregar um lanche no
delivery. O que permite comparar coisas tão diferentes são os preços, que
indicam, ademais, o quanto as pessoas valorizam os bens em questão. Se a razão
entre o preço do produto final e o preço dos insumos é superior a 1, a empresa
é produtiva, gera valor, tem lucro. Se a razão é inferior a 1, a empresa é
improdutiva, destrói valor, tem prejuízo. Quanto maior a razão entre receita e
despesa do processo de produção, mais produtiva é a empresa.
O setor público tem um grande problema na hora de medir sua
produtividade: seu produto, os bens e serviços produzidos pelo governo, não tem
preço de mercado. O estado é deficitário; precisa de impostos, dívida e criação
de moeda para se financiar. Como então, comparar sua produtividade com a do
setor privado? Se fôssemos usar o critério de criação de valor dado acima, o
estado invariavelmente apareceria como um destruidor de valor. Ainda assim,
costuma-se aceitar que os serviços prestados pelo Estado têm algum valor; e por isso a preocupação em
encontrar uma maneira de medi-lo.
Como o Ipea lida com essa dificuldade? Usando uma
metodologia aprovada pela ONU e padrão nas contas públicas: em vez de se medir
o valor do produto, isto é, seu preço de mercado, mede-se seu custo de
produção. Já que não temos receita para medir, medimos as despesas. Se um dado
serviço provido pelo estado custou X (e nisso entram salários, manutenção do
prédio, material do escritório, etc.), então ele vale X. É essa, inclusive, a
metodologia usada para calcular a participação do estado no PIB.
Mas — e aqui mora o problema — se o valor do produto
estatal é seu custo de produção, o que entraria como denominador para calcular
a produtividade? Afinal, a produtividade no mercado é preço do produto/custo. A produtividade do governo, por essa lógica
de igualar o valor do produto ao custo de produção, ficaria custo/custo. Como sair desse impasse? O
Ipea, cuja engenhosidade nunca deixa de surpreender, encontrou uma saída
criativa ao ressuscitar um princípio derivado do bom e velho marxismo: medição
da quantidade de trabalho. Em vez de contabilizar as despesas da produção, conta-se
o número de empregados. A escolha é tratada como uma opção entre várias
possibilidades:
"A medida de dimensionamento da produtividade em si depende
do enfoque prévio adotado, ou seja, a produtividade total dos fatores (capital
e trabalho), a produtividade do capital (produção por unidade de capital
investido), a produtividade do trabalho (produção por unidade de trabalho). Por
isso, a aferição da produtividade numa economia não se mostra um fenômeno
trivial [...]."
O que o estudo não diz é que o "enfoque prévio" por ele
adotado não serve para nada. Vejam só: a grande vantagem de se trabalhar com
valores em dinheiro é que isso permite a comparação de coisas muito diferentes.
Como já mencionado, um banquinho de bar e um serviço de
delivery, coisas completamente díspares, podem ser quantificadas e
comparadas por meio de seus preços. As variáveis "fatores totais" ou "capital"
são variáveis expressas em termos monetários. O "trabalho" também poderia ser
assim expresso: basta pegar o valor da remuneração dos trabalhadores. Mas o
estudo é explícito em utilizar a variável "unidade de trabalho", o que
significará, na prática "a força de trabalho ocupada" medida pelo PNAD.
Enfoque fora de focoPrimeiro ponto: o trabalho não é o único fator produtivo: e
todo o capital físico? Por que o Ipea limitou sua análise? Só posso supor que a
exclusão foi feita porque, se não fosse, a análise seria impossível. Temos o
dado de quantos indivíduos estão empregados; mas e a conta de quantos prédios,
lâmpadas, aparelhos de ar condicionado etc. existem pelo país a fora? A escolha
pelas variáveis físicas (trabalhadores e objetos) em vez de seus valores
monetários leva a esse tipo de dificuldade. Para facilitar sua vida, então, o
Ipea preferiu se ater aos trabalhadores, à "força de trabalho ocupada", mesmo
sabendo perfeitamente que isso já compromete largamente sua análise.
Embora usemos uma única expressão — força de trabalho —
para designar a variável, ela abarca coisas muito heterogêneas. Como comparar o
trabalho de um faxineiro ao de uma CEO? O valor da remuneração revela uma
diferença muito relevante entre eles. A mera contagem dos trabalhadores
empregados reduz ambos a unidades indiferentes. Trabalhadores com produtividade
muito diferente são igualados. Para se medir a produtividade, portanto, o
número de trabalhadores, por si só, é conceitualmente inútil (a não ser que se
definisse muito precisamente um tipo de trabalho que não admitisse variações,
como "martelar 1000 pregos em uma dia" — o que não é o caso aqui).
O número de empregados não quer dizer rigorosamente nada
para a produtividade. Se uma empresa, para produzir $ 1.000, contrata dois
funcionários ao salário $ 200 (e supondo que este seja seu único custo), ela
tem lucro de $ 600; é produtiva! Por outro lado, uma outra empresa que, para
produzir os mesmos $ 1.000 contrata um único funcionário ao salário de $ 950,
tem um lucro bem menor, de apenas $ 50. Ou seja, ela é muito menos produtiva
que a primeira. Pela conta do Ipea, contudo, ela seria considerada como duas
vezes mais produtiva.
Sigamos em frente, e vejamos a qual resultado esses dados
nos levarão. O cálculo por trás dos belos gráficos da pesquisa do Ipea é
simples. Assim se calcula produtividade do setor privado: valor de mercado dos bens e serviços / número de trabalhadores do setor
privado. Do setor público: custo das
operações do setor público / número de trabalhadores do setor público.
Agora atentem para o detalhe mais grave, um verdadeiro requinte de perversidade
dessa "metodologia": os salários e benefícios, isto é, tudo aquilo que o
empregador desembolsa para manter o "trabalhador do setor público", é parte do
"custo das operações do setor público"; com efeito, é sua parte mais
significativa. Ou seja: quanto maiores
forem os salários e os benefícios dos funcionários públicos, maior será a
"produtividade" do setor público.
O alarde desonesto
dos resultados
Reflita alguns segundos sobre esse resultado. Para o Ipea,
que é supostamente o instituto mais respeitável de pesquisa econômica do
Brasil, um funcionário público ganhar aumento de salário já constitui, por si
só, um aumento da produtividade do governo. No setor privado, ocorre exatamente
o contrário: se um funcionário de uma empresa ganha aumento e todo o resto fica
constante, a empresa se torna menos produtiva. Afinal, aumentou seu custo de
produção e o valor de seu produto permaneceu igual.
Tendo isso em mente, como justificar a decisão dos
pesquisadores do Ipea de colocar em um mesmo gráfico a variação da tal medida
de produtividade do setor público e a do setor privado? A segunda mede, mal e
mal, a produtividade do setor privado por trabalhador. A primeira mede, sem
mais nem menos, o custo do funcionário público, e não o valor por ele gerado.
No processo de mercado, a tendência é que o custo do trabalhador sempre se
aproxime do valor por ele criado. No setor público não: o salário é
determinado, como bem sabemos, por negociatas e reivindicações políticas que
nada têm a ver com a oferta e demanda dos serviços ofertados pelo estado.
O que ninguém disse, por desatenção ou timidez, mas que está
absolutamente claro, é que a medida de produtividade do setor público usada
pelo Ipea é, na verdade, uma medida da ineficiência
do setor público. O governo mais produtivo, nessa definição, é aquele que gasta
proporcionalmente mais. Quanto mais benefícios, quanto mais aumentos, quanto
mais gastos desnecessários em geral, mais "produtivo". Dá para levar a sério?
O estudo do Ipea compara apenas a trajetória da
produtividade, mostrando como a produtividade do setor público aumentou mais do
que a do setor privado. O presidente do Ipea na época, Márcio Pochmann, foi
muito além disso na divulgação dos resultados à imprensa. Citado pela Carta
Maior, afirmou que "em todos os anos pesquisados, a produtividade da
administração pública foi maior do que a registrada no setor privado. E essa
diferença foi sempre superior a 35%. [...] Há muita ideologia e poucos dados
nas argumentações de que o Estado é improdutivo, e os números mostram isso."
Explicitando as definições da pesquisa, a fala de Pochmann diria o seguinte:
"no setor privado, cada trabalhador cria $ 100 de valor; no setor público, cada
funcionário custa $ 135 aos cofres públicos. Portanto, o setor público é 35%
mais produtivo". Agora que sabemos o que significam os cálculos de
produtividade a que Pochmann se referia, como encarar tal declaração feita à
mídia? Seria possível caracterizá-la como intelectualmente honesta?
Os problemas não param aí. A "conclusão" de que os governos
de estados que fizeram "choque de gestão" (isto é, cortaram gastos
desnecessários em suas operações, algo sempre benéfico) tiveram piores ganhos
de produtividade, longe de ser uma descoberta empírica como foi alardeado, é um
resultado trivial dado pela própria construção da variável. Ao cortar gastos, o
estado diminui a relação entre gastos e número de funcionários (supondo que seu
corte de gastos envolva relativamente pouco corte de funcionários, o que é
razoável de se supor dada a dificuldade de se demitir um funcionário público).
Não era preciso coleta de dados para concluir essa obviedade matemática.
A "produtividade" do
Ipea
Não é de hoje que o Ipea goza de pouca credibilidade. Embora
ainda haja gente séria dentro dele, há anos que sua especialidade deixou de ser
medir a realidade ou fazer previsões. É claro que um instituto austríaco como o
IMB pode — e deve — questionar a abordagem empirista que o Ipea sempre teve,
mesmo em seus melhores dias; mas essa divergência se dá no plano da discussão
científica. Pesquisadores e cientistas igualmente sérios podem ter visões
divergentes de como conduzir a ciência. O Ipea dos últimos anos, por outro
lado, abandonou a seriedade científica e tem se dedicado cada vez mais a fazer
propaganda vulgar do mais puro estatismo. Tudo com dinheiro de impostos, claro.
De um estudo como o aqui analisado, não cabe divergir; cabe desmontar e acusar
o embuste.
É notório que os gastos com esse questionável instituto, que
saem do nosso bolso, não
param de subir, chegando a mais de R$ 300 milhões anuais. Para que tanta
verba? Acho que agora, finalmente, entendemos o motivo: pela definição do
próprio Ipea, gastar mais dinheiro já é, por si só, aumento de produtividade.
Todos os que prezam a ciência econômica podem apenas torcer para que a chegada
do novo presidente, Marcelo
Neri, mude os rumos da instituição.